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O ‘monarquista platônico’ e a ‘Política com P’

continuação das páginas 6 e 7

Da esq. para a dir., Graça Aranha, Silvino Gurgel do Amaral, Joaquim Nabuco, Domício da Gama e Oliveira Lima na Legação Brasileira em Londres, em 1901 (Foto: Fundação Joaquim Nabuco) JU – Nabuco era um defensor da Monarquia, mantendo-se fiel a ela até depois da queda do Império. Que avaliação a sra. faz do Nabuco pós-República? Em sua opinião houve continuidade em sua linha de ideias e de ação ou ele mudou?

Izabel Andrade Marson – Nabuco teve um relacionamento movediço com a Monarquia. No Parlamento e fora dele, empenhou-se, até 1889, numa reforma do regime – no sentido de uma federalização, superação do poder moderador e da vitaliciedade do Senado –, razão de pesadas críticas ao Imperador, aos políticos imperiais e às formas das instituições que regiam a Monarquia. Entre 1890 e 1899, diante de uma República com forte atuação e prestígio dos militares, dos positivistas e dos grupos jacobinos, batalhou pela restauração do regime monárquico, segundo ele ideal para as condições imaturas do país. Mas, a partir daquele ano, tornou-se um “monarquista platônico” e, surpreendendo amigos e antigos correligionários, um discreto adepto da República. Superadas as guerras civis, passou a integrar o quadro diplomático do governo de Campos Sales, um representante da aristocracia de cafeicultores progressistas de São Paulo, com a qual tinha boas relações. Por seu Diário, sabemos que aquele trabalho atendia necessidades pessoais e expectativas políticas: o sustento da família – esposa e quatro filhos –; o antigo desejo de residir na Europa e educar dignamente os filhos, além de realizar a Política com P – aquela das grandes causas e sem envolvimento direto na política partidária.

Atravessando todo esse percurso, preservou convicções aristocráticas da prática política: a defesa intransigente da liberdade com ordem, da hierarquia social e de estadistas na condução das sociedades sul-americanas em geral e brasileira em particular. Sobre esta última, tinha uma percepção particularmente desencantada que se acentuou ao longo do tempo; e singular, mesmo frente à de outros monarquistas, um dos motivos do isolamento de Nabuco. Considerava que, pela longa convivência com a escravidão, a mestiçagem das raças, o habitat inóspito e a condição de “menoridade”, quando diante das solicitações políticas, o povo brasileiro oscilava entre a indiferença e a violência irrefletida e anárquica das revoluções, sendo, portanto, presa fácil dos ditadores.

Imagem próxima configurava os escravos: eram dóceis e fiéis se bem acolhidos pelos senhores, como acontecia nas tradicionais propriedades do norte; porém, tornavam-se ferozes e inestimável ameaça, se tratados com o rigor presente nas fazendas do sul. Ao privilegiar o argumento da inexorabilidade do tempo para justificar a impossibilidade de se frear o movimento abolicionista e a queda da monarquia, assegurou: dentre aqueles que lutaram pela abolição – a princesa, políticos e abolicionistas em geral –, os recém-libertos seriam os únicos participantes daquele evento que, pela gratidão à princesa e preservação de seu trono, voltariam atrás naquela decisão.

Capa do livros Revolução Praieira - Resistência Liberal à hegemonia conservadora em Pernambuco e no Império (1842-1850): interpretações originais. (Reprodução)Estas convicções se adensaram com a derrota dos monarquistas na Revolta da Armada contra Floriano no Brasil (1893-4), episódio contrastante com a vitória que a Armada do Chile (1891) obtivera frente a Vicente Balmaceda, que Nabuco considerava um ditador. A análise da revolta chilena (em artigos na imprensa, reunidos no livro Balmaceda, de 1895) contrapôs eventos e sociedades para destacar as fragilidades nacionais e os motivos do sucesso chileno: a consolidação histórica de uma aristocracia engajada e uma sociedade bem estruturada; a predominância europeia na formação do povo, e um ambiente físico semelhante ao dos Estados Unidos e da Europa. Para Nabuco, o Chile constituía, naquele momento, a única nação idealmente republicana da América do Sul.

JU – Na apresentação de seu livro, a sra. menciona passagem em que Raimundo Faoro afirma que Joaquim Nabuco foi um “artista que fez da história obra de arte”. Nesse âmbito, e recursos estílisticos à parte, não foram poucas as incursões de Nabuco no terreno literário e há quem veja muitos pontos de contato entre alguns de seus ensaios e a obra de Machado de Assis, com quem o pernambucano se relacionava – ambos, por exemplo, foram fundadores da Academia Brasileira de Letras. Quais seriam essas conexões?

Izabel Andrade Marson – Acompanhando historiadores e escritores de seu tempo, de matiz romântico, Nabuco entendia que “a política...tem lados ainda indefinidos que confinam com a arte, a religião e a filosofia”. Sua familiaridade com personagens e obras literárias se demonstra, dentre outras experiências, na recorrente presença desses recursos na argumentação escrita e falada do político-escritor, figuras que manejava com refinamento e precisão. Um dos pseudônimos mais caros a que recorreu foi “Ninguém”, primeiro nome atribuído a Ulisses, o herói da Odisséia.

Ao lado do interesse pela história do país, um dos pontos de encontro mais expressivos entre Machado e Nabuco ocorreu – ressalvadas as diferenças de estilo e de avaliação de alguns temas – justamente nas crônicas e textos de teor crítico divulgados na imprensa, uma vez que ambos fustigaram com astúcia e rigor, políticos, o jogo político-partidário e as instituições tanto da Monarquia e quanto da República em seus primeiros anos. Tal afinidade se manifestou já em 1875, quando escreveram um pequeno jornal de curta duração intitulado A Época, no qual, Machado assinou como “Manassés” e Nabuco utilizou pela primeira vez o pseudônimo “Ninguém”.

JU – Não raro, análises sobre a vida e a obra de Nabuco estão informadas por posições ideológicas antagônicas. A que a sra. atribui essas leituras, passado um século de sua morte?

Izabel Andrade Marson – Além dos vários posicionamentos – de “reformador social” em O Abolicionismo, defensor da tradição monárquica em Um Estadista, e discreto adepto da República em Minha Formação, personagens que vêm inspirando políticos e acadêmicos desde o século XIX –, Nabuco divulgou esquemas explicativos para a história da sociedade brasileira fundados em pressupostos e argumentos acatados tanto pela ideologia liberal quanto por socialistas e comunistas. Destaco o princípio de que as sociedades ocidentais evoluem mediante o conflito de ideias e interesses dos grupos sociais e o impulso de leis, dentre elas a do progresso; e que devem superar estágios, a exemplo do “Antigo Regime” – identificado com o “feudalismo”, a grande propriedade mal explorada – latifúndio –, a servidão e a escravidão”–, para atingirem as formas capitalistas e o liberalismo. Nesse sentido, a interpretação de Nabuco sobre a Revolução Praieira e a sociedade pernambucana, por exemplo, agradou leitores com convicções díspares. Aos conservadores, porque utilizou o paradigma do Antigo Regime e a lei do progresso para recriminar as multidões e o despreparo das lideranças que as acompanharam nas revoluções. Contudo, se positivado esse desempenho das multidões e do partido praieiro, também pode atender os críticos do liberalismo e do capitalismo.

JU – Quais são, em sua opinião, os maiores legados de Nabuco?

Capa do livro Política, história e método em Joaquim Nabuco:  interpretações originais (Reprodução)Izabel Andrade Marson – Memoráveis peças literárias, históricas e diplomáticas de variado conteúdo. E pelo grande envolvimento com a política e a cultura, e seu movimentado percurso como parlamentar, jornalista, historiador e diplomata, Nabuco nos legou um privilegiado e refinado testemunho – de matiz reformista-conservador – do debate político e social de seu tempo, que coincide com momento crucial da história do país. Este registro se ressalta quando relacionamos a argumentação de suas obras com informações do Diário, da correspondência pessoal e da fala dos interlocutores, correligionários e adversários.

JU – A sra. acredita que vingou a nação idealizada por Nabuco?

Izabel Andrade Marson – A cada circunstância de sua trajetória, Nabuco reconsiderou suas expectativas para a nação brasileira. Dentre elas, algumas se realizaram, como a finalização da escravidão, a desamortização da posse das terras e a abertura do país aos capitais e negócios estrangeiros; e, no caso do pan-americanismo, a aproximação da órbita norte-americana. Contudo, perderam-se muitas outras: a “regeneração” da monarquia, a promoção da pequena propriedade, a oferta de trabalho livre digno, a incorporação dos libertos na comunidade nacional.

Sobre os possíveis motivos desse resultado podemos lembrar que suas proposições integravam projetos criados em conjunturas político-econômicas sempre mutantes e, sobretudo, que previam realizações de difícil combinação, umas imediatas – justamente as de mais sucesso – e outras, problemáticas pelo conflito de interesses nelas pressuposto – a incorporação dos libertos pelo trabalho livre digno, por exemplo – que ficaram delegadas ao futuro. Ainda, Nabuco delineou aqueles projetos com referências idealizadas do passado e do presente. No caso da “regeneração” da Monarquia, creditou-a dentre os interesses dos empresários nacionais que modernizavam suas atividades, dos capitais estrangeiros e das empresas que eles viabilizaram, quando o apoio fiel daquele regime provinha da antiga Guarda Nacional majoritariamente constituída por médios e pequenos proprietários rurais e urbanos, segmentos que sustentaram a Independência e o Segundo Reinado, mas ficaram descontentes, dentre outras mudanças, com a reforma eleitoral de 1881, a perda das garantias da posse da terra e da propriedade escrava.

O desempenho eleitoral indica que Nabuco – político e escritor por ofício, assim como vários autores e personagens que o inspiraram – estava ciente das dificuldades para a concretização do conjunto de medidas inscrito, por exemplo, no projeto abolicionista; e que soube contornar as contradições nele imbricadas: tais medidas não apareceram reunidas e, nos comícios, foram expostas segundo as necessidades imediatas de cada público ouvinte.

 

Capítulos de livro

MARSON, I et al.- “Conciliation et ressentiment: Joaquim Nabuco et la mémoire des révolutions libérales au Brésil. IN: ANSART, Pierre – Le Ressentiment.Bruxelles, Bruylant, 2002. p. 211-221.

MARSON, I. A. “Épargner les vaincus et dompter les superbes : humilier pour concilier  IN : DÉLOYE, Yves e HAROCHE, Claudine (org.) – Le Sentiment d’Humiliation.Paris, Éditions In Press, 2006. pp. 185-198.

 

 

 

 
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