CARMO
GALLO NETTO
Tanto
os que creem em uma força superior criadora como os que
atribuem ao acaso a formação do universo poderão, no futuro,
admitir que até as sequências de DNA obedecem ou podem ser
explicadas através de uma modelagem matemática. Na física
e na química, o uso de equações matemáticas para explicar,
quantificar e prever a possibilidade de ocorrência de transformações
naturais ou provocadas se tornou rotineiro. Na biologia
esse recurso é bem mais recente e restrito. Vários pesquisadores
das áreas de teoria de informação e codificação, principalmente
nos EUA e Europa, têm procurado reproduzir sequências de
DNA através de estruturas matemáticas com o objetivo de
melhor compreender o funcionamento do sistema biológico.
A primazia coube a um grupo de pesquisadores da Unicamp
em colaboração com a USP que estabeleceu uma relação matemática
entre um código numérico e a sequência do DNA, sigla que
identifica em inglês o ácido desoxirribonucléico – portador
dos genes dentro das células.
Os pesquisadores verificaram
que existe uma relação entre sequências de DNA e códigos
corretores de erros (ECC em inglês). Estes códigos fazem
parte do cotidiano dos que usam a internet, celulares, TVs,
CDs, pen-drives. De forma geral, eles estão presentes na
comunicação via satélite, nas comunicações internas de um
computador e no armazenamento de dados. A utilização destes
códigos tem como objetivo a correção de erros que ocorrem
durante a transmissão ou armazenamento da informação.
A associação de códigos
corretores de erros com sequências de DNA constitui objeto
de pesquisa desde os anos 80. Vários pesquisadores têm se
dedicado a essa procura e na proposição de hipóteses sem
conseguir estabelecer relações matemáticas com o DNA. O
grupo brasileiro estabeleceu essa relação com diferentes
sequências de DNA que constituem o genoma (exons, íntrons,
DNA repetitivo, sequência de direcionamento, proteínas,
hormônios, gene, etc) até chegarem na reprodução do genoma
completo de um plasmídeo.
No Brasil, essa possibilidade
de utilização de um código matemático que transcrevesse
a sequência de DNA foi proposta pelo professor Reginaldo
Palazzo Júnior, do Departamento de Telemática da Faculdade
de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC) da Unicamp,
a duas de suas alunas de doutorado que com ele também haviam
realizado o mestrado: Andréa Santos Leite da Rocha e Luzinete
Cristina Bonani de Faria, ambas graduadas em matemática
pela PUC-Campinas. Elas se propuseram inicialmente a estudar
o transporte de proteínas mitocondriais.
Explicam que as mitocôndrias,
organelas responsáveis pela respiração celular, apesar de
conter o seu próprio DNA e toda maquinaria necessária para
fabricar proteínas, sintetizam somente um pequeno número
delas. A grande maioria das proteínas mitocondriais é codificada
por genes que ficam no núcleo das células, sintetizadasno
citosol e posteriormente enviadas para as mitocôndrias.
Esclarecem que, neste caso, a proteína é considerada como
a informação que será enviada para a organela, existindo
um código padrão para transmiti-la. Nos trabalhos desenvolvidos,
elas mostraram que o modelo que empregaram se ajusta a diferentes
sequências de DNA.
Na verdade, a modelagem
matemática só pode ser desenvolvida com base nos comportamentos
biológicos já conhecidos envolvendo os sistemas celulares.
Essa modelagem se revela válida na medida em que referenda
os fatos descritos pela biologia e se mostra ainda altamente
positiva se permitir entender anomalias observadas nos sistemas
celulares e até possibilitar previsões de novas descobertas.
Por
essa razão, Palazzo que é especialista na chamada teoria
matemática de comunicação, área de estudo da transmissão
de todo o tipo de informação e de seus códigos, sugeriu
inicialmente às suas orientandas que procurassem especialistas
da área médica da Universidade para inteirarem-se dos conteúdos
biológicos. Foi lá que, depois dos primeiros contatos, receberam
a orientação para procurarem o professor Márcio de Castro
Silva Filho na Escola Superior de Agronomia Luiz de Queiroz
(Esalq) da USP. Estabeleceu-se então um diálogo envolvendo
um geneticista especializado em transporte de proteínas,
o engenheiro elétrico Reginaldo Palazzo e as matemáticas
Andréa e Luzinete. Iniciou-se então a abordagem para descrever
uma estrutura matemática nas sequências de DNA.
O grupo passou a contar
também com a participação do engenheiro de computação João
Henrique Kleinschmidt, ex-aluno de doutorado da FEEC e atualmente
professor da Universidade Federal do ABC, em Santo André.
A modelagem matemática que se mostrou adequada foi aplicada
tanto em sequências de DNA de fungos, vírus, plantas, bactérias
e humanos, quanto no gene “TRAV7” do Homo sapiens e no genoma
do plasmídeo (DNA extra-cromossomais) da bactéria Lactococcus
lactis, verificando que a maioria destas sequências foram
geradas por um código matemático.
O feito dos pesquisadores
apresenta uma solução importante e inovadora para a biologia
em que os fenômenos podem passar a ser analisados por métodos
quantitativos. Palazzo considera que essa nova fase exigirá
maior diálogo entre biólogos, matemáticos e engenheiros
eletrônicos e afirma estar plenamente convencido de que
a teoria da informação constitui uma ferramenta adequada
para intercâmbio com a biologia molecular. Ele reconhece
que essa interdisciplinaridade ainda está distante, embora
a seu ver o grupo tenha dado um grande passo inicial.
A linha de pesquisa
orientada por Palazzo desenvolve programas computacionais
para a geração, classificação e análise mutacional e de
polimorfismos em sequências de DNA. Ela abre a possibilidade,
a partir de um código e de uma solução matemática, de corrigir
uma mutação ou um erro celular, de produzir proteínas desejadas
e também de encontrar proteínas ainda desconhecidas existentes
nas células. Em decorrência, o método pode ser aplicado
em projetos e pesquisas com a finalidade de criar novas
funções para determinada sequência de DNA através de mutações
segundo as necessidades comerciais e científicas, afirmam
Andréa e Luzinete. As pesquisadoras, que são colegas desde
a graduação e trabalharam juntas também no mestrado na mesma
linha de pesquisa envolvendo genética, iniciaram no doutorado
o trabalho com análises mutacionais em sequências de DNA.
Elas explicam que o tema, desenvolvido conjuntamente por
elas, por questões formais deu origem a duas teses que se
complementam. A tese de Andréa foi apresentada no final
do ano passado e a de Luzinete deverá estar concluída até
maio.
Explicações
Andréa conta que no início estudaram trabalhos centrados
na reprodução de sequências de DNA através de códigos de
corretores de erros. Constataram que as abordagens neles
utilizadas não eram capazes de reproduzir as sequências.
Para ela, ao iniciar os trabalhos, o grupo teve a felicidade
na escolha das estruturas matemáticas, corpo e anel, utilizadas
nas construções de códigos capazes de reproduzir sequências
de DNA. “Iniciamos com as sequências de direcionamento organelares
por causa do comprimento pequeno, o que diminui a complexidade
dos cálculos numa primeira aproximação. A partir daí consideramos
sequências envolvendo outras funções biológicas e comprimentos
variados. Os resultados se mostraram mais promissores quando
utilizamos a estrutura de anel, apesar de pouco difundida
na área de códigos”, explica Andréa.
Luzinete acrescenta que, devido à característica
multidisciplinar da pesquisa, a fundamentação e a caracterização
de sistemas biológicos associados a transportes de proteínas
através da teoria da informação e codificação foram possíveis
de ser realizadas a contento. Como os códigos corretores
de erros são os mesmos usados no sistema de comunicação
para armazenar e transmitir informações de uma fonte para
um receptor, foram estabelecidas uma analogia entre o sistema
de comunicação e o sistema biológico por considerarem que
nele existe uma informação armazenada que é transmitida.
“A partir de sequências específicas, fomos ampliando a aplicação
do processo e conseguimos resultados interessantes, válidos
para células eucarióticas e procarióticas que envolvem mundos
biológicos bastante distintos”.
Essa modelagem matemática, afirma o professor
Palazzo, que permite caracterizar um sistema biológico,
pode possibilitar, através de um programa computacional,
a realização de análises que levem a resultados concretos.
Porque, lembra ele, a pesquisa na área da saúde é, em geral,
demorada e dispendiosa. E, mesmo assim, não raro, depois
de um longo tempo não se conseguem resultados positivos.
Com a utilização de um software, a caracterização e a simulação
do que se pretende pode ser realizada previamente no computador.
As previsões teóricas podem ser testadas em laboratório
de uma forma sistemática e eficaz, tornando os resultados
muito mais confiáveis. A modelagem matemática pode possibilitar
a cura de uma doença de forma mais rápida”.
Para
o professor, a teoria se mostrou válida para certos fatos
concretos, mas admite que ainda há muito a ser feito. Ele
considera que a linha adotada está sendo delineada e lembra
que alguns pesquisadores chegam a afirmar que não existe
uma estruturamatemática que possa ser associada a sequências
de DNA. “Nós estamos mostrando que existe”, afirma o docente.
Ele insiste que efetivamente o processo adotado inova na
modelagem em relação aos trabalhos propostos anteriormente
e revela-se bastante coerente e consistente com o modelo
biológico vigente.
Perspectivas
Os pesquisadores consideram que, por tratar-se de uma proposta
nova, que se insere numa área estratégica de pesquisa e
de inovação tecnológica e, mais, que a detenção do conhecimento
necessário se resume a poucos pesquisadores, é imprescindível
que esforços sejam despendidos na formação de recursos humanos
para o estabelecimento de uma massa crítica de especialistas
na área. Para isso, consideram fundamental o respaldo institucional
quanto ao reconhecimento da relevância em prover uma infraestrutura
de pesquisa bem como no estabelecimento de um programa de
pós-graduação.
Andréa e Luzinete alertam que para manterem
a fronteira nessa linha de pesquisa será necessário conseguir
mais investimentos e recursos humanos que garantam continuidade
na obtenção de novos resultados, sem o que temem o comprometimento
dos esforços até agora despendidos. Para o professor Palazzo,
parcerias com empresas privadas são bem vindas, pois os
objetivos e as dinâmicas do mundo acadêmico e empresarial
são diferentes: “A dinâmica atrelada às instituições de
fomento à pesquisa não atendem às necessidades impostas
pelo célere desenvolvimento que o trabalho impõe”. Para
ele, a pesquisa assume particular importância para laboratórios
que desenvolvem fármacos, indústrias têxteis, empresas de
agronegócios e de biotecnologia de um modo geral.