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E
difícil imaginar que a Funarte (Fundação Nacional de Artes),
por meio de um dos organismos a ela vinculado, o Instituto
Nacional de Artes Plásticas (Inap), tenha desenvolvido, durante
as décadas de 70 e 80, uma política cultural abrangente e
democrática para as artes plásticas brasileiras em plena ditadura
militar, já que criada em 1975 durante o governo Geisel. Esta
surpreendente constatação levou o escultor André Guilles Troysi
de Campos Andriani, orientado pelo professor Marco do Valle,
a elaborar dissertação de mestrado, apresentada ao Instituto
de Artes (IA) da Unicamp, em que levanta e aponta a importância
da ação da Funarte por meio do Inap no desenvolvimento de
uma política cultural para as artes plásticas de caráter abrangente
e democrático jamais visto no país até então.
“Posso
afirmar que a melhor política pública para as artes plásticas
ocorreu durante o governo militar, afirma Andriani, que considera
o fato um estímulo para que, em plena democracia, se possa
ir muito além, inclusive com o aperfeiçoamento das legislações
de apoio à arte, como a Lei Rouanet. O autor do estudo enfatiza
ainda a interação da política desenvolvida pelo Inap com a
sociedade civil por intermédio de artistas e em especial da
Associação Brasileira de Artistas Plásticos Profissionais
(ABAPP).
O pesquisador
dá voz também às principais personalidades dessas instituições
que tiveram influência no panorama das artes plásticas no
Brasil por meio de projetos, debates e embates. Em quase dez
horas de gravação,Andriani entrevista ex-diretores do Inap
e ex-presidentes da ABAPP, artistas plásticos e o ex-presidente
Fernando Collor, em cuja gestão a Funarte foi extinta.
No trabalho,
o autor procura mostrar o pioneirismo da Funarte ao implantar
uma política cultural que abarca as novas linguagens de artes
plásticas que não usufruíam os espaços públicos até então
e o intenso esforço em fazer chegar sua atuação aos estados
da Federação menos atingidos por políticas públicas culturais.
A propósito, ele lembra que nos primeiros anos a Funarte abria
espaços apenas para as formas convencionais das artes plásticas,
como pintura, desenho, gravura e escultura. Só depois, a partir
da gestão de Paulo Sérgio Duarte, é que passaram a ser admitidos
também fotografia, instalações, performances e até vídeos.
Andriani
destaca a importância da ABAPP não apenas como opositora,
mas também como provedora de propostas políticas e artísticas,
por meio de reivindicações inovadoras, proporcionando autonomia
aos artistas plásticos durante o período de regime militar
(1964/1986). O pesquisador conclui que a Funarte e o Inap
– positivamente confrontados pela ABAPP, que propugnava por
medidas e políticas em prol do artista plástico – tiveram,
em seus quadros, profissionais competentes e preocupados em
descentralizar as ações do eixo Rio-São Paulo e em combater
as barreiras geográficas, econômicas e ideológicas do mercado
de arte existentes nos museus, galerias e salões públicos
nos anos 70.
O escultor
considera que o fechamento da Funarte durante o governo Collor
em 1999 – substituída depois pelo Instituto Brasileiro de
Arte e Cultura (IBAC) que foi renomeado como Funarte – retirou
do estado a responsabilidade direta pela cultura e provocou
desestruturação nas artes plásticas, principalmente em relação
ao jovem artista. Com a Lei Rouanet, o apoio às artes plásticas
foi transferido e delegado aos departamentos de marketing
dos patrocinadores, levando a decisões socialmente injustas,
segundo ele.
O
autor do estudo explica que promulgada em fins de 1991 com
o objetivo de melhorar e substituir a Lei Sarney de incentivo
à cultura, a Lei Rouanet estimula empresas e cidadãos a aplicarem
parte do imposto de renda devido em ações culturais (6% do
IRPF e 4% do IRPJ). Para ele, a lei possibilita que empresas
façam propaganda gratuita com o dinheiro público, apoiando
principalmente ações culturais de grande porte e visibilidade
de que participam artistas já consagrados. “Atualmente, existe
a tentativa de restabelecer o legítimo lugar então ocupado
pela Funarte e esperamos sua ativa retomada através do atual
Centro de Artes Visuais, que deixaria de ter papel apenas
burocrático e assumiria atuação efetiva e direta na cultura
das artes plásticas, seguindo o exemplo pioneiro do antigo
Inap e galgando patamares de excelência que o panorama atual
permite e exige”, enfatiza.
Na dissertação,
Andriani aborda as políticas culturais anteriores que influenciaram
a atuação dos dois organismos oficiais; o panorama político
e artístico cultural no período em que eles surgem e as motivações
de suas criações; suas atuações nos principais projetos, espaços
de exposição e publicações sobre artes plásticas; os embates
políticos entre a ABAPP e o Inap e suas atuações perante os
casos de censura; e a extinção da Funarte e do Inap em 1990.
Ponto de chegada
Muito mais do que um simples levantamento histórico das circunstâncias
que permearam as ocorrências de um período que contribuiu
sobremaneira para o desenvolvimento da arte contemporânea
no país, o trabalho de Andriani tira conclusões e aponta possibilidades
que podem contribuir para o apoio principalmente ao jovem
artista plástico brasileiro e para o emprego socialmente mais
justo dos recursos carreados através da Lei Rouanet. Nessa
linha, defende “a necessidade de que as políticas públicas
para as artes plásticas sejam debatidas abertamente entre
todos os seguimentos envolvidos, como artistas, críticos de
arte, diretores e presidentes das instituições pertinentes,
diretores de museus e de galerias”.
No resgate histórico das ações
na área da cultura, ele mostra que ocorreram no Brasil anteriormente
ao período estudado manifestações pioneiras de relevância,
como o anteprojeto de Mário de Andrade na década de 30, em
que se destaca o apreço pelos bens imateriais da cultura brasileira.
Considera que o Inap deixou
um legado de políticas públicas em relação às artes plásticas
com pioneirismos e avanços que não podem ser esquecidos. Lembra
que com apenas cerca de 30 funcionários, o órgão inaugurou
procedimentos exemplares, hoje copiados e adaptados sem que
se saibam suas origens, e fez o possível com escassas verbas.
Constituem exemplos dessas ações os projetos itinerantes,
a busca incessante pela sua distribuição por regiões distantes
e menos atendidas como o Norte, Centro-Oeste e Nordeste e
a introdução de novas formas de fazer artes plásticas em espaços
tradicionalmente consagrados às artes tradicionais de cavalete”.
Neste particular, lembra que
as galerias Macunaíma, Rodrigo Mello Franco de Andrade e Sergio
Milliet, inicialmente utilizadas pela Funarte apenas para
as artes tradicionais, passaram a receber exposições das manifestações
artísticas contemporâneas. Sobre os projetos itinerantes pioneiros
da instituição, os considera até hoje necessários face à infraestrutura
cultural precária em muitas localidades do Brasil.
Entre os méritos do Inap,
ele destaca a capacidade de ouvir os artistas, isoladamente
ou através de entidades como a ABAPP, valorizando assim o
artista plástico profissional que vinha sendo menosprezado
e quase sempre colocado em posição de inferioridade em relação
a críticos, marchands e colecionadores.
Para o pesquisador, a descontinuidade,
o aparelhamento do estado praticado pelos partidos políticos,
o nepotismo e as crenças estéticas excludentes constituem
os maiores obstáculos ao desenvolvimento efetivo de uma política
federal esteticamente abrangente de artes plásticas. Contrapõe
a isso, a visão continuada, o acúmulo sadio, a sobrevivência
de estruturas tradicionais convivendo harmonicamente com ideias
modernas e contemporâneas.
Neste particular, Andriani
faz questão de destacar na Funarte/Inap as gestões de Aloísio
Magalhães, Paulo Sérgio Duarte, Paulo Herkenhoff e Maria Edméa
Saldanha Arruda Falcão que, entendendo a complexidade da produção
artística brasileira, praticaram uma política cultural democrática.
Lembra ainda que a ABAPP,
opositora e parceira do Inap, soube unir os artistas democraticamente
e conseguiu abrir um leque de atuação com todas as correntes.
A propósito, afirma que a luta de artistas, curadores e críticos
de arte pela imposição de suas idéias estéticas são justas,
mas não podem sublimar as conquistas alcançadas por gerações
anteriores, que constituem patrimônio nacional. Para Andriani,
a conceituação errônea de arte contemporânea, que a considera
uma arte específica com regras específicas, gera desprezo
por outras formas de arte contemporânea com características
modernas, populares ou acadêmicas. Utilizar a estrutura do
estado para representar uma determinada tendência artística
contemporânea é um crime contra os artistas excluídos.
Neste particular, o pesquisador
lembra que muitas vezes os artistas plásticos dominados pelo
individualismo preferem dividir a somar. Para ele, a ABAPP
somou e esta foi a principal lição que deixou. Acrescenta
que o artista plástico deve reclamar menos e buscar ações
concretas, a exemplo dos artistas de teatro e cinema, deixando
de lado a postura puramente estética e individualista em busca
de conquistas coletivas.
Outra conclusão que o autor
tira da atuação da ABAPP é a de que o artista deve ser o elemento
fundamental em todos os processos envolvendo arte e a ele
compete o domínio de boa parcela dos eventos que ocorrem em
decorrência da cadeia produtiva que gera.
A política cultural exemplar
de artes plásticas, segundo o autor, inaugurada pelo estado
durante o regime militar e centralizada no Inap começou enfrentando
sérios problemas como o incêndio do MAM em 1978 e o descontentamento
em relação à forma como os salões brasileiros e outros espaços
públicos vinham sendo conduzidos. Amadureceu até meados dos
anos 80, época em que começou a sucumbir depois de ter sua
imagem arranhada por conflitos internos e pelo que considera
criminosa redução de seu orçamento após a criação do Ministério
da Cultura.
Em relação à Lei Rouanet,
Andriani manifesta a esperança de que ela não seja sufocada
pelo mau uso, pois trouxe avanços, principalmente por carrear
recursos expressivos para as artes em geral. Considera, entretanto,
que deverá sofrer ajustes que neutralizem as escolhas tendenciosas
dos departamentos de marketing das grandes empresas que a
utilizam unicamente como veiculo publicitário. O Estado não
pode se eximir de prover a cultura e delegar unicamente para
a iniciativa privada esse encargo, que desta forma resulta
desigual e atende apenas aos interesses corporativos. Uma
Lei Rouanet socialmente democrática deve beneficiar prioritariamente
os artistas ou grupos deles que não possuam fama e capital
inicial para seus projetos, além de possibilitar a criação
de um fundo destinado às intervenções diretas do estado na
cultura através de instituições, a exemplo da Funarte, possibilitando
assim a criação de medidas exemplares necessárias à promoção
da cultura no Brasil, conclui.
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Publicação
Dissertação: A atuação da Funarte através
do Inap no desenvolvimento cultural da arte brasileira contemporânea
nas décadas de
70 e 80 e interações políticas
com a ABAPP.
Autor: André Guilles Troysi de Campos Andriani
Orientador: Marco Antônio Alves do Valle
Unidade: Instituto de Artes (IA)
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