|
Longe da violência, perto da liberdade
Obras de Hannah Arendt e Alessandro
Passerin d’Entrèves
são objeto de doutorado desenvolvido no IFCH
Vai
graxa, moço?” Esta frase pode ter diferentes significados,
mas para o autor em questão, Rogério Alessandro de Mello Basali,
ela significa o começo de uma trajetória rumo à academia,
ao encontro com o pensamento filosófico e ao título de doutor
em filosofia obtido na Unicamp em dezembro do ano passado.
Na infância, na cidade de Franca, interior de São Paulo, o
kit caixote de madeira, lata de graxa e escova garantiu ao
filósofo recursos para a compra do kit escolar. “Se hoje defendi
um doutorado em filosofia, tenho muito orgulho em dizer que
com 9 anos eu engraxava sapatos porque eu queria trabalhar,
eu queria ajudar na compra de meu material escolar”, reforça.
Certamente,
a atitude política de comprar seu próprio material já era
resultado de suas reflexões sobre aquilo que o ser humano
precisa para mudar o fluxo dos acontecimentos ao ponto de
se tornar doutor em filosofia. E se uma pequena ação política
deu novo significado a sua vida, como seria a sociedade se
outras ações políticas fossem definidas? E é esse tipo de
política capaz de mudar o rumo de alguns acontecimentos a
partir da união dos homens que o filósofo e professor adjunto
de Ensino de Filosofia na Universidade de Brasília (UnB) defende,
principalmente para controle da violência, tema de sua tese
de doutorado dedicada à análise da obra de Alessandro Passerin
d’Entrèves (1902-1985) e Hannah Arendt (1906-1975), autores
que, segundo Basali, acreditam que a liberdade humana só é
possível no horizonte da política. Mas, de cara, adverte:
“da política, e não da politicagem”.
Pathos
Philosophicus. É assim que Basali explica seu interesse
por filosofia. “É congênito; se não fizesse filosofia não
faria outra coisa. Doença crônica”, brinca. As primeiras indicações
de que teria inclinação para a filosofia foram manifestadas
aos 3 anos de idade, quando, mesmo sem reconhecer letras,
se baseava em imagens coloridas de um catálogo para contar
a sua mãe uma gênese que, na sua imaginação, dizia que Deus
criou o homem e o recobriu com pele de galinha, e por isso
era preciso ter criado a galinha primeiro. Mas ele diz
que, na verdade, começou a se envolver com o conhecimento
filosófico aos 14 anos, descobrindo a psicanálise, às portas
do ensino médio. E dali por diante, passou a especular as
imagens da realidade que passavam diante dos olhos, por exemplo,
no restaurante da Unicamp, onde atuou como bolsista-trabalho,
durante a graduação, servindo refeições, ou na Biblioteca
Central Cesar Lattes, onde atendia os visitantes da área de
coleções especiais. “Minha formação em filosofia começou nesses
dois lugares. Ingressei em 1995 sabendo que a Unicamp oferecia
um programa de manutenção para estudantes carentes. Então,
eu vim com a definição de que só poderia ficar aqui se houvesse
esse programa. Vivi na moradia estudantil, trabalhei com bolsa
trabalho na BC e no ‘bandejão’. Então, posso dizer que ali
eu também me formei. Aprendi muito com esse lado da Unicamp.
Claro que não dava para comprar livros, fazer viagens, programas
de formação, intercâmbio, etc. Mas foi assim que me formei
e aprendi a dar valor ao conhecimento”, pontua.
Diante
de tanta diversidade de atores num mesmo ambiente acadêmico,
Basali começou a centralizar sua atenção na extensão universitária
com o objetivo de tornar comunicável o que estava estudando
e pesquisando. “Levo minha pesquisa na filosofia para um universo
não-acadêmico. A filosofia tem esse campo muito hermético,
esse campo que pode isolar o pesquisador. Ele pode saber muito
e não ter condições de comunicar e para mim filosofia deve
ser comunicável”, acentua.
A dedicação
à extensão está ligada a sua própria história de acesso aos
estudos, segundo Basali. “Eu venho da escola pública, só estudei
em escola pública, venho de uma família humilde. Na verdade,
sou o primeiro a ter título de mestre na família toda. Não
é uma família de universitários, intelectuais, é uma família
de trabalhadores. Então eu fui referência. O cara que conseguiu
fazer uma universidade pública, o primeiro a fazer uma universidade
pública, sem cursinho, trabalhando. Trabalhei em feira, supermercado,
farmácia, escritório, banco, jornal, rádio e revista. Até
vir para a Unicamp”.
O caminho
para a extensão universitária teve início com a participação
do filósofo no projeto Universidade Solidária Regional, no
Jardim São Marcos, em Campinas (SP). O subprojeto desenvolvido
por Basali no São Marcos estendeu-se até o mestrado, em 2004,
em que estudou a relação entre política e violência na obra
de Hannah. Em seguida, constituiu o grupo Pensamento Nômade,
formado por estudantes de filosofia e que teve como subtítulo
“Pensamento, Arte e Educação”, cuja proposta era levar filosofia
por meio da arte, principalmente realizando trabalhos educativos.
Basali participou também da criação do projeto Corujão no
IFCH. “Foi muito ousado porque a proposta era criar cursos
de filosofia breves, acessíveis e sem exigência de leitura.
Se o participante não soubesse ler e escrever, estava convidado
a assistir ao curso se quisesse, e o desafio para quem ministrasse
era esse: como comunicar filosofia para essas pessoas”, relembra.
O primeiro
curso da série Corujão, intitulado “Panoramas da filosofia”,
reunia alunos da medicina preventiva, da saúde coletiva, alunos
da graduação e funcionários do IFCH e pessoas da comunidade
do São Marcos, inclusive líderes comunitários.
Com a
trajetória em extensão estimulada em Campinas, ao pôr os pés
em Brasília para atuar como professor substituto na UnB, inevitavelmente
Basali começou a desenvolver o projeto Escola Livre de Filosofia,
como atividade de extensão. Atualmente, no Centro de Seleção
de Promoção de Eventos (Cespe), responsável pelo Programa
de Avaliação Seriada da UnB, ele promove cursos de filosofia,
formação continuada para professores e extensão, em que estudantes
da UnB ministram aulas para estudantes de ensino médio. Recentemente,
sua atividade de extensão se estende aos pais de alunos para
que eles compreendam a proposta da avaliação seriada da UnB,
que, segundo Basali, não tem como único objetivo inserir o
estudante na universidade, mas também melhorar a educação
básica.
Pesquisa
Ao juntar o pensamento de
d’Entrèves e Hannah à sua experiência com atividades de extensão,
Basali conclui que a sociedade precisa sair em busca de seus
consensos pelo uso da razão, pelo uso do diálogo, retomar
uma potência que os gregos descobriram quando fundaram a polis.
Ele ressalta que é preciso ver o poder como algo que só existe
quando os homens estão em conjunto. “Se eles se separam, não
existe poder. Nessa leitura não há pessoa poderosa, indivíduo
poderoso”, enfatiza.
Para ele, D’Entrèves e Hannah
trazem a ideia de que mais que pensar o presente, é preciso
agir. Ele cita como exemplo a ação da polícia na cidade do
Rio de Janeiro. “Quando se tem uma polícia violenta, ela é
assim por não ter poder. Então, toda vez que o poder diminui,
a violência aumenta. Nessa perspectiva de geração de poder,
se vamos a uma comunidade violenta e damos meios para que
eles se autodeterminem, oferecemos à juventude condições de
criar e se expressar, condições de instituir, esses jovens
não têm por que ser violentos, porque já foi dado poder a
eles”, explica.
Segundo o filósofo, que no
mestrado trabalhou com a questão da violência como degradação
da ação política, há muitos exemplos de comunidades que se
transformaram a partir de uma ação política. E, geralmente,
a ação não vem do governo, pois combater a violência com geração
de poder é algo ausente na agenda dos governantes. “O tempo
todo a violência é respondida com violência. Ela ainda é aparelho
do estado. E já observamos que isso ainda não resolveu o problema
da violência”, pontua. Os exemplos de sucesso, na sua opinião,
estão ligados a esse outro tipo de atitude, como um trabalho
de igreja ou de outra associação local. E sempre com a ideia
de que homens, se considerando iguais, com o mesmo valor,
definem um rumo comum de ação.
Algumas iniciativas do movimento
hip hop estão entre os exemplos de ação política, segundo
Basali. “Eles se organizaram em uma associação e conseguiram
combater a violência. Na verdade, esse movimento é fundamental,
se pensarmos nesses termos. Pois ele dá para a juventude o
que chamamos de território existencial. Tem lugar para existir,
tem algo a dizer. O que você diz é importante, vai ser ouvido”,
reforça.
Basali acrescenta que a política
nunca vem de onde se espera, e as mazelas acontecem justamente
quando a sociedade não faz nada para mudar o fluxo. “Moro
em Brasília desde 2005 e lá é o lugar da politicagem, aquilo
que todo mundo diz que não gosta quando quer dizer que não
gosta de política. Porque se a gente realmente não se ocupa
da política, alguém está se ocupando. E é exatamente por não
fazermos nada que ocorrem tantas mazelas. Então fica muito
claro que aqueles homens de Brasília não fazem política nesse
sentido que tenho trabalhado em minha pesquisa”.
Na sua opinião, a política
que deveria ser encontrada na Esplanada ele encontrou nas
cidades satélites, onde a comunidade resiste e busca construir
a identidade. O plano piloto, a seu ver, é um delírio arquitetônico,
perverso e excludente. “É um lugar para andar de carro, para
as coisas custarem caro, e aí você vai para as cidades satélite
e vê pessoas normais trabalhando e sustentando esse sistema”,
questiona.
Hannah Arendt e Passerin d’Entrèves
tiveram grande importância na tese de Basali, pois ambos se
concentraram na política e na violência do século 20. Hanna
por ser judia e ter sofrido as perseguições do nazismo, e
D’Entrèves, na Itália, por participar do movimento de resistência
do Vale d´Aosta, que depois da Segunda Guerra quase se separou
da Itália para ser anexado à França. Na tese, ele conclui
que, apesar de trabalharem com experiências e análises diversas,
d’Entreves e Hannah fundamentam uma perspectiva comum, que
permite o entendimento da política como um fenômeno distinto
da violência e vinculado à liberdade.
................................................
Publicação
Tese de doutorado: “Alessandro Passerin d’Entrèves
e Hannah Arendt: a política e a violência”
Autor: Rogério Alessandro Mello Basali
Orientador: Fausto Castilho
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH)
................................................
|
|