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MANUEL ALVES FILHO

Montagem da São Paulo Fashion Week  no Pavilhão da Bienal, no Parque do Ibirapuera: pesquisadora fez incursões em eventos, agências e sessões fotográficas (Foto: Flávio Florido/Folha Imagem) Embora seja automaticamente associada à beleza, à fama e ao dinheiro, a carreira de modelo profissional do sexo feminino é bem menos glamourosa do que se pensa. Em geral, a carreira é marcada por uma série de problemas, que vão do árduo processo de inserção no mercado de trabalho aos dilemas relacionados à construção da feminilidade. “A carreira é vivenciada como um tempo suspenso, durante o qual se abre mão do estudo, do namoro e da família em nome de um sonho que em alguns casos sequer é o delas”, afirma a antropóloga Fabiana Jordão Martinez, que acaba de defender a tese de doutorado “De menina a modelo, entre modelo e menina: gênero, imagem e experiência”, sob orientação da professora Suely Kofes, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

A antropóloga Fabiana Jordão Martinez, autora da tese: “O corpo e a personalidade são vistos como uma argamassa que pode ser modelada” (Foto: Antoninho Perri)A pesquisa desenvolvida por Fabiana na cidade de São Paulo deu continuidade ao trabalho realizado por ela durante o mestrado, quando também investigou o campo da moda e da publicidade e alguns aspectos relativos à carreira de modelo. Desta vez, a antropóloga buscou compreender com maior profundidade como se dá a construção da feminilidade e da auto-imagem destas profissionais, a partir de seus depoimentos. Foram ouvidas 50 profissionais e ex-profissionais de 14 a 50 anos. A pesquisadora fez incursões em agências de modelos, eventos de moda e sessões fotográficas. Também entrevistou agentes, maquiadores, estilistas, fotógrafos e modelos masculinos.  De acordo com a autora do trabalho, a atividade é marcada pela socialização no meio, atravessada pela lógica do mercado e por uma disciplina extremamente rígida, notadamente no que se refere à apresentação do corpo feminino.

Prevalece neste meio, segundo ela, o ideal de magreza e juventude. Como no Brasil as modelos ingressam precocemente na profissão, por volta dos 14 anos, o corpo é moldado como se fosse um objeto de consumo, seguindo a lógica mercantil. “O corpo e a personalidade são vistos como uma argamassa que pode ser modelada ou uma tela em branco, cuja personalidade ainda necessita ser inscrita. A feminilidade, como conseqüência, é inteiramente destinada ao mercado, construída somente através do corpo, pelo olhar do outro e não através de virtudes e demais atributos pessoais”, compara. Ao analisar o conteúdo dos depoimentos, a antropóloga diz ter identificado a existência de dois momentos distintos na carreira dessas mulheres.

O primeiro, quando ainda são muito novas e acabam de ingressar na carreira, é marcado pelo ideal de glamour, fama e dinheiro. Nas palavras da pesquisadora, este momento é vivenciado como um rito de passagem, durante o qual a menina, outrora magra, alta e desajeitada, passa a ser vista como linda e elegante. “Ou seja, o patinho feio de repente transforma-se em cinderela”. É neste instante também que as adolescentes projetam seu futuro com base nas promessas dos agentes de modelos e nos exemplos de sucesso, tendo como ícone a brasileira Gisele Bündchen. “Ocorre que modelos como Gisele Bündchen, que conquistam fama e riqueza, representam quase uma exceção nesse universo. A grande maioria fica muito distante disso”, lembra Fabiana.

O primeiro choque, continua a autora da tese, acontece quando desembarcam num grande centro, no caso São Paulo. É quando percebem que a carreira é extremamente competitiva e, não raro, extenuante. Muitas sofrem por estarem longe das famílias e enfrentam dificuldades para se adaptar à nova cidade e às colegas de profissão, visto que várias delas costumam dividir apartamento para reduzir custos com moradia. “Somada a essas dificuldades, surgem outros problemas. Nessa fase, as adolescentes dificilmente conseguem manter uma vida pessoal considerada plena, ou normal, como definem. A maioria, por exemplo, não namora ou para de estudar devido à rotina sem horários. Como são menores de idade, a agência mantém tutela sobre elas, há um rigoroso controle sobre saídas e horários de chegada em casa. Além da rígida disciplina para aprenderem a se arrumar, a se comportar e a permanecer magras. Muitas sofrem de ansiedade ou desenvolvem transtornos alimentares. Algumas agências estabelecidas e renomadas têm se conscientizado sobre a necessidade de profissionais para apoiá-las e orientá-las nesse início”, acrescenta Fabiana.

Defeitos
A difícil rotina para se conseguir trabalho, de acordo com a pesquisadora, apresenta-se como outra situação de desalento. Normalmente, as ingressantes levam de seis meses a um ano para se firmar no mercado. Nesse período, fazem incontáveis testes, que com frequência exigem a exposição do corpo. “Nessa fase, estão sujeitas a julgamentos instáveis de todo o tipo. Ora são lindas, ora são feias, dependendo de quem avalia. Esses avaliadores muitas vezes apontam, sem escrúpulos, defeitos que elas sequer haviam dado conta. Uma delas relatou, indignada, que certa vez uma produtora de moda ergueu seu rosto para ver os seus dentes, ‘como se fosse um cavalo’, em suas palavras”.

Nos depoimentos que colheu, Fabiana constatou ainda que várias dessas jovens têm uma relação conflitante com a própria imagem. Embora se identifiquem como meninas ou adolescentes, elas se apresentam como adultas nas fotos e passarelas, resultando em uma confusão entre um mundo considerado artificial e outro verdadeiro. A feminilidade se constrói em grande parte por meio da instabilidade dos julgamentos e do contato constante com as imagens. “Trata-se de uma experiência relativamente esquizofrênica, marcada pelo dilema entre se apresentar como várias a cada situação e de acordo com o mercado, sem que possam ser elas mesmas, como definem. As falas são marcadas por um receio de perder a personalidade”.

Ainda no que tange à relação com a imagem, as modelos mais jovens, aponta o estudo, costumam valorizar mais o trabalho na passarela do que nos estúdios fotográficos. O desfile, por remeter à ação e à imagem que fazem de uma modelo, no sentido estrito do termo, é considerado mais gratificante do que o trabalho passivo diante das câmeras, que leva horas e muitas vezes exige a exposição do corpo. “Embora modelos mais experientes não tenham problema com relação à exposição do corpo, muitas vêem isso como uma situação desconfortável. Certas modelos bastante renomadas se negam a fazer fotos e desfiles com transparências, biquínis, lingeries ou beijando e acariciando homens, sobretudo quando são casadas. Mas a grande maioria acredita que não deve recusar nada do que é exigido por macular a sua imagem”

O segundo momento na carreira ocorre quando já estão em maior contato com o meio, possuem mais idade ou obtêm algum sucesso. Nessa etapa, adquirem maior independência, o que confere a possibilidade de se divertir, namorar, travar amizade com pessoas de fora da profissão, voltar a estudar, fazer projetos sobre outra profissão e até mesmo pensar em casamento ou maternidade.   Também é neste momento que muitas começam a planejar a aposentadoria, geralmente quando já possuem renome, têm alguma poupança ou se cansam de tentar a carreira. Nem todas, porém, conseguem vislumbrar o final da carreira, embora ela seja bastante curta, sobretudo para as mulheres. “Os convites para trabalhar vão rareando conforme a idade avança. Embora muitas façam projetos futuros, algumas têm dificuldade em perceber o final da carreira”, relata a antropóloga.

Nas entrevistas que concederam à pesquisadora, várias modelos e ex-modelos classificaram a carreira como “um mundo da fantasia”, onde há muito de sacrifício, hostilidade e falsidade, mas pouco do glamour frequentemente alardeado pela mídia. “Em muitas falas, inclusive, há um impressionante discurso ascético e de bom mocismo. Muitas ressaltam o gosto pelo estudo, pela leitura e certo recato nos relacionamentos, modos de se vestir e moderação com as ‘baladas’. É uma forma de resistir a alguns dos estereótipos negativos, geralmente propagados na mídia e por um senso comum sobre a figura da modelo: de que não pensa ou é sexualmente disponível. Grande parte delas se sente indignada quanto ao uso indiscriminado do termo modelo, já que várias pessoas se definem como tal para justificarem sua presença na mídia. Por isso, muitas sentem vergonha em se definirem como modelos no cotidiano.”

Pressão
De maneira geral, as modelos ou candidatas à carreira sofrem pressão de diversos lados. Segundo Fabiana, é comum encontrar meninas que não tinham como primeira opção a carreira. Estas normalmente são “incentivadas” a abraçar a profissão por familiares, notadamente a mãe. “Por analogia, é o mesmo que ocorre com o menino que é levado a jogar futebol, seja por representar uma possibilidade de ascensão social para a família, seja por cumprir um sonho que não pode ser realizado pelo pai”, explica a pesquisadora.

Depois que integram esse universo, as adolescentes passam a ser alvo de outras cobranças. Uma das mais rígidas, como já dito, é com relação ao corpo, embora a maioria delas já seja bastante magra ao ingressar. “Os agentes de modelos negam que haja uma pressão exagerada nesse sentido, mas contraditoriamente reconhecem que só admitem garotas novas e quase esqueléticas. As medidas de cintura e quadris devem permanecer as mesmas ao longo de toda a carreira. Ao serem questionados sobre as razões deste padrão, apelam para a mão invisível do mercado: é assim porque o mercado exige que o seja. Como a modelo geralmente é o elo mais fraco dessa cadeia, e por se tratar de uma categoria desmobilizada, não há a perspectiva de mudança nesse estado de coisas”, analisa a autora da tese.

 
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