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TROCA DE SINAIS
Pedagoga apresenta, em
Libras, dissertação
de mestrado na Faculdade de Educação
A pesquisadora Regiane Pinheiro
Agrella apresentou, em Libras (língua brasileira de sinais),
seu memorial para obtenção do título de mestre na Faculdade
de Educação (FE) da Unicamp, no final do mês de maio. Nele,
seu percurso de vida foi revisitado e reelaborado a partir
das disciplinas que realizou no mestrado, especialmente, aquelas
vinculadas às perspectivas foucaultiana e psicanalítica. Além
de ser a primeira aluna surda a apresentar a dissertação em
língua de sinais na Universidade, Regiane é uma das primeiras
alunas da Unicamp a realizar todo processo seletivo do mestrado
– prova e entrevista – em português escrito e em libras.
As
respostas dadas pela candidata em libras na prova foram filmadas,
houve edição da tradução realizada em português por uma
intérprete de língua de sinais com mestrado em educação,
que, em seguida, transcreveu-as para o português. A dificuldade
com a escrita manifestada por Regiane e outra candidata em
uma das fases da seleção provocou uma reviravolta na maneira
de tratar o aluno surdo na faculdade, de acordo com a orientadora
Regina Maria de Souza, do Grupo Diferenças e Subjetividades
em Educação da faculdade.
Uma autorização concedida
pela Coordenadoria de Pós-Graduação da FE para que a prova
fosse realizada tanto em português quanto em libras mudou
a história profissional das alunas e a história da pós-graduação
da FE. “Com esta dissertação, mostramos que é possível
garantir a formação do pesquisador surdo mesmo que ele não
tenha como primeira língua o português, e sim a língua
de brasileira de sinais. É uma grande inovação em termos
de inclusão na Unicamp”, explica Regina.
O aceite das estudantes no
curso mobilizou desde os professores até os funcionários da
área de multimeios da FE, pois as aulas, acompanhadas pelas
intérpretes, foram todas gravadas em DVD, que foi entregue
às alunas 40 minutos depois. “Quem sabe se depois dessa experiência,
não conseguimos aprovar um projeto que dê ao pesquisador surdo
o direito de entregar sua dissertação ou tese em mídia (DVD)
sem precisar se ver transcrito em português por outra pessoa.”
No momento, ainda há exigência da entrega do volume escrito,
que, na realidade, recebe um tratamento de tradução do orientador.
Formada em Pedagogia, Regiane
apoiou-se em conceitos da sociologia de Michel Foucault, da
psicanálise de Sigmund Freud e da lingüística de Vigotski
para, a partir de sua própria história, analisar a relação
da família, da medicina e da pedagogia com a língua de sinais.
Ela explica que a dissertação não se trata de um trabalho
que vai reparar alguma coisa anormal ou ditar uma regra para
as principais áreas abordadas – família, pedagogia e fonoaudiologia
–, mas é uma forma de mostrar a partir de sua formação as
possibilidades de se usar a língua de sinais nestes três campos.
E a avaliação, segundo seu
depoimento, não é das mais favoráveis, já que falta muito
a fazer até 2015, ano em que 100% dos campos de convívio –
escolas e cursos de formação de professores – teriam de estar
aptos a usar a língua de sinais, de acordo com o Decreto 5.626
do próprio governo. “Falta muita coisa para 2015. Já existem
50% das pessoas falando língua de sinais? Não”, reflete. Para
ela, as ações rumo à prática dessa política pública esbarram
na aprovação e na implantação de um currículo. “Estamos presos
a um processo burocrático”.
A
pesquisadora enfatiza que sua discussão é sair desse padrão
de normalidade criado pelos campos analisados com relação
à surdez, pois ela mesma aprendeu a olhar de um jeito diferente.
“Prefiro que o surdo se sinta feliz e que tenha um desenvolvimento
a partir desse lugar.”
A pedagoga relata que as abordagens
orais, utilizadas na década de 1970, eram também conhecidas
como “métodos orais-aurais”, e se caracterizavam pela ênfase
na amplificação do som e no uso da fala. Dependendo do canal
que é priorizado na recepção da linguagem, denomina-se abordagem
unissensorial ou multissensorial. E foram estas as abordagens
utilizadas pelas fonoaudiólogas e pela escola em que estudei,
como também em todas as outras escolas de surdos e clínicas
no Brasil.
“Já perdi várias questões
da minha vida, desde a minha infância, porque tinha de falar
certo. Até conseguia falar algumas coisas, mas aquilo para
mim era muito ruim. Porque existia uma barreira entre mim
e as pessoas. A gente se olhava, mas dava para perceber que
o problema era em relação à fala”, reflete. A pesquisadora
diz ter crescido e trabalhado com a oralidade, mas foi descobrindo
a facilidade da língua de sinais. “É mais fácil aprendê-la,
assim como o ouvinte se sente mais confortável aprendendo
o português, porém, a sociedade tem preferência pela língua
oral”.
No que diz respeito à família,
Regiane coloca que tem o lado importante que é a questão do
respeito e do amor, mas ela sentiu necessidade de falar do
sofrimento para o surdo, quando, por inocência, a família
só consegue pensar na expectativa de cura do surdo através
da medicina, porque é um padrão. “Precisei falar de coisas
da minha realidade familiar. Não quero me afastar de minha
família, mas eu sei que foi um sofrimento pra mim me obrigarem
a falar”, questiona.
Na escola
A relação do ser humano com a língua de sinais deve começar
na sala de aula, onde, na opinião de Regiane, ela tem de ser
amplamente ensinada. “Porque eu pelo menos sou surda e brasileira.
Sou cidadã. Votei, por exemplo, no Lula, vivo aqui. Porque
a sociedade não vai aceitar a língua de sinais? Eu devo me
apropriar do português? Só eu? Por que não troca, não inverte
o jogo? Eu também voto”, questiona.
Em sua experiência com alunos
ouvintes, ela observou que alguns aprendiam facilmente a língua
de sinais, mas depois que saíam da escola não tinham mais
contato com surdos e acabavam esquecendo. “A criança aprende
muito rápido. Meu filho aprendeu desde bebê língua de sinais.
É natural, é uma aquisição, um aprendizado que se torna fácil”.
No caso de Regiane, ela conta
que ao entrar na escola percebeu que existia preconceito contra
surdos. “Eu tinha de copiar, escrever, fazer sessões de fono,
treinamento orofacial. Depois, ao entrar na escola de ouvintes,
eu tinha de fazer leitura labial. Os professores ensinavam
e eu não entendia as frases. Eu entendia as palavras, mas
as frases não tinham sentido para mim. Era um vazio. Eu decorava
para a prova e respondia para a prova. Falava até bem, mas
minha escrita era muito diferente. As professoras sempre achavam
algum erro, mas não sabiam explicar, do meu jeito, onde estava
o erro”.
A experiência relatada causou
sentimento de angústia e incapacidade, fazendo com que ela
não tivesse uma boa relação com o português. Foi quando começou
a discutir a questão da língua de sinais em grupo, pois na
época já havia uma discussão ampla sobre o assunto. “Foi quando
percebi que se tratava de uma língua. Eu poderia aprender
o português como uma segunda língua. Mas comecei a perceber
que as frases eram incompletas. Por exemplo: Eu gosto de você.
Eu entendo: eu gosto você. “De” para mim não significa nada.
Na escrita eu omitia porque não entendia essas conjunções
em português. Fui entender bem mais tarde. Por isso prefiro
a língua de sinais num primeiro momento. Sou 100% visual.
Meu foco é pela visão. Não adianta pôr aparelho, implantar.
Parece melhorar, mas o importante é ter uma relação visual”,
desabafa.
Para
ela, se a sociedade soubesse língua de sinais, o surdo teria
mais possibilidade de troca e desenvolvimento. Porque teria
entendimento da língua. Ela conta que seu próprio filho é
ouvinte, mas é intérprete de línguas de sinais. “O surdo sente
prazer nesta relação. É como se tivesse um aceite. Se não
sabe a língua de sinais, é como se forçasse uma aproximação
e eu vivi isso na minha vida inteira. O surdo começa a se
afastar dessas pessoas. Isso é um problema”, declara.
Letras-Libras
Um dos avanços para a educação é a presença de intérpretes
e professor surdo em sala de aula, na opinião de Regiane.
Mas é preciso que essas pesquisas sejam realmente colocadas
em prática e que não aconteçam de forma aleatória. Para isso,
é preciso aumentar o número de pesquisadores surdos nas universidades
brasileiras, pois é raro no país. A pesquisadora afirma que
na Europa este espaço é mais aberto. “Tem avanço muito grande
em relação a essas pesquisas e eu queria que o Brasil tomasse
esse rumo de pesquisa”.
Entre os avanços está o curso
Letras-Libras, da Universidade Federal de Santa Catarina,
o qual Regiane chegou a frequentar dois anos no polo da USP,
coordenado pelo professor Leland McCleary. A segunda graduação,
que seria obtida neste curso, foi interrompida por causa da
aceitação no mestrado da Unicamp. O curso oferece licenciatura
em Letras-Libras e bacharelado em tradução e interpretação.
De acordo com Regina, coordenadora do polo Unicamp, em 2012
a Universidade graduará 28 intérpretes ouvintes e 27 surdos.
Um projeto em trâmite para
implantação de um curso de especialização para a formação
de professores da rede pública deverá ampliar a inclusão de
pesquisadores surdos na universidade. “A ideia é dar condições
para que o professor atue com alunos surdos em contexto de
ensino bilíngue em sala de aula”, explica Regina. Ela acrescenta
que ainda existe maior empenho das universidades privadas
no que se refere à inclusão das Libras em seus cursos de formação
de educadores para atuarem nos ensinos fundamental e médio;
agora é preciso que a universidade pública participe desse
processo para garantir formação gratuita.
“Estamos no terceiro milênio
e talvez as teses também pudessem ser feitas em línguas de
sinais com legenda em português, em forma de documentário
em libras, sem fugir do rigor acadêmico, seguindo as normas
da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT)”, acrescenta
Regina.
A militância
Aos 15 anos, Regiane viu como os discursos familiar, médico
e pedagógico em relação à língua de sinais e à obrigatoriedade
da língua oral estão entrelaçados. Ao vê-la conversando em
língua de sinais com um amigo surdo, em sua casa, a mãe questionou
o fato de não estar falando, pois isso poderia fazer com que
perdesse totalmente a fala. “Perguntei quem teria dito isso,
e ela disse que foram o médico, a fonoaudióloga e a pedagoga.
Isso me fez ver que esses espaços não gostam da língua de
sinais. Mas eu me sentia satisfeita em usar a língua de sinais
nesses convívios. É a minha língua, e percebi que ela era
proibida”, questiona.
Regiane acentua que, ao contrário
de muitas minorias que têm sua luta comunitária, como os índios,
que têm relação harmoniosa porque toda a família é indígena,
os surdos têm momentos solitários em sua luta, pois convivem
com uma família ouvinte, numa escola de ouvintes e é sozinho
quando caminha pelas ruas da cidade. “Então, a impressão que
dá é que não tem um apoio. Não consigo aprender o significado
das coisas. Eu tenho de me consertar para viver em sociedade?
É como se fosse uma boneca que eu devesse consertar? Mas eu
não nasci no Brasil?”.
Um olhar para si mesma fez
Regiane ver que estava presa numa militância e isso, na sua
opinião, é muito difícil. “Essa militância cansa demais pelos
impedimentos que vamos tendo. Mas ainda bem que sou uma pessoa
paciente. Se eu fosse ruim, já teria desistido. Sou braba,
mas sou decidida.
O fato de ter um decreto que
determina a estruturação de 100% dos espaços de convívio,
em especial o escolar, para o desenvolvimento da língua de
sinais já é um avanço, mas é preciso dar condições para que
isso realmente aconteça, na opinião da pesquisadora. O mais
importante, em sua opinião, é que o médico esteja preparado
para ter abertura para essas questões, e as famílias com filhos
surdos aceitem e conheçam as diferenças em relação à surdez.
“O decreto saiu em 2005, estamos em 2010 e apenas agora que
as questões curriculares estão sendo discutidas. O Brasil
é muito grande, mas realmente precisa, não pode ficar esperando
e deixando esses surdos largados. Por exemplo, se eu nascesse
cega também iria aprender da melhor forma”, argumenta.
No consultório
“Levei meu filho ao consultório aos 6 meses de idade para
diagnóstico. Vi que na hora de entregar o resultado, a fonoaudióloga
demonstrou expressão de que iria destruir minha família, de
piedade, dizendo: ‘Olha, seu filho é surdo’. E eu respondi:
‘Meu filho é surdo. Que bom. Estou muito feliz, pois vou poder
ensinar língua de sinais e traçar outro caminho com ele’.
Se ele fosse ouvinte também iria traçar outro caminho, ou
se ele fosse moderado, também traçaria outro caminho. Mas
a fonoaudióloga não aceitou.”
Para Regiane, se os médicos
conhecerem profundamente as questões da língua de sinais,
como funcionam as questões neurológicas do pensamento do surdo,
talvez as orientações sobre o uso da língua de sinais avançassem.
Mas Regiane considera difícil pensar no aceite em relação
à língua de sinais. Os profissionais da medicina, em sua opinião,
devem ser capacitados para orientar melhor as famílias sobre
a possibilidade de usar língua de sinais. “A pessoa tem de
buscar aquilo em que se sinta bem. E fazer disso uma busca
de um caminho. E se os surdos optam pela língua de sinais,
percebemos que a maioria dos ouvintes oprime isso, não aceita.”
De acordo com a pesquisadora,
a Organização das Nações Unidas (ONU) exige que os médicos
conheçam todas as diferenças. “Mas como, se dentro do próprio
curso isso fosse tirado? Isso é um preconceito social forte
e uma grande discriminação no Brasil”, acrescenta.
Alguns médicos até aceitam
e já há profissionais na área de fonoaudiologia que trabalham
com outras vertentes, entre elas a língua e sinais, mas a
maioria da área trabalha com a perfeição, a perspectiva de
cura.
Regiane diz que é preciso
lutar muito ainda. Seu desejo é que seu filho não sofra tanto
quanto ela e tenha as mesmas oportunidades que um ouvinte.
“Quero que eles tenham liberdade para viver neste espaço social.
E que ele tenha a mesma inteligência, a mesma cognição que
uma pessoa ouvinte. Mas os médicos sempre criticam, colocam
olhar negativo. E eu senti isso, é a minha vivência, é a minha
carne que tem esse sofrimento. É como se os pais mandassem,
mas não conhecem nossa diferença, pensam que a língua de sinais
é como se fossem gestos de macaco. Sei que sou diferente,
mas também sei que posso muitas coisas. Mas as pessoas travam,
têm medo, têm aversão”, conclui.
Publicação
Dissertação “Língua, subjetividade e opressão linguística
- interrogações a uma pedagogia (AB) surda”
Autora: Regiane Pinheiro Agrella
Orientadora: Regina Maria de Souza
Unidade: Faculdade de Educação
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Colaborou Vanessa Regina
de Oliveira Martins, intérprete de Libras |
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