A partir destas constatações, o consumo moderado de vinho tinto, elemento comum nesses hábitos alimentares, passou a ser recomendado, pois estudos demonstram que alimentos e bebidas contendo flavonóides, antioxidantes que compõem o grupo dos polifenóis, exercem efeitos fisiológicos benéficos na prevenção de doenças crônicas causadas pelo estresse oxidativo sofrido por células, tecidos e órgãos.
Se antes os alimentos eram avaliados em função da presença de certos nutrientes, como proteínas, carboidratos, lipídeos, nos últimos anos passaram a despertar, também, interesse em relação a compostos que protegem o organismo. Embora fossem desenvolvidos estudos exclusivos sobre o vinho, são limitadas as pesquisas específicas e detalhadas sobre a presença de antioxidantes no suco de uva.
Esses estudos assumem particular importância no Brasil, décimo exportador mundial de suco de uva, que vende principalmente para os EUA, Japão e Canadá e que ampliou sua produção de 0,15 a 0,56 litro per capita entre 1995 e 2006, crescimento de quatro vezes em dez anos. É o que diz Andréa Pittelli Boiago Gollucke, professora e pesquisadora da Universidade Católica de Santos (UNISANTOS) e engenheira de alimentos pela Unicamp, onde apresentou tese de doutorado no Departamento de Alimentos e Nutrição, orientada pela professora Débora de Queiroz Tavares, que estuda a presença e o perfil de polifenóis no suco de uva produzido no Brasil.
Inicialmente, Andréa esclarece que cerca de 90% da uva destinada à produção de suco é transformada no concentrado de alto teor de sólidos solúveis por uma única indústria na serra gaúcha, que depois será reconstituído pelas empresas que o destinam ao público consumidor. O suco concentrado estudado não está disponível ao consumo nesta forma, mas é o principal ingrediente dos produtos conhecidos como “néctar de uva” ou “suco concentrado de uva”.
Os 10% da uva restante são processadas por empresas que produzem o suco diretamente para o consumidor, sem o processamento intermediário de concentração. Estes são comercializados com a denominação de “suco de uva integral”. Ela se propôs a avaliar a presença de polifenóis e a atividade antioxidante in vitro no suco de uva produzido no Brasil nessas duas situações, em todas as etapas dos processos, e considerando ainda dez meses de armazenamento nas condições usualmente utilizadas.
Além disso, preocupou-se em determinar, nas várias etapas, os teores de dois grupos de polifenóis específicos, as catequinas e as epicatequinas, porque referidos na literatura como de maior poder de absorção pelo organismo. Em colaboração com o Laboratório Thomson do Instituto de Química da Unicamp utilizou-se a técnica de espectrometria de massas com ionização por eletrospray (ESI-MS) para determinar a evolução de compostos fenólicos em cada etapa do processamento do suco concentrado e durante o armazenamento. Realizou também avaliação sensorial do produto bimestralmente por oito meses a fim de verificar alteração na qualidade.
Diferentemente das pesquisas relatadas, ela explica que o diferencial do seu trabalho está no fato de determinar a evolução dos polifenóis em todas as fases do processo, o que considera fundamental na detecção de eventuais modificações que possam ocorrer durante o processamento e o armazenamento, pois se sabe que os polifenóis são sensíveis às modificações térmicas.
Andréa considera os resultados altamente auspiciosos e conclui que os sucos de uva constituem excelente alimento, com altos teores fenólicos totais e capacidade antioxidante. O processamento e as condições de armazenagem determinaram pouca alteração quantitativa nos fenóis e no estado oxidativo dos sucos concentrados obtidos a partir das variedades Concord e Isabel, sobre os quais se concentraram os estudos.
Embora os teores fenólicos totais se mantenham, constata, por outro lado, que os perfis fenólicos sofreram alterações em ambos os casos e são diferentes nos dois cultivares. As concentrações das catequinas e epicatequinas decaíram ao longo do tempo, mas isso não alterou a atividade antioxidante in vitro, pois deram origem a outros polifenóis. O armazenamento refrigerado do concentrado no período de entressafra preservou a qualidade sensorial e a capacidade antioxidante dos sucos. Resta saber se ela se manterá in vivo, e a tese aponta para essa necessidade, diz Andréa.
As revelações O objetivo foi estudar o suco de uva in vitro e eventualmente compará-lo com o vinho. Em relação à variedade Concord, os valores absolutos dos teores fenólicos totais e a atividade antioxidante resultante são altos e comparáveis aos do vinho tinto, o que responde a uma das indagações a que o trabalho se propunha. O suco obtido da variedade Isabel apresentou valores um pouco inferiores, mas mesmo assim comparáveis aos do chá verde, considerado um alimento antioxidante importante.
Em geral, o suco comercializado no Brasil é um “blend” das variedades Concord e Isabel. Sensorialmente, os sucos destas duas variedades apresentam diferenças marcantes e complementares, como revelou o estudo de Andréa. No suco da variedade Concord predomina o gosto amargo e a cor marcante; na Isabel, sobressai-se a doçura e o sabor característico de suco de uva.
A variedade da uva utilizada não é especificada nas embalagens dos sucos comercializados, e Andréa considera que a conscientização do consumidor é que levará ao aperfeiçoamento e detalhamento das informações que ele deve receber em relação ao produto que adquire.
Efeitos Andréa detectou, ao final da obtenção do concentrado a partir da variedade Concord, a presença de quantidade importante de um poderoso anticancerígeno pela primeira vez identificado durante o processamento de suco de uva, o piceatanol glicosídeo, substância bastante estudada por suas propriedades farmacológicas e de reconhecida capacidade anticancerígena. Seu efeito é considerado superior ao resveratrol, mais conhecido e utilizado. Ela conclui que o processo térmico empregado na concentração, além de não alterar o poder antioxidante, promove a conversão de uma substância importante, que não se degrada na restauração do suco.
Entusiasmada com o trabalho desenvolvido, a pesquisadora afirma: “Temos um produto muito interessante em termos de manutenção de saúde. Em trabalho também orientado pela professora Débora de Queiroz Tavares, minha colega de pesquisa Jane Cristina de Souza constatou in vivo que o suco de uva oferece proteção às células e conseqüentemente aos órgãos. È um produto disponível e dentre os mais consumidos derivados de frutas cujo processamento ocorre na presença de cascas e a sementes, que detêm, neste caso, substâncias valiosas”.
Ela já esta recebendo as amostras da nova safra e continuará as pesquisas considerando agora produtos oriundos do começo, meio e fim da colheita de três variedades de uvas diferentes para compará-los. Vai analisar também cascas e sementes resultantes do processo de extração, resíduo hoje descartado, para determinar que substâncias delas provêm.
Depois de cinco anos de estudos Andréa se sente autorizada a afirmar que “os consumidores deveriam se mobilizar para pedir que seja disponibilizado no mercado o suco de uva concentrado reconstituído, mas sem açúcar. No suco comercializado na forma de “néctar” consome-se muita água com açúcar. Não há necessidade de açúcar, pois o suco da uva é naturalmente doce. A adição de açúcar e água deveria ficar a critério do consumidor. Melhor seria ainda se o consumidor pudesse comprar o próprio concentrado, que não exige nenhum conservante, e que poderia ser diluído e até adoçado ao seu gosto”.