(Continuação
da página 5)
Peter Kuon - Vivendo um progresso tecnológico
e civilizatório irresistível, o mundo contemporâneo
perdeu a ilusão de poder realizar uma sociedade ideal.
A utopia programática, projeto a realizar, não
tem mais futuro. Valeria mais lembrar-se dos inícios
da utopia, em Thomas Morus, como diálogo controverso
acerca da hipótese de uma sociedade perfeita. Esta
hipótese é sempre atual, em todas as contemporaneidades,
já que ela permite pensar, mediante uma imagem concreta,
alternativas ao mundo existente. O questionamento do topos
passa pelo ou-topos. Reformulando a questão:
a utopia não ajuda a compreender o mundo contemporâneo,
ela ajuda a pensar o "outro" do mundo contemporâneo.
Cosimo Quarta - Se a utopia, como defendo, é
sobretudo um comportamento fundamental do espírito
humano, isto é, uma característica peculiar
da espécie homo, enquanto homem, desde suas
primeiras origens, que se manifesta não apenas como
sapiens, mas também como utopicus,
ou seja, um "ser projetante", então não
há dúvida que a utopia ajuda a compreender
o mundo contemporâneo muito melhor do que outras categorias
da história. No entanto, para utilizar corretamente
a utopia como modelo de interpretação histórica
- e portanto do mundo contemporâneo - é necessário
preliminarmente redefinir seu conceito, depurando-o de todas
as incrustações que ao longo dos séculos
o deturparam e banalizaram.
Dito de outro modo, é preciso liberar-se da concepção
corrente que entende a utopia como extravagância,
quimera, castelo nos ares, cidade nas nuvens, sonho, miragem,
ilusão e por aí vai. Mas é preciso
também evitar definir a utopia como cidade ideal,
estado perfeito, sociedade imaginária, pois são
estas definições que não apreendem
o verdadeiro sentido da utopia, tal como o havia originariamente
entendido Thomas More que, como é sabido, foi quem
cunhou este extraordinário neologismo, que hoje é
conhecido e usado - infelizmente, com frequência despropositada
- praticamente em todas as línguas do mundo.
No exastichon do "poeta Anemolius" - um
dos escritos preliminares que acompanharam a obra de More
logo nas primeiras edições - é explicado
com clareza o sentido do termo "Utopia". Este
"estado" - cujo território transformou-se
de península em ilha - foi chamado pelos antigos
ou-topia (não lugar), ou seja, a ilha que
"não é", por causa do seu "isolamento",
porque ninguém a conhecia nem a frequentava; mas,
após a conquista de Utopus, ela foi transformada
em um "ótimo estado", isto é, em
uma sociedade que possuía instituições
tão boas que não somente podiam competir com
a República de Platão, mas chegavam
a superá-la, já que, enquanto Platão
havia delineado seu estado somente com palavras, e desta
forma ele havia permanecido um projeto, a Utopia se apresenta,
ao contrário, como uma sociedade viva, justa, plenamente
realizada, com ótimas instituições,
e por isso, justamente, o poeta Anemolius (ou seja, More)
conclui que ela pode ser chamada de Eutopia, o "lugar
do bem", a boa pólis, ou ainda o "ótimo
estado", onde reinam a justiça, a liberdade,
a cultura, o bem-estar. More está nos dizendo, portanto,
que Utopia é o projeto da sociedade boa, justa, virtuosa
e fraterna (eu-topia) que ainda não existe
(ou-topia), mas está propensa a se realizar.
Viver em uma sociedade guiada pela justiça constitui
uma das mais profundas aspirações da humanidade.
Desde os primórdios da história - como muitos
mitos nos revelam claramente - cada geração
humana elaborou (de maneira implícita ou explícita)
um projeto utópico próprio, esforçando-se
para realizá-lo, mesmo se tal realização
nunca é completa por causa dos obstáculos
que se interpõem sempre que se passa da teoria à
prática.
Mas o que uma geração não consegue
realizar é retomado pelas gerações
sucessivas que, por sua vez, elaboram seu projeto utópico,
e assim acontecerá sempre, enquanto durarem o homem
e a história. Portanto, haverá utopia enquanto
houver história. Eis porque a utopia pode ser também
definida como o motor da história. Compreende-se
melhor, agora, à luz destas considerações,
porque a esta primeira pergunta respondi que a utopia ajuda
a compreender o nosso tempo muito melhor do que outros modelos
interpretativos do processo histórico.
JU - Existe um revival da questão utópica?
Se sim, quais são as razões deste fato?
Jean-Michel Racault - Aqui, mais uma vez, pode-se
responder com um sim e um não.
Não, porque como gênero literário,
a utopia sob sua forma que podemos qualificar de "clássica"
cessou, ao que parece, de ser produtiva hoje, e compreende-se
bem o porquê. Esta forma, surgida em 1516 junto com
a palavra, com A Utopia de Thomas More, repousava
sobre a ficção de uma viagem realizada - por
um europeu quase sempre - a uma região afastada e
desconhecida, frequentemente uma ilha do hemisfério
sul. É o caso, em More, da ilha de Utopia - ela se
chama assim - que o título apresenta como "recentemente
descoberta" por um dos companheiros de Vespucci.
Mais tarde, nos séculos XVII e XVIII, as utopias
se apoiarão com mais frequência em um mito
científico, o do Grande Continente Austral Desconhecido,
com seus arquipélagos satélites, que os cosmógrafos
supõem indispensável ao equilíbrio
do globo para compensar a massa emersa do hemisfério
Norte. Mas este mito vai por água abaixo com as grandes
expedições científicas de finais do
século XVIII, particularmente com a segunda viagem
do capitão Cook em 1772, que demonstra que as Terras
Austrais, se existem, não têm nem as dimensões,
nem o clima, nem, é lógico, as populações
que se imaginava.
O fundamento da utopia é a alteridade. Ora, a partir
dos anos 1880, não há mais nenhuma zona desconhecida
no globo terrestre e a alteridade geográfica das
localizações imaginárias não
é mais aceitável do ponto de vista da verossimilhança.
O modelo utópico tradicional, da ficção
realista com descoberta fortuita de uma ilha desconhecida,
não é mais realmente admissível, então
o gênero deve adotar outras formas.
E talvez neste momento possamos responder positivamente
e falar de revival da utopia por meio de diversas renovações
formais cujas origens são, aliás, relativamente
antigas. Por exemplo, a viagem no tempo - e não mais
no espaço -, cujo primeiro exemplo é L'An
2440 de Louis-Sébastien Mercier [1771], mas que
se desenvolverá sobretudo a partir do fim do século
XIX - Looking Backwards, de Bellamy, 1888 ou News
from Nowhere, de Morris, 1890.
E, sobretudo, é claro, a ficção científica,
que não podemos reduzir a uma versão modernizada
da antiga literatura utópica, mas que aborda frequentemente
os mesmos problemas combinando as duas formas de deslocamento
em relação ao real de referência, no
espaço - os outros planetas - e no tempo - o futuro.
Aqui também as origens são muito antigas:
desde o século XVII Cyrano de Bergerac, em L'Autre
Monde [1657] havia aplicado dados científicos
- da recentíssima revolução astronômica
galileana - para relatar uma viagem à Lua seguida
de uma outra, ao Sol.
Vita Fortunati - Creio que existe um ressurgimento
do pensamento utópico por uma série de motivos.
O primeiro: após a crise do capitalismo e das ideologias,
precisamos de modelos alternativos. Nestes anos, no nosso
centro, temos afrontado o problema da identidade europeia
e da interculturalidade em uma perspectiva utópica.
Creio que, numa visão global, há a necessidade
de um confronto entre as várias tradições
do pensamento utópico, não apenas a ocidental,
mas também a asiática e a africana.
Gostaria de assinalar que, nos últimos anos, os
estudos utópicos, e certamente também as pesquisas
promovidas pelo Centro di studi interpatimentali dell'Utopia
de Bolonha, orientaram-se principalmente em duas vertentes.
A primeira está centrada em questões essencialmente
teóricas e metodológicas: a interrogação
sobre a definição de "utopia", "antiutopia"
e "distopia", buscando a superação
da dicotomia que nos últimos decênios havia
gerado polêmicas, entre a representação
clara, separada do melhor e do pior dos mundos possíveis.
A segunda se esforça para encontrar novas possibilidades
de discussão da proposta utópica. Útil
para este propósito foi o surgimento da definição
de "utopia crítica". Com esta definição
se pretende fazer referência a figurações
de um alhures elaboradas por meio de um processo
de desconstrução e de reconstrução,
e de uma visão deformante e ideal, que se conciliam
em um mundo "outro" não mais rigidamente
codificado, mas aberto às negociações
do sujeito.
Peter Kuon - Hesito em responder esta pergunta.
Se sim, o revival nasce do Yes we can de Obama,
promessa e esperança de reinventar uma sociedade
e as relações internacionais. Veremos o que
se seguirá!
Cosimo Quarta - Acredito que hoje, mais do que um
revival, há uma urgente necessidade de utopia.
É sabido que depois da queda do comunismo soviético,
muitos autores, fazendo infelizmente uma terrível
confusão entre utopia e distopia, se precipitaram
declarando a "morte" ou o "fim" da utopia,
enquanto é possível notar que ela está
mais viva do que nunca.
A crise ambiental, primeiro, e a gravíssima crise
econômica em nível mundial, agora, mostraram
claramente, a todos, os limites do sistema capitalista a
tal ponto que hoje por todo lado se invoca uma mudança
radical da sociedade em escala planetária. Em particular,
a valência utópica da ecologia está
se revelando decisiva não apenas para o nosso tempo,
mas também para as gerações futuras.
"O milênio se abriu com ferozes
conflitos
causados por nacionalismos contrapostos'
JU - A produção cultural contemporânea
sente a influência das idéias utópicas,
em sentido amplo?
Jean-Michel Racault - Sim, sem dúvida,
mas com certa desconfiança, que se explica por vários
fatores. Primeiramente, a crise das ideologias, principalmente
daquelas que propõem receitas mágicas e explicações
totalizantes. É o caso de certa vulgata marxista
que foi comprometida pela queda do "comunismo real",
e mais ainda pela confrontação entre a teoria
e sua realização concreta, particularmente
terrificante no caso do regime dos Khmers Vermelhos, que
era de fato um tipo de utopia posta em prática.
Desconfiança, mais geralmente, face ao próprio
movimento do pensamento utópico, percebido como normativo,
autoritário, até totalitário: é
nobre querer para todos o que é justo, mas não
é perigoso impor isso, e esta tentação
não é inerente à convicção
de deter a verdade? De modo que uma grande parte das utopias
modernas é, em realidade, composta de antiutopias
cujo objetivo não é propor um modelo de transformação
social, mas prevenir contra um processo inevitável
pois resultante da evolução sócio-tecnológica
das civilizações.
Penso, certamente, em Brave New World de Huxley [1932]
ou em 1984 de Orwell [1949], mas podemos nos perguntar
se a antiutopia também não seria tão
antiga quanto a utopia. Os grandes textos utópicos
são ao mesmo tempo utopias e antiutopias; já
era o caso, por exemplo, da sociedade equina imaginada por
Swift na última parte das Gulliver's Travels
[1726]. Esta sociedade é dada por perfeita, mas,
refletindo bem sobre ela, percebemos que esta perfeição
a torna inquietante, e de todo modo ela não pode
ser um modelo, já que seus habitantes, ironicamente,
são cavalos, e não homens...
Talvez haja um campo onde a utopia classicamente positiva
permanece como tal hoje em dia. É aquele dos movimentos
ditos "alternativos" que nunca conheceram realização
enquanto estado de grande amplitude -diferentes do comunismo,
por exemplo - e podem portanto, por meio do gênero
utópico, exprimir a busca da alteridade em todo seu
vigor. Há assim utopias ecologistas como Ecotopia,
de Callenbach [1975], ou Voyage au pays de l'utopie rustique,
de Mendras [1979]. A forma utópica se presta particularmente
bem aqui a encarnar propostas concretas, organizar um debate,
refutar objeções, e, sobretudo, a representar
visualmente sob a forma de quadros descritivos os resultados
assim obtidos pela aplicação das teses ecologistas.
Vita Fortunati - Utopias críticas (critical
dystopias), utopias imperfeitas (flawed dystopias):
estas novas definições nascidas do vivo debate
atual entre estudiosos de utopia colocam em evidência
o quanto há, na nossa contemporaneidade, de consciência
histórica dos perigos implícitos da utopia
entendida como modelo abstrato e totalizante. Percebe-se,
portanto, a necessidade de se propor utopias "imperfeitas",
onde seus habitantes se interrogam sobre o sentido ético
do próprio agir, porque sabem que as utopias perfeitas
do passado sempre foram construídas às custas
de alguém que nelas não estava incluído
ou estava incluído mediante um custo altíssimo
de sofrimento e abuso.
O novo milênio se abriu com trágicos episódios
de terrorismo - o primeiro da fila foi o 11 de setembro
-, e com ferozes conflitos provocados por nacionalismos
contrapostos. Estes e outros acontecimentos fariam pensar
que estamos novamente em uma fase fria da utopia e do utopismo,
mas a recente produção narrativa evidencia
como, ao contrário, ainda há necessidade de
utopia. Utopia entendida como capacidade de interrogar-se
criticamente sobre a realidade que nos circunda, como educação
voltada para a imaginação e para o desejo
de mudá-la. Ler e estudar a utopia pode, portanto,
tornar-se um estímulo para empenhar-se a agir concretamente
sobre a realidade.
Na segunda metade do século XX, a utopia não
é apenas um objeto de estudo amplamente investigado,
como demonstram os numerosos trabalhos neste setor específico,
mas torna-se também um modo de declarar o próprio
posicionamento político. Deste ponto de vista, consequentemente,
a utopia não é nunca um objeto neutro, porque
nela há um alto investimento científico e
pessoal.
Muitas utopias são fundadas sobre o pensamento de
filósofos que renovaram o pensamento ocidental: E.
Bloch, M. Foucault, G. Deleuze, F. Guattari, J. Baudrillard
e, mais recentemente, F. Jameson, D. Harvey, R. Arundhati,
e até o controverso Toni Negri, que indagaram o pensamento
marxista para focalizar seus limites e para recontextualizá-lo
em relação aos problemas da contemporaneidade,
como o globalismo, as novas hegemonias e o pós-colonialismo.
Peter Kuon - Para repensar as "megalópoles"
brasileiras, porque não reler Italo Calvino, Le
città invisibili, uma reflexão utópica
sobre as relações entre os espaços
urbanos e seus habitantes?
Cosimo Quarta - Não há dúvida
que o pensamento utópico tenha influenciado não
apenas a produção cultural contemporânea
- história, filosofia, literatura, política,
economia, ciência, tecnologia etc.-, mas está
penetrando, ainda que com dificuldade, na consciência
dos povos.
JU - Quais obras atuais, realmente relevantes, estão
dentro de um enquadramento utópico?
Jean-Michel Racault - Um título me vem
à lembrança, talvez porque este título
contenha em si um resumo de toda a tradição
utópica desde o Renascimento: La Possibilité
d'une île, romance de Michel Houellebecq publicado
em 2005. Sua forma, no entanto, não tem nenhuma relação
com a forma de uma utopia, nem, aparentemente, o conteúdo.
Mas ele desenvolve, a partir da ficção - que,
sem dúvida, logo não será mais uma
ficção - da clonagem dos seres humanos, o
que poderíamos chamar de uma utopia do pós-humano
que abre para o gênero novas perspectivas.
Vita Fortunati - A escrita utópica de mulheres
como Ursula le Guin, Joanna Russ, Marge Piercy, nas últimas
décadas do século XX, deu voz a novos modelos
utópicos esperáveis e desejáveis porque
neles os verdadeiros valores da cultura feminina são
exaltados: o pacifismo, a ecologia e a descentralização
do poder. A utopia permite a visualização
de situações insólitas e a experimentação
de novos modelos de comportamento. A utopia apresenta soluções
alternativas, porém nunca vistas como definitivas,
mas sempre dinâmicas e fluidas, como horizontes em
direção ao quais se tende.
Peter Kuon - A arte, enquanto recusa da reprodução
mimética do mundo, é - e sempre tem sido -
utópica.
Cosimo Quarta - É difícil indicar
obras isoladas que se enquadrem no pensamento utópico,
pois, como dizia antes, em todos os âmbitos do cognoscível
humano está presente o pensamento utópico.
Para permanecer no campo da utopia literária, basta
pensar na vasta produção dos romances de ficção
científica, ainda que neles prevaleça com
frequência a distopia; é todavia oportuno lembrar
que quando a distopia é usada como sinal de alarme
para evitar avançar em direção a caminhos
equivocados e arriscados, ela assume uma função
altamente positiva para a humanidade.
QUEM SÃO
Jean-Michel
Racault é professor emérito na Universidade
da Réunion (França) de literatura francesa
e comparada. Suas pesquisas estão voltadas para as
literaturas das viagens e relatos utópicos (séculos
XVII e XVIII), a temática literária da insularidade
e as obras de Bernardin de Saint-Pierre. Publicou 18 obras
como autor ou editor científico e uma centena de
artigos.
Vita
Fortunati é professora de língua e literatura
inglesas, é diretora do Centro Interdipartimentale
di Ricerca sull'Utopia da Universidade de Bolonha e de Forme
dell'Utopia, uma coleção de textos primários
e críticos publicada pela editora Longo, de Ravena.
Coordena, em nível nacional, o primeiro projeto europeu
de Master (Erasmus Mundus Gemma) em Women's and
Gender Studies e também um projeto europeu de
redes temáticas sobre o tema da Interface entre Ciências
Humanas e Ciências Exatas com o título Acume
2, Interfacing Sciences, Literature and Humanities.
.
Peter
Kuon é professor de filologia românica
(literatura italiana e francesa) e diretor do centro universitário
Sciences et Arts na Universidade de Salzbourg. Suas publicações
tratam da utopia do Renascimento ao Iluminismo, da recepção
criadora dos grandes clássicos, da literatura do
holocausto e da literatura contemporânea em geral.
Cosimo
Quarta é professor de filosofia da história
e ética ambiental na Universidade do Salento (Lecce,
Itália), e co-fundador e diretor do Centro Interdipartamentale
di Ricerca sull'Utopia. Suas pesquisas, desde o início
dedicadas ao pensamento utópico, tratam dos problemas
de história da utopia (Platão, Morus, Campanella,
Andreae, Péguy) e das relações entre
utopia e ideal, ideologia, mito, escatologia, milenarismo,
futurologia, ciência, ficção científica,
ecologia, revoluções, igualdade, paz, não-violência.