ISABEL
GARDENAL
Existe
uma diminuição da força da musculatura respiratória e da
capacidade física nos candidatos a transplante de fígado.
Essas perdas podem levar a complicações pulmonares, sendo
as mais temidas o desenvolvimento de infecções, maior tempo
de uso do suporte ventilatório artificial e maior tempo
de internação no pós-operatório. Dessa forma, o comprometimento
da força muscular no período pré-operatório poderá repercutir
negativamente no sucesso do transplante. Estas são algumas
das conclusões da fisioterapeuta Cristina Aparecida Veloso
Guedes em sua tese de doutorado desenvolvida na Faculdade
de Ciências Médicas (FCM).
Segundo a pesquisadora,
o estado de gravidade do candidato a transplante, em relação
a essas variáveis, ainda não foi estabelecido. “Mas é fato
que todo indivíduo submetido a transplante enfrenta perdas,
não importando se o seu caso tem maior gravidade, isso de
acordo com os critérios do Model for End-Stage Liver Disease
(Meld), descrito para classificar a gravidade da doença
hepática. Trata-se de um índice matemático que não considera
alguns critérios clínicos que – no aspecto físico – teriam
peso e mereceriam maior atenção”.
O Meld é utilizado
para alocação desses candidatos em lista. Quem tem Meld
mais elevado, é transplantado antes, pois possui maior risco
de morrer, porém sabe-se que nem sempre está em pior estado
de saúde. “Neste trabalho não encontramos correlação com
o critério de gravidade e sim com alguns critérios clínicos,
como a perda da qualidade de vida, por exemplo. Esses indivíduos
relataram muita fadiga em qualquer fase do período de espera
em lista de transplante”, informa Guedes.
A fisioterapeuta, orientada
pela docente da FCM e coordenadora da Unidade de Transplante
de Fígado do Hospital de Clínicas (HC) Ilka de Fátima S.
F. Boin, abordou em sua tese os 170 candidatos a transplante
que estavam em lista de espera à época da pesquisa, sendo
selecionados 130. Ela realizou uma avaliação fisioterapêutica
sistemática. Sua intenção era fazer uma intervenção ainda
no período pré-operatório, com vistas ao fortalecimento
e ao desempenho dos músculos respiratórios. Por volta de
70% da sua amostra foi constituída por pessoas do sexo masculino,
na maior parte egressa de outras cidades, com baixo nível
socioeconômico e com idade entre 50 e 60 anos.
Quando fisioterapeuta
da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do HC, Guedes via
que os pacientes do seu estudo mostravam muitas complicações
pulmonares e notou que um dos fatores decorria do enfraquecimento
da musculatura respiratória, provavelmente já previamente
comprometida. A fisioterapeuta, que tinha avaliado o período
pós-operatório no mestrado, no doutorado tentou interferir
no quadro para verificar qual seria o resultado, de modo
a melhorar os números do transplante, do ponto de vista
respiratório.
Pesquisando o perfil
desse candidato em trabalhos anteriores, a autora da tese
não encontrou parâmetros na literatura. Acontece que realizar
uma intervenção não seria possível sem uma base – sem conhecer
a fundo a população com a qual se estaria trabalhando. Foi
então que fez ajustes no projeto original para conseguir
desenhar o perfil respiratório desse candidato e de sua
capacidade física, esta última avaliada pelo “teste de caminhada
de seis minutos”. Este é um teste submáximo, de baixo custo
operacional, realizado no próprio corredor do Ambulatório
da Unidade de Transplante. “Esta medida vem sendo estimulada
por organizações nacionais e internacionais que sinalizam
que tais pacientes têm sua capacidade diminuída, perdendo
cerca de 30% a 40% de seu desempenho, premissa também observada
na minha investigação”, diz Guedes.
Outro
ponto analisado por ela foi a qualidade de vida dos pacientes.
A despeito desse fator já ter sido alvo de interesse da
literatura, a fisioterapeuta desenhou o perfil desses candidatos
também. Com o auxílio de um questionário específico, o SF-36,
a pesquisadora constatou que esses indivíduos apresentavam
uma perda importante nesse quesito, a princípio relacionado
aos aspectos físicos.
Guedes expõe que o
fisioterapeuta não consegue intervir diretamente no aspecto
emocional, psicológico ou mesmo social da qualidade de vida,
apenas nos aspectos físicos. “Este foi um dado significativo
do meu trabalho que deve continuar sendo seguido nos próximos
trabalhos, avaliando a qualidade de vida pós-intervenção.
A ideia é sondar se a nossa intervenção pode melhorar a
qualidade de vida de tal paciente.”
Complexidade
O fígado é uma glândula constituída por milhões de células
e produz substâncias elementares ao equilíbrio do organismo.
Ainda que tenha um potencial impressionante de recuperação,
certas doenças do órgão provocam insuficiência hepática
aguda ou crônica grave, muitos conduzindo ao óbito. Nesses
casos, o único recurso terapêutico é a substituição do fígado
doente por um fígado sadio, retirado de um doador compatível
em morte cerebral ou de um doador vivo que aceite doar parte
de seu órgão para ser transplantado.
O transplante é um tipo de procedimento
de altíssima complexidade, considerado modernamente um dos
maiores desafios do contexto cirúrgico. Para se ter uma
ideia, ele pode demorar no mínimo cinco horas e ultrapassar
dez horas. “Quanto maior for o tempo de cirurgia, maiores
as chances de complicações”, avisa ela, mesmo admitindo
que as técnicas cirúrgicas estão cada vez mais aprimoradas.
De acordo com a fisioterapeuta, o transplante
não é somente o ato cirúrgico, que em si já é complexo.
É um procedimento de grande porte, de tempo prolongado e
com riscos anestésicos. Tem este lado e também o do paciente,
que envolve a doença de base – a hepatopatia grave. A cirrose
hepática, lembra, é uma doença do fígado altamente debilitante.
Uma pessoa com essa enfermidade, ao partir para o ato cirúrgico,
já chega ao hospital com complicações associadas e bastante
fragilizada. Por isso Guedes acredita que o sucesso do transplante
depende em grande parte do estado prévio do paciente. “Há
uma boa chance de cura, desde que não hajam complicações
intraoperatórias e pós-operatórias. Quanto mais equilibrado
ele vier para a cirurgia, as chances de êxito serão maiores.”
A abordagem da fisioterapia ainda é pouco
explorada, entende Guedes. O profissional recebe preparo
para trabalhar com os aspectos físicos desse paciente –
capacidade funcional, muscular e desempenho físico. Com
isso, ele pode atuar na reabilitação já no pré-operatório
com exercícios físicos em esteira e em bicicleta ergométricas
ou simplesmente caminhadas e exercícios em espaço livre.
“Essa técnica não foi sequer explorada em trabalhos no pré-operatório,
todavia no pós-transplante teve resultados encorajadores.”
A pesquisadora salienta que sempre houve
um cuidado maior de se prescrever atividade física para
um paciente antes do transplante, principalmente por conta
do risco elevado de sangramento digestivo. “A atividade
física exaustiva aumentaria as chances de sangramento pelo
aumento pressão arterial”, comenta. Por essa razão, esses
pacientes são desestimulados para a prática de atividade
física. Infelizmente, a consequência é que eles se tornam
sedentários e com grande potencial de ter prejudicado o
seu desempenho funcional. O ideal seria uma abordagem desses
pacientes em suas próprias cidades, com protocolos de atividades
feitas sob supervisão.
Agora no pós-operatório imediato, pelo fato
da força da musculatura respiratória sofrer uma perda importante,
é preciso mantê-la íntegra para que tal paciente fique pouco
tempo fazendo uso de ventilação artificial, não adquira
pneumonia associada à ventilação mecânica e não tenha que
voltar ao respirador logo após este ter sido retirado.
Uma abordagem diferenciada nessa musculatura
poderia ser a saída, com exercícios respiratórios a fim
de adquirir um maior volume pulmonar e, assim, não terem
tantas complicações, entre elas dificuldades na troca gasosa
e diminuição da oxigenação, o que comprometeria o transplante
e a condição clínica do paciente. “O treinamento é recomendado
em alguns casos, quando diagnosticada fraqueza”, aponta
a autora.
Na opinião da fisioterapeuta, sua tese de
doutorado representou avanços para a compreensão de vários
temas envolvendo o transplante pois, em geral, todo trabalho
que desenha um perfil gera muitas perguntas, tanto que até
o momento pelo menos dois alunos se matricularam na pós-graduação
para desenvolver seus projetos, coorientados por Guedes,
seguindo a mesma linha de pesquisa.
Um dos trabalhos deve avaliar se a baixa
capacidade física desses pacientes complica mais do ponto
de vista respiratório no pós-operatório; outro trabalho
indaga se esses pacientes com menor força muscular e menor
capacidade física morreram mais em lista; e outro trabalho
ainda, de uma aluna que deve iniciar doutorado em breve,
irá avaliar os resultados do pós-operatório. Sua proposta
é realizar intervenções. Além disso, quatro alunos da especialização
da UTI já manifestaram interesse pelo assunto, agora com
o perfil já desenhado.
Guedes foi fisioterapeuta dessa unidade
no HC, contudo no momento atua como professora convidada
do curso de especialização em Fisioterapia Respiratória
em UTI da Unicamp e em outra instituição de ensino superior.
A sua expectativa é que esta tese sirva de base a novos
estudos e desperte a curiosidade de pesquisadores interessados
na intervenção, pois é ela que pode melhorar a qualidade
de vida e o desempenho do paciente, tanto em lista de espera
quanto após o transplante, conclui.
................................................
Publicação
Tese de doutorado: “Avaliação do desempenho dos
músculos respiratórios, da capacidade funcional, da fadiga
e da qualidade de vida em candidatos a transplante de fígado”
Autora: Cristina Aparecida Veloso Guedes
Orientadora: Ilka de Fátima S. F. Boin
Unidade: Faculdade de Ciências Médicas
(FCM)
................................................