Livros de auto-ajuda consumidos
por educadores são tema de estudo
Pesquisa mostra que obras orientam inúmeras atividades pedagógicas
MANUEL ALVES FILHO
Os livros de auto-ajuda são produtos semiculturais cujo conteúdo é invariavelmente pontuado por frases feitas e histórias sem profundidade que beiram o risível. Apesar dessas características, essas obras não apenas passeiam com frequência pelas mãos de educadores brasileiros, como orientam vários de seus pensamentos e atividades pedagógicas. A constatação, feita em tom crítico, é do filósofo e consultor em educação Arquilau Moreira Romão, que defendeu recentemente a tese de doutorado “Filosofia, educação e esclarecimento: os livros de auto-ajuda para educadores e o consumo de produtos semiculturais”. Na entrevista que segue, o autor do trabalho acadêmico, que foi orientado pelo professor Cesar Nunes, da Faculdade de Educação (FE) da Unicamp, fala das principais características dessas publicações, dos interesses que estão por trás delas e de como esses textos prestam o que considera um desserviço ao exercício da reflexão e ao desenvolvimento do espírito crítico.
Jornal da Unicamp - Como surgiu o interesse pelo tema?
Arquilau Moreira Romão - O interesse pelo tema deriva do nosso itinerário pessoal, marcado pelo envolvimento com adolescentes e jovens no 2º e 3º graus, ministrando aulas de Filosofia, e também em função da participação em muitos congressos e eventos educacionais no país. Em tais situações, deparamo-nos com a realidade de pessoas escolarizadas – e, não raro, bem intencionadas –, bebendo receitas de realização pessoal em livros de auto-ajuda que vão em direção diametralmente oposta ao lema filosófico do “conhece-te a ti mesmo”. Encontramos coordenadores que iniciam trabalhos de estudos citando tais autores, vemos a utilização dos textos de auto-ajuda em reuniões de estudo, observamos cópias de textos de auto-ajuda pregados em murais de salas de estudo e encontramos professores em cujas mãos estão postos livros de auto-ajuda.
Com freqüência, ouvimos perguntas, afirmações e interpretações de professores baseadas nos livros de auto-ajuda como se fossem citações de autoridade. Também notamos a massificação dessas obras com o fenômeno de um mercado editorial crescente não apenas nas livrarias de shoppings, mas, sobretudo, dentro das escolas, sendo consumidas como se tais obras garantissem algo, assegurassem um caminho menos tortuoso, emblematizassem suavidades e levezas ao professor submerso em uma realidade. A pesquisa também é fruto da nossa experiência pedagógica como professor de Filosofia e como conferencista em cursos de formação para professores.
Ao longo dos últimos vinte anos, em escolas da rede particular de ensino de Ribeirão Preto e região, firmamos a prática de fomentar, na sala de aula, um espaço de reflexão e indagação, exercícios tão caros à Filosofia. Nasceu daí nossa primeira escuta do senso comum e da consciência ingênua, pois muitos alunos repetiam quase literalmente dizeres da mídia e de instituições como a família, a Igreja e o governo.
Ainda no mestrado, esboçamos uma reflexão sobre a inclusão da prática e do exercício filosóficos na sala de aula, sobre a escuta da voz dos alunos e sobre a maneira como eles falam de si, de seu tempo, de seu país, de seu mundo, enfim. Concluímos que a falta da disciplina Filosofia vai muito além de uma carência curricular, mas representa uma maneira de silenciar a indagação, reflexão, crítica e questionamentos no chão da escola, lugar privilegiado para ser o útero de todas as dúvidas.
JU – Como a pesquisa foi desenvolvida?
Arquilau Moreira Romão - Nosso trabalho foi construído em duas etapas: reflexão teórica sobre os postulados da Escola de Frankfurt e análise dos conteúdos dos livros de auto-ajuda. Na primeira, buscamos investigar os processos pelos quais os conceitos de indústria cultural, semicultura e semiformaçãotêm relação com o universo docente da escola pública, em geral marcado pela ação de um contingente de professores de formação precária e pela execução de projetos pedagógicos inconsistentes, esvaziado pelas políticas públicas educacionais de coloração neoliberalizantes. Nesse universo, expande-se a literatura de auto-ajuda de cunho educacional. A forma como esse tipo de obra tem se dirigido a educadores e pais vende a imagem de um saber científico, sem que tenha o rigor de evidências, a acuidade crítica e a revisão de literatura característicos do fazer científico.
Esses livros nutrem-se preferencialmente de fórmulas prontas de oferta da felicidade e receituários de sucesso, que teriam apenas o “eu”, o referencial iconográfico do sujeito e a sua vontade de realização pessoal como condicionamento. Na segunda, procedemos as análises das obras de autores de auto-ajuda voltados para educação, quais sejam: Gabriel Chalita, Hamilton Werneck, Içami Tiba, Augusto Cury. Escolhemos vinte livros dos mais consumidos por professores e fizemos um levantamento dos temas que mais se repetem, dos tópicos mais recorrentes e das mensagens mais freqüentemente anotadas por estes autores.
JU – Os livros de auto-ajuda encontram grande aceitação por parte dos leitores em geral. O mesmo ocorre com os educadores em particular?
Arquilau Moreira Romão - Sim, o livro de auto-ajuda é apresentado para o professor como a chave do sucesso centrado na competência individual, deslocado de qualquer contexto sócio-histórico, pontuado por conteúdos de frases-feitas, idéias e temas do senso comum e histórias sem profundidade que beiram o risível. Os professores, como reféns desse tipo de literatura, acreditam que estão consumindo um saber de última geração, que estão tendo acesso a novas metodologias de ensino, quando, na verdade, estão sendo cooptados pelo que existe de mais sucateado pela ideologia neoliberal, ou seja, por uma ideologia que tenta apregoar a abolição das grandes narrativas, do coletivo e das categorias modernas, impondo a superficialidade, o verniz ralo do individualismo e das soluções particulares e da felicidade dos consumismos da atual indústria cultural.
JU – Que interesse especial os educadores demonstram por esse tipo de gênero?
Arquilau Moreira Romão - Não trabalhamos com entrevistas dirigidas aos professores, por isso não temos condições de especular sobre o que move os educadores a buscarem tais livros. No entanto, investigando os conteúdos dos livros de auto-ajuda, vimos que propõem receitas para atingir o sucesso na conquista da emoção de ensinar e aprender, ou seja, sinalizam fórmulas para abrir as janelas boas dos alunos, usando até mesmo música suave, tranquila, relaxante para isso. Pretendem instalar mudanças de comportamento dentro da escola, aplicando a lei do afeto e dos sentimentos.
Anotamos quão ilusória é essa solução. Ainda que consideremos que a música tenha um papel considerável na educação dos sentidos de um aluno, não achamos razoável atribuir a ela a chave de todas as conquistas dentro do espaço escolar, pois muitas questões, no chão da escola, fogem ao ato de “treinar” a emoção dos alunos (e dos professores) e têm relação com políticas educacionais, as quais o professor não tem poder de alterar.
JU – Os educadores aplicam os “ensinamentos” desses livros em suas práticas cotidianas?
Arquilau Moreira Romão - Interessa-nos investigar quem é o professor que busca ensinamentos em um livro de auto-ajuda. Esse professor, que hoje enfrenta as salas de aula cada vez mais heterogêneas, que está pressionado para demonstrar índices de produtividade e que se coloca como o domador de tecnologias high tech, é o mesmo que consome livros de auto-ajuda, que se emociona com soluções fantasiosas para os dilemas da carreira, que repete os hinos de amor e as histórias publicadas como verdadeiras pelos livros de auto-ajuda. E o faz não porque seja mal intencionado ou porque queira transitar no limite do mínimo, mas porque é resultado de políticas educacionais compensatórias que substituíram, barganharam e sabotaram o princípio primeiro da educação: esclarecer o homem para que ele transforme a natureza, a si mesmo e a sociedade em que vive. Estamos sustentando que esse professor foi gestado e modelado pela mesma escola pública que hoje ele ajuda a construir. Ao longo de anos, ele foi seu aluno fiel, permanecendo atento às campanhas de prevenção de doenças, de combate ao piolho, de doação do leite em pó, de atendimento odontológico, de campanha do meio ambiente.
Ao lado disso, marcamos que foi, no ventre da educação pública, que ele aprendeu a substituir as horas de dedicação à leitura e formação das bases da cultura clássica, pelas horas de entretenimento barato, pela informação aplicável na realidade e pela absorção de um ensino tecnificado e instrumentalizado. O aluno de antigamente, que aprendeu em Organização Social e Política Brasileira (OSPB) quão necessário era não discutir política, ainda que sob a enganação de que o fazia em aulas de moral e cívica, é o mesmo que hoje, na sua sala de aula, apela para explicações moralizantes, emocionais e religiosas para explicar o seu “karma” de professor. É ele que, não apenas conta os meses para se aposentar, mas, pior, fala isso publicamente; é ele que enuncia sobre os bons tempos de outrora em que os alunos obedeciam e “a gente ensinava de verdade”; é ele que saboreia o travo amargo da auto-estima baixa de sentir-se menos diante dos alunos e não saber explicar os porquês a partir de uma perspectiva histórica.
JU – A seu juízo, essas obras podem eventualmente trazer contribuições à educação formal?
Arquilau Moreira Romão - Não vemos contribuição destas obras ao processo de formação do professor. Pelo contrário, a explosão dos livros de auto-ajuda justifica-se como sendo um dos pilares sustentadores da ideologia neoliberal, que apregoa as saídas individuais para problemas estruturais da sociedade e que cria, para o sujeito, a falsa imagem de possuir todas as soluções em seu interior, em sua mente, em seus afetos, escamoteando a conjuntura sócio-histórica em que o professor vive.
JU – Em sentido contrário, que prejuízos esses livros podem eventualmente trazer à educação formal?
Arquilau Moreira Romão - Os livros de auto-ajuda para educação cumprem apenas a função anestésica de inebriar os indivíduos, tirando-lhes a capacidade crítica. Sabemos também que estas obras têm sido consumidas em reuniões pedagógicas, de planejamento e de estudo dos docentes como traço supostamente motivacional; sabemos ainda que a educação apoiada no viés ideológico neoliberal não se preocupa com as radicais reflexões sobre os processos, mas consolida-se apoiada nos produtos avaliatórios e estatísticos.
JU – Quais as principais características desses livros de auto-ajuda? O conteúdo e a linguagem, por exemplo, são semelhantes?
Arquilau Moreira Romão - Os livros de auto-ajuda promovem um desligamento da realidade concreta, aventando a emergência de uma instância iluminada pelo pensamento positivo, místico, sagrado, pelo afeto, sucesso e felicidade e nutrindo seus leitores de uma espécie de selo de certificação de que as pasárgadas são possíveis no aqui e agora dos sujeitos. Um primeiro modo de apresentar os títulos de auto-ajuda vende o “como” ao modo de uma receita com passos a serem seguidos e com o resultado esperado cheio de confirmação. Nesse bloco está posta a forma como o autor vê o seu consumidor: alguém a receber um receituário cujas prescrições estabelecem modos de comportamento e de ação.
O indivíduo é apenas um consumidor que deve seguir a receita sem questionamento e sem reflexão. Sobre isso nos lembramos do conceito de razão instrumental, aqui retomado para esclarecer como tais receitas de sucesso, felicidade, plenitude, equilíbrio, saúde e, no nosso caso, realização do processo educacional, sabotam a crítica emancipadora e a possibilidade de entendimento da vida social. Exemplos disso são os títulos: Como fazer amigos e influenciar pessoas; Como conseguir tudo o que você quer da vida; Como fazer as pessoas gostarem de você à primeira vista; Como obter o máximo de si mesmo; Como enfrentar situações de perda; Como desfrutar sua vida e seu trabalho; Como alcançar a realização plena; Como desenvolver o poder de sua mente; Como criar uma vida encantada; Como atrair dinheiro etc.
JU – O senhor diria que são produtos que vendem ilusões?
Arquilau Moreira Romão - Ao oferecer receitas prontas e apagar a dúvida e a crítica em torno delas, os livros de auto-ajuda vendem ilusões e fantasias. A mais gritante delas está no fato de propor que todos igualmente têm o mesmo poder na nossa sociedade, sociedade esta crivada de injustiças, assimetrias de poder, diferenças entre classes sociais. Também se promove a inversão de atribuir à pessoa a culpa pelo seu não-poder de realização em todos os sentidos. Enfim, se alguém não alcançar o sucesso, é porque não quer ou porque é incompetente para tal. Outros exemplos em destaque são: O poder infinito de sua mente; O poder do pensamento positivo; O poder do subconsciente; O poder dos anjos; Você pode ser criança.
O poder evocado nos títulos constrói uma imagem de realização fantástica e mágica, que reclama pouco investimento a não ser a leitura do livro. Isto quer dizer que apenas lendo o livro é possível tornar-se brilhante, rico, saudável, feliz, iluminado e sonhador. Como um maná a cair do céu do mercado editorial, esses títulos promovem a emergência de provérbios ou verdades universais acima que de qualquer suspeita ou dúvida. Exemplo do que estamos falando são os títulos: O sucesso não ocorre por acaso; A arte do perdão; O sucesso está no equilíbrio; O homem é aquilo que ele pensa; Terapia do coração aberto; Só o amor pode avançar; A luz que vem do céu...
JU – Que livros o senhor analisou ao longo da pesquisa?
Arquilau Moreira Romão - Estudamos vinte obras de auto-ajuda para educadores, o primeiro grupo de Gabriel Chalita, ex-secretário da Educação do Estado de São Paulo, cujas obras escolhidas são Educação – a solução está no afeto; Histórias de professores que ninguém contou (mas que todo mundo conhece); Pedagogia do amor - a contribuição das histórias universais para a formação de valores das novas gerações; Educar em oração; e Os dez mandamentos da ética. Do doutor Augusto Cury, médico com livros de muitas edições, escolhemos duas obras, visto que várias outras diziam respeito a temas distantes do universo escolar: Filhos brilhantes, alunos fascinantes e Pais brilhantes, professores fascinantes. Do também médico Içami Tiba, escolhemos os livros que dialogam com professores, mas trazem receitas que também podem servir aos pais: Adolescentes: quem ama, educa!; Disciplina limite na medida certa - novos paradigmas; Educação e amor; Ensinar aprendendo - novos paradigmas; e Quem ama, educa! Por fim, de Hamilton Werneck, encontramos o maior volume de livros, editados por empresas reconhecidas e de circulação nacional: Assinei o diploma com o polegar - A construção da cidadania na escola; Como vencer na vida sendo professor, depende de você; Ensinamos demais, aprendemos de menos; O profissional do século XXI; Ousadia de pensar; Prova, provão, camisa de força da educação; Se você finge que ensina, eu finjo que aprendo; e Vestibular: eu quero, eu posso, eu vou passar. Após a leitura dessas obras, escolhemos quatro feixes temáticos que foram os mais repetidos, reincidentes e constantes no conjunto estudado. Selecionamos os conteúdos e os fragmentos e partimos para análise dos mesmos, ligando-os com os postulados da teoria crítica, dos estudos sobre sociedade de massa e sobre a auto-ajuda em geral, buscando afunilar nossas análises em torno das obras destinadas a educadores.
JU – No título da sua tese, o senhor se refere aos livros de auto-ajuda como “produtos semiculturais”. Pode explicar melhor esse conceito?
Arquilau Moreira Romão - Criar a lógica da mesmice e alimentá-la a cada novo produto faz parte da engrenagem da indústria cultural. Nesse contexto, a arte serve apenas para adestrar o gosto e o consumo, reforçando o lucro dos dominadores, mantendo, no fosso da ignorância, um conjunto amorfo e indiferente de homens eufóricos por consumir e trabalhar para acumular dinheiro para, de novo, consumir, desprovidos do fomento à faculdade crítica. Inferimos que o enfraquecimento da consciência crítica e da razão emancipadora transformou o indivíduo em mero repetidor, ventríloquo da indústria que está sempre pronta a produzir novos objetos de semicultura para o consumo instantâneo.
Esse consumo de si mesmo diz respeito ao modo como as mercadorias compradas e engolidas fazem coro com o abandono do uso da razão. Acelerado o comprar e o consumir da semicultura, o indivíduo semiformado entrega à esfera da troca de mercadorias a sua capacidade de discernimento, ficando atado em uma teia sem fim, em que as leis de mercado só levam em conta o lucro e não têm a dimensão do social. Assim sendo, falar de sociedade de consumo e da massificação de objetos culturais (no nosso caso os livros de auto-ajuda para educação) não se restringe a uma mera escolha de pessoas endinheiradas ou de trabalhadores incluídos na rota do consumo, mas abrange um debate mais amplo em que pesam as relações sócio-históricas-ideológicas e em que se leve em conta a lógica do capitalismo atual.
JU – Ainda assim, esses livros vendem muito. Onde estaria o “trunfo” desse tipo de literatura?
Arquilau Moreira Romão - Em relação aos títulos dos livros de auto-ajuda, observamos outra regularidade: vários deles marcam a chegada de um tempo em que os manuais, os guias e as cartilhas estão em alta. Parece que essas obras regularizam, normatizam e padronizam comportamentos compatíveis com a felicidade, que longe de erigirem sombras de dúvidas, dissipam-nas. O alarde de soluções, para todos os tipos humanos, todos os conflitos derivados de estados civis, todos os temas, todos os problemas etc, parece-nos ser o trunfo desse tipo de literatura; trunfo este municiado pela semiformação e semicultura capazes de banalizar o mau gosto, disseminar obras rasteiras, vender e fazer consumir pílulas de alienação para que os homens continuem a reproduzir seus papéis sociais sem mudança, sem que a chama da transformação das relações seja alimentada.