Geólogos buscam modelo que ajude
a prever variações
climáticas no planeta e elaborar estratégias
de defesa
LUIS
SUGIMOTO
Uma
pesquisa realizada por geólogos da Unicamp permite
reconstruir o habitat de dinossauros e crocodilos que passeavam
pelo Estado de São Paulo entre 84 e 65 milhões
de anos atrás, no período denominado Cretáceo.
Os principais fósseis comprovando a presença
destes animais na América do Sul, encontrados no
complexo rochoso do Grupo Bauru (que se estende pelo interior
de São Paulo e parte dos estados de Goiás,
Minas Gerais, Mato Grosso do Sul e Paraná), estão
preservados em vários museus paulistas e mineiros.
Dinossauros e crocodilos compõem tema atrativo para
leigos. Entretanto, a maior contribuição científica
deste estudo está no melhor entendimento de como
as alternâncias climáticas se sucedem na superfície
da Terra e na proposição de um modelo para
prever tais mudanças e elaborar estratégias
mitigadoras - por exemplo, frente à desertificação
progressiva verificada hoje em várias regiões
da Terra. A linha de pesquisa, que tem apoio da Fapesp,
já resultou em uma dissertação de mestrado
e na publicação de três artigos em revistas
internacionais (inclusive na Sedimentology, a mais influente
da área) e de um quarto artigo em revista nacional.
"Constatamos que no Cretáceo Superior o território
paulista formava uma superfície achatada, cruzada
por pouquíssimos rios efêmeros e caracterizada
por um clima em geral seco, mas que alternava períodos
mais áridos e mais úmidos", explica Giorgio
Basilici, professor do Instituto de Geociências (IG).
Ele coordena o projeto do qual participam seu aluno Patrick
Francisco Führ Dal'Bó, autor da dissertação
de mestrado e que orienta também no doutorado, e
os professores Rômulo Simões Angélica
(UFPA) e Francisco Sérgio Bernardes Ladeira (IG).
Segundo
o docente da Unicamp, a proposta inicial da pesquisa era
a abordagem clássica de uma unidade rochosa antiga,
em que ele analisaria a deposição de sedimentos
pelo vento ou por erosão e Patrick Dal'Bó,
a formação de paleossolos (solos antigos).
"Logo observamos que no Grupo Bauru havia uma alternância
de paleossolos e de depósitos eólicos, o que
representa um registro geológico de momentos climáticos
diferenciados. Decidimos, então, investigar a interrelação
desses dois processos em ambiente árido ou semiárido".
A pesquisa demonstrou que nos períodos mais secos
esta área aparecia como um deserto sem dunas, a exemplo
dos lençóis de areia também formados
pelo vento. "Já nos períodos mais úmidos,
a mesma região era coberta por vegetação
- que podia chegar a constituir uma savana ou mesmo uma
floresta - e os rios traziam água, embora com fortes
variações sazonais. Eram nestas condições,
mais favoráveis à vida e diferenciação
dos organismos, que viviam os grandes répteis".
A propósito, o pesquisador observa que os crocodilos
daquela época não eram tão dependentes
da água, como pôde comprovar em visita ao Museu
de Paleontologia de Monte Alto (SP), quando se surpreendeu
com um esqueleto do réptil integralmente preservado,
o que é raro. "Ele se soterrou voluntariamente.
Foi encontrado a 50 graus, enfiado diretamente na rocha.
Aqueles crocodilos, como os atuais, escavavam uma toca para
botar seus ovos ou hibernar no período seco - os
mais velhos podiam morrer durante a hibernação".
O próximo objetivo dentro da linha de pesquisa,
de acordo com Giorgio Basilici, é saber com que frequência
temporal o clima variava na região. "O modelo
que geramos ainda não possui uma calibração
temporal. Também não sabemos com certeza,
ainda, quais fatores externos produziram a variação
climática, como por exemplo, se foram terrestres
ou extraterrestres. Para isso, precisamos de mais dados
e de outras ferramentas que não constituem a nossa
praxe de análise".
Chave de leitura
Os
geólogos do IG percorreram uma área de 10
mil quilômetros quadrados para estudar paredões
de rocha arenosa do Grupo Bauru. No paredão, que
para o leigo parece apenas um recorte na montanha, os especialistas
decifraram registros geológicos sobre o passado remoto.
"Em nossa pesquisa definimos uma 'chave' para ler as
ciclicidades do clima durante o Cretáceo superior.
A chave consiste na análise física e geoquímica
das rochas arenosas e na interpretação dos
fatores que controlaram os processos de deposição
de sedimentos e de formação de solos".
Para ilustrar o que é possível ler nas rochas,
Giorgio Basilici recorre à análise do registro
sedimentar. "O depósito eólico só
se formou quando o vento podia erodir, transportar e depositar
a areia, ou seja, quando a superfície era desértica.
Com a mudança para o clima mais úmido, começou
a colonização do substrato pelas plantas (que
funcionaram como barreira à erosão eólica)
e sobre o depósito de areia se formou um solo. Depois,
intercalaram-se outros ciclos mais secos (com ação
dos ventos e deposição de areia) e mais úmidos
(com vegetação, maiores índices pluviométricos
e rios com água)".
Foi nesta fase de análise física que Basilici
e Dal'Bó vislumbraram nos paredões um modelo
de variações climáticas, visto que
ricas informações sobre fatores ambientais
estão registrados diretamente nas rochas. "Trata-se
de uma pesquisa muito interessante do ponto de vista acadêmico,
pois a interação entre os estudos de solos
antigos (paleopedologia) e do registro sedimentar é
um método pouco desenvolvido nas ciências de
geologia sedimentar".
Petrografia
O doutorando Patrick Dal'Bó, no momento, vem recorrendo
à petrografia para analisar lâminas de amostras
de rochas no microscópio óptico e à
geoquímica para verificar a distribuição
dos elementos químicos nos paleossolos. "Estamos
refinando nosso trabalho visando definir quão seco
e quão úmido foram esses períodos.
Depois, pretendemos dotar este modelo de variações
climáticas com o caráter temporal, o que é
bem mais complicado", esclarece.
Em seus cálculos sobre índices climáticos,
Dal'Bó chegou a uma paleoprecipitação
em torno de 700 milímetros de chuva, o que permite
classificar o clima dos períodos mais úmidos
do Cretáceo Superior como subúmido - ou subtropical,
na classificação de hoje. "Em outros
tipos de solo, com concentrações de carbonato
de cálcio, nossos registros vão de 150 mm
a 200 mm de precipitação, indicando um clima
passando de semiárido para árido (abaixo de
100 mm), bastante seco e com pouca vegetação".
Parece impossível medir índices pluviométricos
a partir de fatias de rocha com a espessura de 30 micra
(1 micron equivale à milésima parte do milímetro)
e de análises geoquímicas. Giorgio Basilici,
no entanto, mostra a imagem colorida de uma lâmina
revelando concentrações de argila e carbonato
de cálcio ao redor de um grão de quartzo.
"A chuva que se infiltra no solo leva argilas e compostos
em solução que, quando a água evapora,
deixam marcas como da gota de salmoura. Se chovia pouco,
menos argila era transportada da superfície".
O docente do IG admite que o clima é um tema que
às vezes foge do escopo de trabalho dos geólogos,
sempre envolvidos com os minerais e outras atividades ligadas
à terra. Ressalva, também, que esta pesquisa
não busca informações de caráter
aplicativo diretamente. Contudo, as amostras do complexo
rochoso indicam concentrações exploráveis
de carbonato de cálcio - usado como corretivo de
solo na agricultura - em Goiás, no Triângulo
Mineiro e nos arredores de Marília. "Também
descobrimos concentrações de paligorsquita,
uma argila com importantes aplicações industriais".
Desertos atuais
A pesquisa incluiu quinze dias de trabalho no vale de Las
Salinas, ao norte de San Juan, na Argentina. Segundo Basilici,
trata-se de uma área deprimida em consequência
da atividade tectônica que soergue as montanhas ao
redor. "As rochas das montanhas são reduzidas
a pequenos grãos de areia, que se acumulam progressivamente
na planície transportados pelo vento. A pluviosidade
é de menos de 70 milímetros e, como estamos
estudando um sistema desértico antigo, sugeri a viagem
para aplicarmos um método de pesquisa denominado
atualístico: observar fenômenos atuais para
ler fenômenos passados; observar o que já está
formado se formando".
Vendo os processos em formação em Las Salinas,
os pesquisadores da Unicamp constataram que, quando chove
(no máximo, uma vez por ano), a água desce
a montanha trazendo detritos e alaga todo o vale. "É
uma enchente que não forma rios. A água suja
fica estacionada e, quando se infiltra ou evapora, deixa
uma sutil camada de lama. Essas camadas se sobressaem nas
rochas e cada uma delas indica uma enchente. As empresas
agroindustriais argentinas ou estrangeiras que destroem
a parte superficial para plantar vinhedos, deveriam se interessar
em conhecer os fatores de desertificação da
área e buscar condições de equilíbrio".
Ciclos de Milankovitch
O
empenho dos geólogos Giorgio Basilici e Patrick Dal'Bó
em determinar a duração dos períodos
mais secos e mais úmidos do Cretáceo se deve,
também, à possibilidade de aplicar os chamados
ciclos de Milancovitch com o modelo de variações
climáticas que ambos propõem. Milutin Milankovitch,
cientista sérvio, é autor de uma teoria associando
variações climáticas com diferentes
movimentos orbitais da Terra, que apresentaria oscilações
em seu eixo e se afastaria ou se aproximaria mais do Sol
em determinados períodos de tempo, o que afetaria
a incidência de raios solares em regiões do
planeta.
Basilici explica que, seguindo esta teoria, uma menor quantidade
de raios solares resultaria em aumento da circulação
dos ventos nas áreas tropicais, afastando as nuvens
que trariam a chuva. "Como essas variações
são cíclicas, isto explicaria a alternância
entre fases mais secas e mais úmidas. O clima do
Ceará, durante os períodos glaciais, era muito
mais seco do que atualmente. Já o Saara, hoje possui
áreas onde existem dunas fósseis (que não
se movem) cobertas por vegetação ainda que
rala, indicando um período mais úmido no passado".
No entanto, segundo Basilici, existem processos de desertificação
no planeta que sugerem a existência de outros fenômenos
que causariam tais variações climáticas.
"No oeste dos Estados Unidos existem áreas achatadas
e de vegetação rala, semelhantes ao que foi
a região do Grupo Bauru. Elas atualmente estão
se tornando desérticas, quando deveriam passar por
um período mais úmido se efetivamente a Terra
está se aquecendo. O tema dos ciclos climáticos
é ainda enigmático".