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Alimentos seguros, apesar dos riscos
POR: ANTONIO MARCIO BUAINAIN
E ADRIANA CARVALHO PINTO VIEIRA
Uma conversa informal em uma roda de
amigos sobre os riscos que corremos no dia a dia pode levar
alguns ao pânico. A percepção comum é que os riscos cresceram
e nos ameaçam por todo lado. O primeiro lembra que nas ruas
somos vítimas potenciais de todo tipo de criminoso, assaltantes
e motoristas que no Brasil têm licença para ferir e matar
quase impunente. Outro comenta sobre as enfermidades, que
“nos rondam como nunca”: o câncer mata cada vez mais, novas
doenças são detectadas e vivemos quase sempre ameaçados por
uma epidemia em potencial. “Em breve, faltarão animais e continentes
para denominar as gripes,” concluiu preocupado e com exagero
outro participante da roda. “Comer, então, está ficando cada
vez mais dificil,” arremata uma mãe de crianças pequenas que
seguia com interesse a conversa. “Ninguém sabe o que tem nos
alimentos que somos obrigados a consumir; basta ler os rótulos,
só tem produto químico, e a coisa mais difícil de encontrar
é alimento conhecido. Está pior que bula de antidepressivo.”
Um dos amigos argumenta que não é bem assim, que “nossa percepção
de risco é falsa até porque não temos informações suficientes
para estimar a probabilidade de sermos assaltados, atropelados
ou envenenados por um pepino contaminado.”
A psicologia
comportamental comprova que somos impressionáveis com facilidade
por eventos recentes, ainda que não tenham fundamento objetivo.
“Depois do que ocorreu no Japão, deve ter gente aqui no Brasil
pulando da cama ao menor ruído, com medo de terremoto.” Não
convence os demais, que insistem na tese de que viver é cada
vez mais arriscado, e deixa a conversa jogando aos amigos
o paradoxo: “então, como se explica que hoje vivemos muito
mais e que, daqui a pouco, apesar de tudo, o mundo terá 8
bilhões de pessoas e que em alguns países a expectativa de
vida chegará logo logo aos 90 anos? É porque embora o risco
e a ameaça sejam reais, as ocorrências que alimentam nossa
percepção são muito menores do que imaginamos.”
A conversa
hipotética dos leigos se aplica perfeitamente ao tema da segurança
dos alimentos, que voltou ao noticiário com a contaminação
provocada por “inofensivos” brotos de feijão orgânico, que
na visão comum (muito difundida pelos grupos que se opõem
ao agronegócio) são saudáveis quase por definição, por que
são naturais e produzidos sem a intervenção de agrotóxicos,
como são denominados de forma genérica e incorreta todos os
insumos químicos utilizados na agricultura. Não se trata de
minimizar a ameaça e os danos provocados por uma nova linhagem
da bactéria Escherichia coli, altamente infecciosa e tóxica,
com genes que lhe dão resistência a alguns tipos de antibióticos:
foram 41 mortes oficiais e quase 4 mil pessoas infectadas,
apenas na Alemanha, das quais muitas sofrerão consequências
por toda a vida.
Mas o
estrago não se resume aos mortos e feridos. As consequências
econômicas não são pequenas, e dificilmente serão dimensionadas.
Em um primeiro momento, a contaminação foi atribuída a pepinos
importados da Espanha, o que obrigou os agricultores espanhóis
a descartar toda a produção que absorveu semanas de trabalho
e de recursos. Posteriormente, as autoridades sanitárias da
Alemanha descobriram a bactéria E.coli em folhas de alface,
em uma área da região de Fürth, na Baviera, no Sudeste do
país, e finalmente chegaram ao verdadeiro vilão: o broto de
feijão. O fato é que, embora o foco tenha sido localizado,
a percepção de risco de contaminação se espalhou rapidamente
por toda a União Europeia, o segundo maior mercado de frutas,
legumes e verduras frescas. Da noite para o dia, o saudável
virou possível veneno, as feiras se esvaziaram e as mercadorias
sobraram nas gôndolas dos supermercados e nas cada vez mais
populares lojas de produtos naturais. Fossem esses produtos
comercializados em bolsas, a queda teria sido maior do que
a quebra da bolsa de Nova York em 1929. Qual o custo desta
paralisação ninguém sabe.
Tivesse
ocorrido aqui no Brasil, onde ainda engatinhamos no trato
da questão sanitária, seria fácil responsabilizar o “descaso”
das autoridades responsáveis, a “ganância” de produtores sem
compromisso social, o “agronegócio” e até a “ignorância” do
consumidor, que não se preocupa com a qualidade e olha apenas
o preço. O problema é que ocorreu na Alemanha, país onde se
supõe que as instituições funcionem quase como um relógio
suíço. Independentemente da eventual responsabilidade do relojoeiro,
isto sugere, de um lado, a enorme dificuldade de controlar
e garantir a segurança dos alimentos em um nível que elimine
os riscos, e de outro, uma possível falha na própria engrenagem
do seu sistema de segurança.
A sucessiva
ocorrência de episódios sanitários negativos desde o final
da década de 1990, em particular alimentos contaminados –
metanol no vinho, salmonela em ovos, chumbo no leite em pó,
benzeno em água mineral, dioxina em frangos (gripe aviária),
uso ilegal de hormônios na produção de carne bovina e de insumos
que afetam a qualidade do produto final, como o uso de rações
que levaram à doença da vaca louca –, que tiveram ampla repercussão
na imprensa mundial, contribuíram tanto para difundir uma
onda de insegurança e de questionamentos sobre a qualidade
dos alimentos, como para elevar o nível de preocupação e alerta
em relação à qualidade sanitária dos produtos. O conceito
de segurança dos alimentos, até então restrito ao ambiente
de tecnólogos, transbordou para a sociedade e desde então
vem sendo objeto de políticas e regulamentações, nos âmbitos
internacional e nacional. Outro subproduto dessas crises foi
a mudança na própria percepção dos consumidores sobre a segurança
dos alimentos, com a valorização do “natural” e o questionamento
do “processado”, o primeiro tido como automaticamente saudável
e o segundo como perigoso.
Ambos
os juízos são falsos no contexto da vida moderna. O risco
envolvido em comer sashimi preparado com peixe fresco em uma
vila de pescadores é muito diferente do risco de degustá-lo
em um restaurante em Campinas, preparado com um “peixe fresco“,
produzido sem hormônios, mas que fez uma pequena viagem de
centenas ou milhares de quilômetros para chegar ao mercado
local. Do outro lado, não se pode desconhecer que o processamento
e a industrialização dos alimentos contribuíram para eliminar
e ou reduzir muito os riscos de contaminação alimentar e foram
decisivos para a evolução da humanidade.
A insegurança
provocada pela contaminação de alimentos deságua em pressões
sociais que se traduzem na formalização de uma institucionalidade
complexa, que regula todo o processo de produção dos alimentos,
com a introdução de mecanismos de identificação e rastreabilidade,
segregação de produtos, certificação e padronização, e que
tem custos elevados para toda a sociedade sem necessariamente
aportar benefícios adicionais. O padrão é conhecido: as ocorrências,
independentemente de uma avaliação objetiva do risco real,
são respondidas com novas regras, proibições, indicadores
e padrões. E na dinâmica social das sociedades democráticas
contemporâneas estas regras são para valer, criam direitos
e deveres, ônus e benefícios, em torno dos quais se organizam
e se degladiam (e desorganizam) grupos políticos e sociais
com distintas visões do mundo.
A União
Europeia tem sido campeã nesta
área. Ao longo dos anos 1990, criou extensa legislação que
regula cada detalhe da produção e comercialização de produtos
alimentares: introduziu normas e mecanismos de controles por
meio de medidas para melhorar as condições de saúde pública
e de higiene dos alimentos; normas sobre rotulagem; regras
sobre sanidade animal e vegetal; regras para o bem-estar animal;
controle dos resíduos de pesticidas e agrotóxicos, bem como
aditivos na alimentação; e informação nutricional aos consumidores,
entre outras medidas. Nada disto impediu a crise da vaca louca,
que já revelava a impossibilidade de garantir a segurança
dos alimentos por meio apenas de imposições de regras sobre
um processo produtivo que não para de se transformar sob impulso
da concorrência e da inovação tecnológica. A aplicação dura
do princípio da precaução, além de não ser suficiente para
eliminar os riscos, em muitos casos tem apenas o efeito negativo
de atrasar e encarecer inovações que atendem a demanda da
sociedade.
Foi neste
contexto que a UE assumiu o princípio, correto, de que a segurança
dos alimentos deve ser permanentemente monitorada, o que exige
a introdução de mecanismos da rastreabilidade ao longo de
toda a cadeia de forma a permitir tanto a pronta identificação
de problemas como a ágil mobilização para retirar os lotes
afetados do mercado. É difícil apontar onde falhou o controle
de qualidade do processo de produção que resultou na contaminação
dos brotos de feijão; o episódio mostra, mais uma vez, a quase
impossibilidade de garantir que alimentos contaminados não
cheguem aos mercados. O que sim falhou de forma clara foram
os mecanismos de detectação da ameaça e de intervenção para
controlar os danos. Foram quase duas semanas para chegar ao
broto de feijão, que continuou no mercado enquanto o inocente
pepino era crucificado. É esta a maior fragilidade do sistema
de segurança alimentar atual: detecção de ameaças e controle
realista de risco e capacidade para reduzir os danos. É nesta
área que temos que investir mais, inclusive em formação, em
pesquisa e desenvolvimento e em infraestrutura de tecnologia
industrial básica necessária.
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Antonio Marcio Buainain é professor livre
docente do Instituto de Economia (IE) da Unicamp e pesquisador
do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas
Públicas, Estratégia e Desenvolvimento (INCT/PPED)
Adriana Carvalho Pinto Vieira é pós-doutoranda
do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp e pesquisadora
do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas
Públicas, Estratégia e Desenvolvimento (INCT/PPED)
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