Ao acompanhar a transformação que o samba vinha sofrendo no início do século passado, o compositor Sinhô, apelido do carioca José Barbosa da Silva, previu que o gênero musical acabaria por perder as suas características originais. Transcorridos quase 100 anos, a profecia acabou por concretizar-se. Ao contrário do samba dito tradicional, que tinha forte temática social, o pagode dos dias atuais, que surge como uma reelaboração daquele, trata quase que exclusivamente da questão amorosa e de suas conseqüências, como o ciúme, a traição e a separação. “Em razão dessa e de outras mudanças, o samba deixou de ser uma manifestação cultural para assumir a condição de produto cultural”, afirma Dilzete da Silva Mota, que investigou o assunto em sua tese de doutorado, recentemente defendida no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp.
A pesquisadora esclarece que o estudo não qualificou o pagode, ou seja, não se ocupou de avaliá-lo como bom ou ruim. A principal preocupação foi analisar a transformação sofrida pelo samba ao longo do tempo e situá-lo no momento atual, sobretudo enquanto gênero discursivo. Vale lembra que, a rigor, pagode é sinônimo de samba. “A característica mais marcante do pagode suingado ou pagode pop de hoje é a explicitude das letras. Além disso, o universo temático é bastante reduzido, girando quase que exclusivamente em torno da questão amorosa. O samba tradicional, ao contrário, fazia uma crônica social muito mais ampla, que abordava, por exemplo, assuntos relacionados à problemática social e à religião”, compara Dilzete, que foi orientada pela professora Anna Bentes.
A transformação sofrida pelo samba, prossegue a autora da tese, ocorreu de forma paulatina. Até o início do século passado, o gênero musical caracterizava-se como uma manifestação cultural. As pessoas, sobretudo os negros, formavam uma roda para cantar, dançar e conversar sobre sua realidade. O encontro normalmente era regado à comida e bebida. O marco da mudança ocorreu por volta dos anos 30, quando o samba foi oficialmente elevado à categoria de símbolo da identidade nacional. “Isso fez com que o gênero passasse por um processo de branqueamento, visto que teria que se distanciar dos elementos ligados à cultura negra para se aproximar das demais etnias”, esclarece. Assim, a temática também experimentou mudanças. O malandro, por exemplo, passou a dar importância ao trabalho e a se relacionar com integrantes de outras classes sociais.
Essa nova face foi reforçada com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder. Em razão do forte sentimento nacionalista que orientava as ações governamentais, não era permitido que o malandro da música fizesse a apologia do ostracismo. Também por essa época, o samba começou a ser executado nas rádios, o que contribuiu para o seu afastamento dos assuntos de interesse mais direto da população negra. Naquele instante, as letras passam a abordar com maior freqüência a temática amorosa. Nos anos 70, entretanto, surgiu um movimento no Rio de Janeiro propondo o resgate de elementos do samba tradicional, também chamado de samba de raiz. O ponto de encontro era a sede do Cacique de Ramos, bloco carnavalesco do subúrbio carioca que tinha entre seus integrantes nomes como Beth Carvalho, Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Sombrinha os componentes do que viria a ser o grupo Fundo de Quintal.
Nessas reuniões, eram executadas obras quem mantinham similaridades com as origens do samba, como o improviso. A temática das músicas, porém, era variada. Ademais, os músicos inovaram ao agregar novos instrumentos, como o banjo e o tantã. “Esse movimento, que recebeu a designação de Partido Alto, rapidamente deixou o subúrbio e ganhou também a Zona Sul, onde estão os bairros de classe média e média alta do Rio”, afirma Dilzete. Passados 20 anos, o samba enfrentou outra mudança, desta vez tendo a partir da cidade de São Paulo. Surgiu então o pagode suingado, cujos arranjos contavam com o reforço de instrumentos como o teclado e metais. Os destaques do gênero foram os grupos Negritude Júnior, Raça Negra e Soweto. “Nesse instante, o pagode tornou-se pasteurizado e caracterizado pela mesmice”, aponta a pesquisadora.
De acordo com a professora Anna Bentes, que orientou o trabalho, enquanto gênero musical e discursivo o samba está sujeito a constantes inovações. “Ele próprio é uma representação dessa transformação, pois difere do batuque africano que lhe deu origem”, explica. Por mais paradoxal que possa parecer, acrescenta a docente, a tradição não deixa de ser uma inovação, visto que aquela foi inventada para justificar posições ou interesses. “Um exemplo disso é uma citação de Robsbawn [Eric, historiador egípcio que teve como uma de suas áreas de interesse o desenvolvimento das tradições] sobre o kilt, a saia pregueada usada pelos escoceses. Embora muitos considerem o traje uma antiga tradição do país, ele só foi incorporado à cultura escocesa no século 18”. Sobre a alternância entre o novo e o velho, Anna Bentes considera ser provável que o samba ainda sofra outras reelaborações com o decorrer dos nos. Mas, ao contrário do compositor Sinhô, ela não arrisca fazer um prognóstico do que poderá ocorrer. “É melhor aguardar”, pondera.