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Do ‘call center’ ao laudo a distância
Pesquisa mostra que país
vira rota da terceirização internacional
Uma nova onda de empregos está colocando o Brasil na rota
preferencial da terceirização internacional (offshoring).
Entre as razões que explicam o fenômeno, estão o baixo custo
da mão de obra, a isenção de taxas e impostos, e o trabalho
qualificado. Em vários nichos isso já vem acontecendo, segundo
a socióloga da Unicamp Selma Venco. As novas atividades, afirma,
são agilmente desenvolvidas a distância, conquistando maior
espaço nos mercados de tecnologia da informação (TI) e de
call center, ainda liderados pela Índia. Tal tendência foi
observada quando a pesquisadora analisou a Divisão Internacional
do Trabalho (DIT) baseada na tecnologia, em sua pesquisa de
pós-doutorado, supervisionada pelo professor Ricardo Antunes,
do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).
Primeiramente, a socióloga
investigou o trabalho dos desenvolvedores de software e seus
respectivos produtos. Em seu processo de busca, verificou
que gerentes vão até outros países e identificam as principais
demandas de atividades. “Esta sistemática cresceu significativamente
entre 2007 e 2009”, avalia. Mas o nicho que surpreendeu a
pesquisadora foi a medicina. Ela centrou seu foco em um dos
dois laboratórios brasileiros que promovem análises médicas
que envolvam diagnóstico por imagem, cujo segmento é o de
telerradiologia – utilização das tecnologias de informação
e meios de comunicação para diagnóstico a distância ou emissão
de uma segunda opinião através do envio digital de imagens.
Os exames são feitos em Portugal e enviados pela internet
aos médicos brasileiros, para que estes forneçam o laudo.
Selma Venco esteve em Portugal,
onde entrevistou representantes da clínica contratante do
laboratório brasileiro, para saber o porquê de tal decisão,
e em São Paulo e no Rio de Janeiro, onde ouviu a parte contratada.
Conforme apurou, a medicina em Portugal é estatal, mas a clínica
é essencialmente privada, mantendo convênio com o Estado em
exames como os de raios-X, tomografia e ultrassom.
Na clínica portuguesa, a resposta
foi que faltavam radiologistas portugueses para dar conta
de uma medicina cada vez mais fundamentada em exames. Os entrevistados
esclareceram que a maioria das universidades também são controladas
pelo Estado, as quais, segundo a gerência, cedem à pressão
do lobby dos médicos radiologistas para não ampliar o número
de vagas para esta especialização, por se tratar de “uma reserva
de mercado”.
Ainda conforme a gerência,
após experiências que não lograram êxito com a Índia e a Bulgária,
a clínica portuguesa optou pelo Brasil. A socióloga crê que
isso decorreu de uma conjunção de fatores: a escolha de um
conceituado laboratório brasileiro, o fuso horário que admite
contatos durante o dia, ao mesmo tempo em que se imprime agilidade
ao resultado, e a redução de custos das operações.
Idioma
Criação de postos de trabalho
ou intensificação do trabalho? As tentativas de terceirização
internacional com a Índia e a Bulgária contavam com o baixo
custo da mão de obra. Por outro lado, muitos foram os obstáculos
em termos de linguagem. Na operação com o Brasil, a implantação
foi mais simples, tanto pelo fato de ter tecnologia avançada
para receber imagem de boa qualidade transmitida de Portugal
quanto por falar o mesmo idioma. No Brasil, o laboratório
não precisou ampliar sua equipe para atender a demanda portuguesa.
Entretanto, o que poderia ser uma vantagem – a ampliação de
postos, expõe Selma Venco, por enquanto trata-se de intensificação
do trabalho.
À
época da pesquisa, o Brasil “exportava” cerca de 40 laudos
por dia. E o trabalho não parava por aí. Os portugueses exigiam
adaptações linguísticas para os “brasileirismos”. No fundo,
salienta a pesquisadora, os portugueses encontraram na terceirização
internacional a chance de usarem o marketing a seu favor,
declarando que os exames tinham maior qualidade pois contavam
com duas opiniões médicas, dadas as exigências da Comunidade
Europeia na assinatura dos laudos emitidos por médicos formados
na Europa.
Os médicos brasileiros desconheciam
a procedência daqueles exames quando começavam a avaliá-los,
pois todos eles, indistintamente, “iam para a pilha”, jargão
da área. “Contudo, ali já ocorria uma cadeia internacional
de terceirização. Portugal captava exames também de Angola,
uma vez que lá não tinham médicos nesta área, e depois os
encaminhava para o Brasil”, testemunha.
Algumas restrições brasileiras
à sistemática foram postas pelos médicos, embora reconhecendo
a possibilidade de lançar os laudos graças à tecnologia Dicom
(Digital Imaging Communications in Medicine) – software que
permite a troca de imagens médicas e informações associadas
entre equipamentos de diagnóstico geradores de imagens, computadores
e hospitais – e ao histórico do paciente. Um dos argumentos
foi que em Angola existem doenças diferentes da Europa e do
Brasil, o mesmo valendo para Portugal. Outro argumento apelava
para a ética médica: “se estou em Portugal, procuro uma clínica
na certeza de que ela fornecerá o meu laudo. Agora qual seria
a reação do cliente se soubesse que o exame foi feito no Brasil?”.
O dono da clínica portuguesa,
de acordo com a socióloga, rebateu a necessidade de o cliente
conhecer o local de realização do exame. “Se foi escolhida
nossa clínica, é porque nos responsabilizamos por ele.” E
de fato Selma Venco notou que os portugueses foram bem criteriosos
na escolha do laboratório, um dos mais renomados do Brasil.
“No entanto, esse trabalho envolve uma questão ética: a relação
médico-paciente é afetada e todo o cuidado é pouco”, aconselha.
“A Divisão Internacional do Trabalho não é um fenômeno novo.
O que é inédito, neste caso, é uma DIT baseada totalmente
na tecnologia”, esclarece.
Flexibilidade
Selma Venco avalia as centrais
de atendimento e o telemarketing desde a década de 90. Os
call centers na Índia encabeçam as tarefas para os Estados
Unidos. Eles se esmeram no trabalho e fazem até exercícios
de impostação de voz para perderem o sotaque. Na França, onde
parte desta pesquisa foi feita, foram analisadas as centrais
de atendimento instaladas no Marrocos. “A Divisão Internacional
do Trabalho atua de modo diferente. Uma empresa, por exemplo,
colocava filiais em outros países na década de 30. Agora,
contrata os serviços lá no Marrocos”, compara. “É a ‘flexibilidade’
que há mais de uma década integra o mercado de trabalho, buscando
situações para ampliar a acumulação.”
Para se ter uma ideia, uma
empresa de Campinas atende os clientes em inglês e espanhol,
e conta com operadores trilíngues. Esta rede está em várias
frentes. Em uma outra operação eram resolvidos problemas com
passagens e bagagem extraviada para uma companhia aérea. Em
São Paulo, atendiam-se veterinários mexicanos para esclarecimento
de medicamentos. No período estudado, estiveram em ascensão
a administração e o processamento de faturas de cartões de
créditos. Grandes empresas americanas mantinham instaladas,
no Brasil, centrais de atendimento. “Há um jogo de xadrez
no planeta”, constata a pesquisadora. Um executivo de uma
empresa norte-americana queria instalar um call center e tinha
dúvidas se em Araraquara ou na Argentina. “É uma peça a ser
movida em poucos minutos”, refere.
O serviço de mala direta tem
se mostrado igualmente em crescimento. No Paraná, uma empresa
faz este trabalho para a América Latina. O arquivo é enviado
para cá, onde se imprimem, se etiquetam, se envelopam e se
postam as cartas. “O valor da mão de obra e o correio saem
mais baratos”, garante a socióloga. “Os executivos foram unânimes
quanto ao melhor destino para este trabalho: o Brasil. O nosso
país é a ‘bola da vez’”.
Porém, o raciocínio para o
contrato certamente passou pelo eixo dos países integrantes
do BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China. Na avaliação deles,
a Rússia foi eliminada porque não possui boa capacitação para
o atendimento e a China por ter como maior característica
a manufatura, e não um perfil para atender o setor de serviços.
No caso da Índia, alegaram, existe um centro de computação,
o call center e a alta tecnologia. “Só que este núcleo é restrito
e, a 20 km dali, não há água tratada, esgoto e moradia. A
capacidade de atendimento pode se esgotar em mais alguns anos”,
interpreta a socióloga.
Uma das qualidades do Brasil
é, para os entrevistados, a sua força de trabalho, fato que
transpareceu no setor de desenvolvimento de software. Os empresários
dos vários setores alegaram que a vantagem brasileira está
na criatividade e nas soluções. “Na verdade o Brasil tem uma
população econômica ativa (PEA) muita ampla, com disponibilidade
de força de trabalho, além de ausência de fenômenos naturais
de magnitude, e tem estabilidade política, fatores que endossam
a ideia de que o país é um bom prestador de serviços na concepção
estrangeira.”
Conclusões
Quanto à criação de postos
de trabalho, a pesquisadora entende que deva ser considerada
também a qualidade. Qual é a base desta divisão internacional
do trabalho? Existe a DIT, como sempre houve na história,
todavia sempre numa perspectiva de manter a desigualdade entre
países. Vão continuar detendo a tecnologia, comenta a socióloga,
e tratarão de repassar ao Brasil os serviços de baixa complexidade.
A segunda conclusão é que
não há um segmento privilegiado. As atividades mais taylorizadas,
mais padronizadas, virão em maior número para o Brasil. Esta
projeção foi a de todos os entrevistados. “Trabalhos como
a telerradiologia tenderão a se proliferar. Já com relação
aos serviços de call center e mala direta, eles ainda serão
superiores quantitativamente”, estima Selma Venco.
A terceira conclusão, bastante
impactante, advém da força do trabalho feminino. O que saltou
à vista da pesquisadora foi que, quanto mais a medicina perde
o status do passado, a profissão torna-se mais feminina. “A
radiologia e a patologia são invisíveis nas especialidades
médicas. Esta invisibilidade e este papel quase secundário
são delegados mais às mulheres”, verifica a socióloga. Não
é necessário ir tão longe. No caso da patologia, ela já é
mais exercida por mulheres. Isso traz à luz o lugar da mulher
no mercado de trabalho. “Cresce o seu papel? Sim. Onde? Na
medicina, com predominância nos call centers, onde as operações
nacionais são 85% atendidas por mulheres.”
Livros
VENCO, Selma. As engrenagens do telemarketing: vida
e trabalho na contemporaneidade. Campinas: Arte escrita,
2009.
VENCO, Selma. Cyberimmigrant: une nouvelle immigration
est possible?
In: Revue Immigration et Sociétés. Paris
(no prelo).
Capítulos de livro
VENCO, Selma. Novos contornos da divisão internacional
do trabalho. In: ANTUNES, Ricardo. Riqueza e miséria do
trabalho no Brasil, vol II. São Paulo: Boitempo (no prelo).
VENCO, Selma. La division internationale du travail dans
les services médicaux. Le cas Brésil-Portugal. In: TANGUY,
Lucie e SEGNINI, Liliana (orgs.). Le sens social du
travail (título provisório). Publicação simultânea
França e Brasil.
Publicação:
Tese de pós-doutorado “O sentido social da
modernização do trabalho: a divisão internacional do
trabalho”
Autora: Selma Venco
Supervisão: Ricardo Antunes
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH), Departamento de sociologia
Financiamentos: Fapesp e Capes
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