Raça, nação e o ‘altar do esquecimento’
Tese de doutorado defendida no Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH) da Unicamp pelo sociólogo Henrique Antonio
Ré contribui para uma releitura do pensamento e das ações
antiescravistas de Joaquim Nabuco. No estudo Progresso e utopia
no pensamento antiescravista de Joaquim Nabuco: influências
da economia política francesa e das teorias racialistas, orientado
pelo professor Fernando Antonio Lourenço, Henrique procurou
mostrar que a questão racial nas obras de Nabuco não aparece
apenas como deslize terminológico ou como algo sem importância.
Ao contrário, ela constitui um dos pontos principais de seu
projeto de país.
Segundo o autor, a partir
dessa análise é possível mostrar como as posições de Nabuco
dos anos 1880 são totalmente compatíveis com suas obras mais
tardias. Mais que isso, ressalta o sociólogo: em suas obras
posteriores à abolição é possível encontrar uma fidelidade
inacreditável em relação às suas propostas daquele período.
O grande exemplo disso, ressalta Henrique, foi sua preocupação
em relegar ao “altar do esquecimento” todas as disputas, desavenças
e desentendimentos surgidos durante a campanha abolicionista.
“Quem lê os textos de Nabuco
posteriores à abolição e não conhece a história brasileira
fica com a impressão de que o fim da escravidão foi obra dos
próprios escravistas ou então que os libertos seriam eternamente
agradecidos aos seus senhores pela graça que lhes foi concedida.
É nesse sentido que se pode afirmar que há um único Nabuco:
o primeiro, que queria uma abolição pacífica, sem grandes
alterações da estrutura social; o segundo, que fazia um esforço
tremendo para convencer seus ouvintes e leitores que a abolição
foi uma confraternização de interesses, tanto de escravos
quanto de senhores”, enfatiza o pesquisador.
‘Mais capaz’
Em segundo lugar, salienta
Henrique, ao se dar a devida atenção ao lugar que a questão
racial ocupava no pensamento de Nabuco, percebe-se que seu
projeto de país só podia ser implementado com o “embranquecimento”
da população – fato defendido claramente por ele.
“E aqui está um dos motivos
pelos quais os negros não poderiam participar das decisões
do país: eles seriam substituídos aos poucos por uma raça
de homens mais capaz”, observa o autor do trabalho apresentado
ao Departamento de Sociologia do IFCH.
O cuidado em fazer do fim
da escravidão um movimento que ultrapassasse a extinção do
trabalho escravo pode ser identificado de imediato nas obras
de Joaquim Nabuco, acentua Henrique em seu estudo. Em vários
momentos ele deixou claro que seu abolicionismo deveria ser
entendido como obra de estadistas, não de filantropos.
“A clareza sobre esse ponto
é fundamental para a compreensão de seu pensamento, pois Nabuco
nunca raciocinou sobre a questão escravista isoladamente,
como se ela se constituísse num fim em si mesma. Qualquer
palavra ou proposta sua sobre a forma de se encaminhar o fim
da escravidão esteve sempre relacionada, em última instância,
a uma preocupação com a estabilidade e o futuro do país. Ele
jamais apresentou uma proposta ou chancelou alguma medida
sem antes estar convicto de que ela tinha condições de ser
absorvida pela sociedade ou então de que ela não desestruturaria
as instâncias políticas e econômicas do país”, observa na
tese. “Embora se comovesse com a sorte dos escravos, sua principal
preocupação era com o destino do país.”
Fortuna crítica
Mas estudar Joaquim Nabuco
significa também considerar a sua fortuna crítica, ou seja,
significa avaliar inúmeros trabalhos que analisaram suas obras
e constituem hoje um ramo historiográfico altamente especializado,
pondera Henrique.
“Provavelmente, ele foi o
representante do século XIX brasileiro mais estudado e sobre
quem há o maior número de relatos biográficos. Tal fato foi
responsável pela edificação e a sedimentação de um personagem
histórico, cuja imagem é tão ou mais difundida que a própria
representação construída por Nabuco em suas obras.”
De acordo com o autor da tese,
as diversas interpretações de Nabuco muito se devem ao momento
histórico em que foram produzidas.
“Essa é uma questão central,
pois, segundo meu ponto de vista, os autores do início do
século XX souberam muito bem utilizar as obras de Nabuco com
a finalidade de apaziguar os ânimos daqueles que ainda estavam
descontentes com a abolição”, aponta. “Do mesmo modo, os autores
dos anos 1960 também formularam suas interpretações atendendo
aos anseios do momento em que viviam”, constata ele, numa
referência à vertente interpretativa do pensamento do estadista
formada a partir do final dos anos 1950 e início dos anos
1960 e constituída por meio de um conjunto de trabalhos, em
sua maior parte realizados por acadêmicos vinculados à Universidade
de São Paulo (USP).
Preconceitos à sombra
Num primeiro momento, explica
Henrique em sua tese, nenhum desses trabalhos esteve particularmente
voltado para o estudo do pensamento e das ações de Nabuco.
Como o grande assunto em pauta naqueles anos e que de certo
modo “convocava” a intelectualidade brasileira a formular
explicações era o desenvolvimento nacional, surgiu um grande
interesse em compreender a passagem do sistema escravista
para o trabalho livre. O que estava em questão era explicar
por que, nessa passagem, a maior parte da população brasileira
não foi incorporada ao mercado de trabalho nem passou a contar
com representação política. Dentre os principais autores que
se agruparam ao redor dessa análise, pode-se destacar Paula
Beiguelman, Fernando Henrique Cardoso, Antonio Candido e Emilia
Viotti da Costa. Mais recentemente Luiz Felipe de Alencastro
e Marco Aurélio Nogueira.
Essa perspectiva analítica
reconheceu o limbo social e econômico ao qual os ex-escravos
foram condenados. Porém, os estudos que surgiram estavam mais
preocupados em apontar os motivos que impediram os escravos
brasileiros de se tornarem proletários à maneira do ocorrido
com o fim da escravidão nos Estados Unidos ou com o fim da
servidão na Europa. Ao privilegiar o caráter econômico que
ditava a forma da modernização brasileira, tais estudos, entretanto,
deixaram à sombra muitos dos preconceitos, especialmente raciais,
que caracterizavam as medidas políticas e econômicas em implantação
no final do século XIX.
“A principal questão naquela
época era explicar o atraso ou a dependência do Brasil. E
Nabuco, na visão desses autores, foi o primeiro a formular
uma resposta a essa pergunta ao apontar a escravidão como
a principal responsável pelos males do país. Só que essa interpretação
não aceitava que o homem responsável por explicar o atraso
brasileiro através das formas materiais de vida também adotasse
posições racialistas em suas ações e ao formular sua visão
de nação”, argumenta Henrique. Ele observa ainda: é necessário
lembrar que os estudos da década de 1960 sobre Nabuco faziam
parte da vanguarda intelectual daquele período e até hoje
são considerados como o ponto alto do pensamento social brasileiro.
Visão hegemônica
Para ele, o propósito daqueles
que se debruçaram sobre as obras do político não era apenas
o de apresentar Nabuco como um mito.
“Penso que tais trabalhos,
apesar de serem laudatórios, tinham objetivos muito mais altos
que o de lisonjear Nabuco. No fundo, se tratava de uma disputa
ideológica e da formulação de uma visão hegemônica sobre determinado
assunto, e as obras de Nabuco se prestavam muito bem a esse
serviço”, destaca. Ele completa: “O que há, em minha opinião,
é a divulgação reiterada de uma determinada leitura de Nabuco
e o desprestígio de outras”.
Embora não tivesse se surpreendido
com as divergências entre as interpretações anteriores
de Nabuco e as novas, admirou-se, todavia, com a facilidade
com que grandes estudiosos, de honestidade intelectual irretocável,
acataram algumas afirmações de Nabuco sem questioná-las,
sem cotejá-las com outras afirmações suas.
“Esse é um ponto intrigante
e me levou a pensar se a adesão dos intelectuais brasileiros
às posições de Nabuco não representavam, ainda que inconscientemente,
uma identificação com a forma com que os integrantes das
camadas dominantes entendiam as relações políticas e sociais
do país.”
Portas fechadas
A produção da tese consumiu
praticamente cinco anos de estudos, sendo três deles financiados
pela Fapesp. Em relação aos documentos, Henrique não pesquisou
arquivos, pois não buscava aquilo que Nabuco conversara em
cartas com amigos ou seus documentos pessoais.
“O que me interessava eram
as suas obras publicadas, pois foi a partir delas que se formaram
as várias interpretações de seu pensamento e de suas ações”,
justifica.
Já em relação à obtenção da
bibliografia, ele assegura ter encontrado enormes dificuldades
nas bibliotecas brasileiras para acessar o material do século
XIX.
“Sempre me foi mais fácil
obter as obras de economia política dos séculos XVIII e
XIX através das bibliotecas digitais da França, em especial
da Gallica, e do books Google, que as obras editadas no Brasil
à disposição nas bibliotecas brasileiras”, conta Henrique.
A motivação para estudar Joaquim Nabuco surgiu durante o
mestrado: “Ironicamente, tive primeiro contato, justamente
em razão das leituras do mestrado, com os intérpretes de
Nabuco, notadamente os autores que nomeei como pertencendo
à corrente de sociologia uspiana.”
Mais tarde, ao ler Nabuco,
surpreendeu-se por não conseguir reconhecer em suas obras
a “radicalidade” ou mesmo o caráter revolucionário de
suas ações e de seu pensamento.
“Também não consegui ver dois Nabucos, como se houvesse
um Nabuco da campanha abolicionista, radical, empenhado em
transformar seu país, e um outro Nabuco, já homem maduro,
mais voltado para seus recatos aristocráticos e empenhado
em negar suas posições de juventude. A partir daí comecei
a pesquisar outros trabalhos sobre o assunto e descobri que
estava em formulação uma nova corrente interpretativa”,
explica.
“Meu trabalho, portanto, deve
muito a todos esses estudos e, em especial, aos trabalhos
das professoras Izabel Andrade Marson, Celia M.M. de Azevedo
e do professor Antonio Penalves Rocha. Penso não cometer injustiças
ao afirmar que eles foram os primeiros a perceber que era
possível rever os conhecimentos históricos a respeito de Nabuco.”
Leia
mais sobre Joaquim Nabuco nas páginas 6, 7 e 8
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