Violentamente pacíficos, da Rocinha a Nova
York
MARIA
ALICE DA CRUZ
O
rap nacional tem na sua lírica elementos que podem ser aproveitados
no ensino de língua portuguesa no ensino médio. Dado que
a maioria dos ouvintes deste gênero está na faixa etária
comum a este nível escolar, o hip-hop seria um instrumento
eficiente para auxiliar na assimilação de conteúdos da disciplina
na escola. Riqueza de linguagem e sofisticação poética estão
entre os elementos encontrados pela doutora em linguística
aplicada e jornalista Ana Silvia Andreu da Fonseca em uma
investigação meticulosa que envolveu a análise de letras
de compositores deste gênero, como BNegão, Black Alien e
Racionais MC’s. Além disso, as letras têm potencial para
promover reflexões críticas sobre alguns problemas sociais
contemporâneos. “Se o rap é uma canção, então é enquadrado
na lírica. E lírica é literatura”, pontua a autora da tese
“Versos violentamente pacíficos: o rap no currículo escolar”.
Outro aspecto que pode enquadrar o rap na literatura é o
fato de muitos rappers se apresentarem como cronistas da
realidade. Ana lembra que a crônica é uma narrativa do jornalismo
literário.
O potencial da palavra no
rap está tão evidente a ponto de receber críticas positivas
de intelectuais e profissionais da música. Segundo a pesquisadora
e jornalista, em entrevista concedida recentemente, o escritor,
letrista e crítico musical Nelson Motta citou o hip-hop
entre as “flores” resistentes da música popular brasileira.
O crítico colocou o hip-hop entre os gêneros que têm oferecido
grandes contribuições para a música. Uma das características
ressaltadas por Motta, considerada por Ana Silvia durante
a pesquisa, é a valorização da palavra como nenhum outro
gênero o fez, além das grandes possibilidades musicais,
com as batidas e as combinações de loops e samplers. A importância
do gênero para o processo de democratização tecnológica
também foi destacada pelo crítico musical, segundo Ana.
“Ele declarou que o programa mais utilizado hoje para gravação,
o Pro Tools, está nos estúdios de Nova York e também na
favela da Rocinha”, acrescenta.
Desenvolvida na área de
multiculturalismo e dirigida principalmente a formadores
de professores, idealizadores de currículos e produtores
de livros didáticos, a tese de Ana Silvia derruba alguns
argumentos de educadores que atribuem adjetivos como “pobre”
à linguagem do rap. E também questiona alguns discursos
que pretendem colocar o rap como um estimulador da violência.
Ao contrário, as letras analisadas evidenciam motivos e
efeitos da violência no país, mas sem fazer apologia de
ações violentas, na opinião da jornalista. Nascido da necessidade
de ecoar a voz do gueto, o rap hoje é uma canção de protesto
que transcende o território de origem, lançando-se à audição
de várias camadas sociais e intelectuais. “A ideia é rebater
esses argumentos de que a linguagem seja chula. O rap tem
uma riqueza de linguagem e poética, além de sua musicalidade,
da rima ligada ao ritmo e, em termos temáticos, da contribuição
na humanização de nossa sociedade.”
Para Ana, o discurso que
tenta vincular o rap nacional a uma linguagem pobre pode
estar ligado ao desconhecimento do funcionamento social
da linguagem e também a uma visão equivocada do que deva
ser o conteúdo de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias,
área do ensino médio em que a disciplina de língua portuguesa
tem papel central. Uma análise minuciosa de algumas letras,
como a realizada pela pesquisadora, também permite ver,
na verdade, que o rap nacional se pauta pela ideologia,
por temas e modos de dizer que promovem a coletividade e
denunciam problemas urbanos. “O rap fala de violência? Sim,
fala, mas abordar este tema não significa promovê-lo. Ao
contrário, os rappers estão mostrando os motivos sociais
históricos, das relações de poder verticalizadas no Brasil,
que fazem com que nossa sociedade urbana seja violenta”,
rebate. Ela acrescenta que a linguagem urbana, de rua, é
que dá sentido à proposta do rap, pois talvez não fosse
adequado usar uma linguagem parnasiana, por exemplo, para
falar sobre problemas do Brasil atual. Canções de outros
gêneros, como bossa nova, samba-canção, compostas e interpretadas
por grandes nomes da música brasileira, também tinham a
violência como tema e, no entanto, foram incluídas em alguns
livros de língua portuguesa.
Segundo a jornalista, existe
um questionamento sobre o que seria ou não literatura, mas
a julgar pelo próprio texto dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs), o conceito de texto literário é discutível.
A autora lembra que o crítico literário Davi Arrigucci Jr.,
em entrevista ao Canal Universitário, afirmou que letra
de música é literatura por se tratar de lírica. O crítico
ainda declarou que o rap pode ser considerado poesia – inusitada,
porém poesia. Ana lembra que o cordel, há algumas décadas,
também não era considerado uma literatura digna de ser analisada,
mas hoje é tema de diversos trabalhos acadêmicos. Também
a resistência ao deboche proposto nas primeiras letras de
samba é relembrada por ela.
Com o propósito de oferecer
subsídio temático e de aspectos linguísticos pertinentes
ao ensino médio, Ana defende a mobilização de jovens para
a frequência escolar a partir de conteúdos que tenham a
ver com seu cotidiano. Dentro de uma realidade de evasão
na taxa líquida que chega a quase 50% da população de jovens
com idade para frequentar o ensino médio, a pesquisadora
acredita que o rap é importante para o ensino de língua
e literatura tanto em escolas da rede pública quanto da
particular. Pode-se, com isso, aproximar os estudantes que
vivem em zona de conforto dos problemas que atingem as maiores
parcelas da sociedade. Ela lembra que a maior parte da população
brasileira é formada por adolescentes e jovens da classe
C. “Esse é o brasileiro típico de hoje. E esse é também
o ouvinte mais assíduo de rap”, declara. A tese de Ana Silvia
Fonseca pode contribuir também para a discussão sobre a
implantação curricular do ensino de música na educação básica.
No bojo dos temas a serem discutidos, devem ser incluídos
os gêneros poético-musicais que têm algo a dizer para, sobre
e pela juventude brasileira.
A
pesquisadora declara que desde os anos 1990 alguns educadores
se convenceram da importância da inserção do rap no ensino
de, por exemplo, história e língua portuguesa, mas na década
seguinte ela e sua orientadora perceberam que poucos professores
utilizam esse tipo de canção, e quando usam é por força
da insistência de alguns alunos. Longe de querer definir
o universo do rap nacional, porque há letras de qualidade
variada em todos os gêneros, Ana afirma que este gênero
tem uma amostragem muito grande de letras de qualidade.
Para a autora da tese, o
rap também ajudaria os professores a promoverem a capacidade
de compreensão do funcionamento social da linguagem entre
seus alunos. Ela acredita que o conceito de linguagem apropriada
ou não-apropriada deveria ser problematizado com os alunos.
As músicas Prioridade, de BNegão, From hell do céu, de Black
Alien, e Diário de um detento, dos Racionais MC’s, mereceram
análise completa da pesquisadora. As letras e os trechos
analisados perpassam cerca de dez anos da produção do gênero
no país. As letras contemplam tanto a diferença construída
por processos linguísticos quanto as bases sócio-históricas,
institucionais, da diferença. “O lugar do negro ou descendente
de negro seria dado sócio-historicamente e revelado discursivamente”,
argumenta Ana. Porém, o multiculturalismo sofre duras críticas,
principalmente de professores e pesquisadores conservadores,
justamente pelo risco de ferir o ensino baseado em cânones.
De acordo com a pesquisadora
e jornalista, os estudos culturais não veem diferença qualitativa
na contribuição que as obras de um autor canonizado e de
um autor popular poderiam dar ao currículo escolar. O rap
seria beneficiado pelas teorias pós-críticas que advieram
das teorias curriculares críticas. Segundo a autora, as
teorias multiculturais – pós-críticas – favorecem a conexão
entre cultura, significação, identidade e poder. Ana acredita
que, sem dispensar os grandes clássicos, ou seja, o cânone,
o currículo deve incorporar as produções culturais de todo
e qualquer grupo social que represente, a seu modo, de seu
lugar discursivo, a “Torre de Babel” da pós-modernidade.
Ana Fonseca enfatiza que,
dependendo do ano de ensino médio em que é utilizada, a
letra de rap seria útil para o educador trabalhar conteúdos
fundamentais da tragédia ática que evoluíram e hoje estão
presentes na música, na poesia e na dramaturgia. Ela ressalta
um trecho da música Prioridade que chama atenção para este
argumento: Somos atores que vestiram a carapuça e se confundiram
com seus personagens; auto-sabotagem / esmagamos a nós mesmos
com nossa auto-imagem. Segundo a pesquisadora, em O nascimento
da tragédia, o filósofo Nietzsche revela aspectos dessa
manifestação que podem servir de subsídio para a interpretação
desse e outros raps. Para a autora, o rap nacional, a exemplo
de diversas manifestações artístico-culturais produzidas
pelo Ocidente nos últimos 20 séculos, parece ser herdeiro
da tragédia grega, o que ressalta a importância de sua inserção
no currículo do ensino médio.
Outro trecho da mesma canção,
entre tantos analisados por Ana, mostra como as letras podem
ser aproveitadas em aula de língua e literatura: Pede a
Deus que te livre das moscas, mas não pensa em nenhum momento
em limpar realmente sua casa. Na opinião da pesquisadora,
o trecho pode ser interpretado como “pede a Deus que te
livre de pessoas ou coisas indesejadas, mas não muda sua
própria atitude, que as atrai”. Para Ana, as expressões
“pessoas indesejadas” ou “falsos amigos” poderiam ser usadas
em sala de aula como referência à distinção entre o amigo
e o adulador, tratada por Aristóteles na obra Ética a Nicômaco,
em transdisciplinaridade com o ensino de filosofia, bem
como trabalhadas enquanto intertextualidade presente em
outras obras – raps ou não.
Para Ana Fonseca, nos próximos
anos o rap manterá sua força poética e sua visão crítica
sobre o mundo. Apesar de trazerem as mesmas denúncias e
refletirem sobre os mesmos problemas, os rappers continuarão
a ter, individualmente, sua identidade própria. Mas, em
sua opinião, tudo indica que os lançamentos previstos para
2011, incluindo Racionais MC’s, Mamelo Sound System e Black
Alien, terão como tema também a mulher e as relações pessoais
não-restritas ao “mundo dos manos”.
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Publicação
Artigos
■ - Fonseca, Ana S. Rap nacional: estabilização do discurso
da violência ou construção de uma nova identidade? Literatura
e Autoritarismo, Dossiê Escritas da Violência. Universidade
Federal de Santa Maria (RS), v. 1, 2008. Disponível em:
http://w3.ufsm.br/grpesqla/revista/dossie/art_02.php
■ - FONSECA, Ana S. The voice of the excluded in the curriculum:
the rap as identity. In: XII Congresso da Associação Internacional
para a Pesquisa Intercultural (ARIC), 2009, Florianópolis.
Anais do XII Congresso da ARIC, 2009.
■ - FONSECA, Ana S. Rap na escola: possível revelação de
vozes e identidades. In: XIII Seta - Seminário de Teses
em Andamento, 2008, Campinas. Anais do Seta. Campinas :
Setor de Publicações do IEL - Unicamp, 2008. v. 2.
■ Tese “Versos violentamente pacíficos: o rap no currículo
escolar”
Autora: Ana Silvia Andreu da Fonseca
Orientadora: Terezinha J. M. Maher
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem
(IEL)
Investimento: CNPq / Ministério da Ciência
e Tecnologia / Governo Federal.
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