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JU – Nabuco era um defensor da Monarquia, mantendo-se
fiel a ela até depois da queda do Império. Que avaliação a
sra. faz do Nabuco pós-República? Em sua opinião houve continuidade
em sua linha de ideias e de ação ou ele mudou?
Izabel Andrade Marson
– Nabuco teve um relacionamento movediço com a Monarquia.
No Parlamento e fora dele, empenhou-se, até 1889, numa reforma
do regime – no sentido de uma federalização, superação do
poder moderador e da vitaliciedade do Senado –, razão de pesadas
críticas ao Imperador, aos políticos imperiais e às formas
das instituições que regiam a Monarquia. Entre 1890 e 1899,
diante de uma República com forte atuação e prestígio dos
militares, dos positivistas e dos grupos jacobinos, batalhou
pela restauração do regime monárquico, segundo ele ideal para
as condições imaturas do país. Mas, a partir daquele ano,
tornou-se um “monarquista platônico” e, surpreendendo amigos
e antigos correligionários, um discreto adepto da República.
Superadas as guerras civis, passou a integrar o quadro diplomático
do governo de Campos Sales, um representante da aristocracia
de cafeicultores progressistas de São Paulo, com a qual tinha
boas relações. Por seu Diário, sabemos que aquele trabalho
atendia necessidades pessoais e expectativas políticas: o
sustento da família – esposa e quatro filhos –; o antigo desejo
de residir na Europa e educar dignamente os filhos, além de
realizar a Política com P – aquela das grandes causas e sem
envolvimento direto na política partidária.
Atravessando todo esse percurso,
preservou convicções aristocráticas da prática política: a
defesa intransigente da liberdade com ordem, da hierarquia
social e de estadistas na condução das sociedades sul-americanas
em geral e brasileira em particular. Sobre esta última, tinha
uma percepção particularmente desencantada que se acentuou
ao longo do tempo; e singular, mesmo frente à de outros monarquistas,
um dos motivos do isolamento de Nabuco. Considerava que, pela
longa convivência com a escravidão, a mestiçagem das raças,
o habitat inóspito e a condição de “menoridade”, quando diante
das solicitações políticas, o povo brasileiro oscilava entre
a indiferença e a violência irrefletida e anárquica das revoluções,
sendo, portanto, presa fácil dos ditadores.
Imagem próxima configurava
os escravos: eram dóceis e fiéis se bem acolhidos pelos senhores,
como acontecia nas tradicionais propriedades do norte; porém,
tornavam-se ferozes e inestimável ameaça, se tratados com
o rigor presente nas fazendas do sul. Ao privilegiar o argumento
da inexorabilidade do tempo para justificar a impossibilidade
de se frear o movimento abolicionista e a queda da monarquia,
assegurou: dentre aqueles que lutaram pela abolição – a princesa,
políticos e abolicionistas em geral –, os recém-libertos seriam
os únicos participantes daquele evento que, pela gratidão
à princesa e preservação de seu trono, voltariam atrás naquela
decisão.
Estas
convicções se adensaram com a derrota dos monarquistas na
Revolta da Armada contra Floriano no Brasil (1893-4), episódio
contrastante com a vitória que a Armada do Chile (1891) obtivera
frente a Vicente Balmaceda, que Nabuco considerava um ditador.
A análise da revolta chilena (em artigos na imprensa, reunidos
no livro Balmaceda, de 1895) contrapôs eventos e sociedades
para destacar as fragilidades nacionais e os motivos do sucesso
chileno: a consolidação histórica de uma aristocracia engajada
e uma sociedade bem estruturada; a predominância europeia
na formação do povo, e um ambiente físico semelhante ao
dos Estados Unidos e da Europa. Para Nabuco, o Chile constituía,
naquele momento, a única nação idealmente republicana da
América do Sul.
JU – Na apresentação
de seu livro, a sra. menciona passagem em que Raimundo Faoro
afirma que Joaquim Nabuco foi um “artista que fez da história
obra de arte”. Nesse âmbito, e recursos estílisticos à parte,
não foram poucas as incursões de Nabuco no terreno literário
e há quem veja muitos pontos de contato entre alguns de seus
ensaios e a obra de Machado de Assis, com quem o pernambucano
se relacionava – ambos, por exemplo, foram fundadores da Academia
Brasileira de Letras. Quais seriam essas conexões?
Izabel Andrade Marson
– Acompanhando historiadores e escritores de seu
tempo, de matiz romântico, Nabuco entendia que “a política...tem
lados ainda indefinidos que confinam com a arte, a religião
e a filosofia”. Sua familiaridade com personagens e obras
literárias se demonstra, dentre outras experiências, na recorrente
presença desses recursos na argumentação escrita e falada
do político-escritor, figuras que manejava com refinamento
e precisão. Um dos pseudônimos mais caros a que recorreu foi
“Ninguém”, primeiro nome atribuído a Ulisses, o herói da Odisséia.
Ao lado do interesse pela
história do país, um dos pontos de encontro mais expressivos
entre Machado e Nabuco ocorreu – ressalvadas as diferenças
de estilo e de avaliação de alguns temas – justamente nas
crônicas e textos de teor crítico divulgados na imprensa,
uma vez que ambos fustigaram com astúcia e rigor, políticos,
o jogo político-partidário e as instituições tanto da Monarquia
e quanto da República em seus primeiros anos. Tal afinidade
se manifestou já em 1875, quando escreveram um pequeno jornal
de curta duração intitulado A Época, no qual, Machado assinou
como “Manassés” e Nabuco utilizou pela primeira vez o pseudônimo
“Ninguém”.
JU – Não raro,
análises sobre a vida e a obra de Nabuco estão informadas
por posições ideológicas antagônicas. A que a sra. atribui
essas leituras, passado um século de sua morte?
Izabel Andrade Marson
– Além dos vários posicionamentos – de “reformador
social” em O Abolicionismo, defensor da tradição monárquica
em Um Estadista, e discreto adepto da República em Minha Formação,
personagens que vêm inspirando políticos e acadêmicos desde
o século XIX –, Nabuco divulgou esquemas explicativos para
a história da sociedade brasileira fundados em pressupostos
e argumentos acatados tanto pela ideologia liberal quanto
por socialistas e comunistas. Destaco o princípio de que as
sociedades ocidentais evoluem mediante o conflito de ideias
e interesses dos grupos sociais e o impulso de leis, dentre
elas a do progresso; e que devem superar estágios, a exemplo
do “Antigo Regime” – identificado com o “feudalismo”, a grande
propriedade mal explorada – latifúndio –, a servidão e a escravidão”–,
para atingirem as formas capitalistas e o liberalismo. Nesse
sentido, a interpretação de Nabuco sobre a Revolução Praieira
e a sociedade pernambucana, por exemplo, agradou leitores
com convicções díspares. Aos conservadores, porque utilizou
o paradigma do Antigo Regime e a lei do progresso para recriminar
as multidões e o despreparo das lideranças que as acompanharam
nas revoluções. Contudo, se positivado esse desempenho das
multidões e do partido praieiro, também pode atender os críticos
do liberalismo e do capitalismo.
JU – Quais são,
em sua opinião, os maiores legados de Nabuco?
Izabel
Andrade Marson – Memoráveis peças literárias,
históricas e diplomáticas de variado conteúdo. E pelo grande
envolvimento com a política e a cultura, e seu movimentado
percurso como parlamentar, jornalista, historiador e diplomata,
Nabuco nos legou um privilegiado e refinado testemunho –
de matiz reformista-conservador – do debate político e
social de seu tempo, que coincide com momento crucial da história
do país. Este registro se ressalta quando relacionamos a
argumentação de suas obras com informações do Diário,
da correspondência pessoal e da fala dos interlocutores,
correligionários e adversários.
JU – A sra. acredita
que vingou a nação idealizada por Nabuco?
Izabel Andrade Marson
– A cada circunstância de sua trajetória, Nabuco
reconsiderou suas expectativas para a nação brasileira. Dentre
elas, algumas se realizaram, como a finalização da escravidão,
a desamortização da posse das terras e a abertura do país
aos capitais e negócios estrangeiros; e, no caso do pan-americanismo,
a aproximação da órbita norte-americana. Contudo, perderam-se
muitas outras: a “regeneração” da monarquia, a promoção da
pequena propriedade, a oferta de trabalho livre digno, a incorporação
dos libertos na comunidade nacional.
Sobre os possíveis motivos
desse resultado podemos lembrar que suas proposições integravam
projetos criados em conjunturas político-econômicas sempre
mutantes e, sobretudo, que previam realizações de difícil
combinação, umas imediatas – justamente as de mais sucesso
– e outras, problemáticas pelo conflito de interesses nelas
pressuposto – a incorporação dos libertos pelo trabalho livre
digno, por exemplo – que ficaram delegadas ao futuro. Ainda,
Nabuco delineou aqueles projetos com referências idealizadas
do passado e do presente. No caso da “regeneração” da Monarquia,
creditou-a dentre os interesses dos empresários nacionais
que modernizavam suas atividades, dos capitais estrangeiros
e das empresas que eles viabilizaram, quando o apoio fiel
daquele regime provinha da antiga Guarda Nacional majoritariamente
constituída por médios e pequenos proprietários rurais e urbanos,
segmentos que sustentaram a Independência e o Segundo Reinado,
mas ficaram descontentes, dentre outras mudanças, com a reforma
eleitoral de 1881, a perda das garantias da posse da terra
e da propriedade escrava.
O desempenho eleitoral indica
que Nabuco – político e escritor por ofício, assim como vários
autores e personagens que o inspiraram – estava ciente das
dificuldades para a concretização do conjunto de medidas inscrito,
por exemplo, no projeto abolicionista; e que soube contornar
as contradições nele imbricadas: tais medidas não apareceram
reunidas e, nos comícios, foram expostas segundo as necessidades
imediatas de cada público ouvinte.
Capítulos
de livro
MARSON, I et al.- “Conciliation et ressentiment:
Joaquim Nabuco et la mémoire des révolutions libérales
au Brésil. IN: ANSART, Pierre – Le Ressentiment.Bruxelles,
Bruylant, 2002. p. 211-221.
MARSON, I. A. “Épargner les vaincus et dompter
les superbes : humilier pour concilier IN :
DÉLOYE, Yves e HAROCHE, Claudine (org.) – Le Sentiment
d’Humiliation.Paris, Éditions In Press, 2006.
pp. 185-198.
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