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Quando a roupa educa o corpo
Docente conta a história da introdução do vestuário
para a prática esportiva
A descoberta
da necessidade de roupas específicas para a prática esportiva
é mais ou menos recente no Brasil. Nas primeiras décadas do
século 20, principalmente, é que a sociedade começou a exigi-las,
a especificá-las e a especializar suas funções. Antes, tanto
as práticas esportivas quanto as corporais eram desenvolvidas
com roupas do próprio dia a dia. Uma pesquisa de pós-doutorado,
com vistas à obtenção do título de livre-docente, levou a
professora do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação
Física (FEF) e da Faculdade de Educação (FE) Carmen Lúcia
Soares a fazer uma análise sobre a história da educação do
corpo, colocando seu foco nas roupas esportivas. A conclusão
foi que essas roupas são constitutivas da cultura urbana,
são indicadores sociais e representam pertencimentos.
Como as roupas em geral e
as roupas esportivas em particular constituem a noção mais
ampla de educação do corpo? Como foram se transformando ao
longo do tempo? Soares estudou este e outros pontos detendo-se
no período de 1920 a 1940. Isso porque foram anos no mundo
em que aspectos marcantes transformaram a cultura vestimentar.
Tal mudança deixou as mulheres libertas dos espartilhos, dos
chapéus, dos saltos altos e de uma série de roupas pesadas
que cobriam o seu corpo.
Diante
de uma nova sensibilidade, as grandes cidades bem como as
capitais brasileiras incorporaram o chamado estilo de vida
esportivo, uma moda esportiva. O ano de 1920 foi o primeiro
em que o país participou dos Jogos Olímpicos Modernos, realizados
na Bélgica, e, embora a delegação tenha sido pouco numerosa,
impulsionou a cultura do corpo, da educação física e do esporte
no país. Assim, pouco a pouco foram criadas necessidades como
o uso de roupas e calçados especiais para a prática esportiva.
“Universalizou-se um comportamento vestimentar até então inexistente”,
situa Soares.
Segundo
ela, nessa década já podiam ser vistos os maiôs mais curtos
nas piscinas e praias, e as saias nas partidas de tênis. Na
década seguinte, os homens, que jogavam tênis de calça comprida,
passaram a jogar tênis de short. Logo mais, outra mudança
abrangeria as mulheres. Suas saias foram subindo e nunca mais
voltaram ao seu estado original.
Já em outras práticas mais
aristocráticas, como a equitação, os uniformes de homens e
mulheres eram mais equilibrados, parecidos. As saias-calças
também foram peças de roupa muito usadas em diferentes práticas
esportivas, assim como as alpercatas. Já sapatos específicos
para corridas começaram a ser desenhados assim como para jogos
de futebol e de basquete.
A década de 1930 incentivou
as práticas corporais, mediante as políticas de Estado, que
incrementaram uma cultura do corpo, do vigor físico e das
aparências atléticas. Também nesta década foram criadas no
país publicações específicas da educação física e do esporte,
contribuindo para a divulgação e a afirmação de uma cultura
corporal em diferentes setores da sociedade e em diferentes
classes sociais.
Na
década de 1940, o Brasil alavancou a sua indústria de vestimenta
esportiva, vislumbrando-se várias confecções e lojas de materiais
esportivos. Contudo, neste exato momento, Soares encerrou
sua avaliação pelo fato do novo período marcar uma ruptura
com tudo o que veio antes – a improvisação das roupas.
Um aspecto destacado por Soares
consistiu em pensar as recomendações de roupas especiais para
as práticas esportivas e para os exercícios de um modo geral.
“Não eram apenas práticas esportivas. Os exercícios eram feitos
em casa, nas ruas ou nos clubes. Isso começou a ser concebido
numa perspectiva das roupas. E foram os médicos que prescreviam
o uso destas peças como uma condição higiênica”, explica.
Eles fizeram das roupas “cânones da saúde”, alertando para
os benefícios ou perigos da exposição do corpo ao ar e ao
sol.
Os médicos recomendavam roupas
de tecidos leves, largas e confortáveis. A partir da década
de 1920 eram encontrados no mercado tecidos em jérsei, tricô,
seda e lã. As mesmas recomendações estendiam-se aos uniformes
escolares, porque sobretudo após 1930 começaram a ser oferecidas
com regularidade as aulas de educação física nos colégios.
Soares afirma que a sociedade
foi, ao longo do tempo, vestindo seus atletas. Na Antiguidade,
conta, eles praticavam exercícios nus, “cobertos” apenas com
óleos e ervas. Já as mulheres foram sendo muito mais vestidas
que eles porque demoraram mais para receber atenção no esporte.
Especialização
Se
a roupa esportiva ou a roupa para as práticas corporais foi
sendo especializada e atendendo funções inicialmente da higiene,
mais tarde elas associaram-se à ideia da performance, isso
a partir das décadas de 40 e 50, melhorando a técnica e potencializando
o gesto esportivo.
Assim sendo, as questões de
ordem estética também passaram a ser consideradas. Olhou-se
a beleza de um gesto e de um corpo que podia ser potencializado
por aquilo que vestia, por meio da qual a relação entre o
corpo e a roupa foi muito mais presente, por estar mais próxima
do corpo real, e não daquele construído por uma roupa, como
vogou até 1910, com as anquinhas e tudo o mais. “Na verdade,
a roupa era uma estrutura externa que sustentava um corpo
frágil”, lembra a professora.
Fato é que, a partir da década
de 1920, cedeu-se lugar para uma outra cultura do corpo. “Era
uma cultura de um corpo forte e ágil que desejava se mostrar
assim. Então a roupa revelou-o com a cultura de uma sociedade
urbana que valorizava o físico, o corporal e o esportivo”,
revela Soares.
Por outro lado, notou-se uma
ligação muito íntima entre a moda em geral e a moda esportiva.
Uma e outra se influenciaram em termos de conforto, elegância
e estilo de vida. “Quando o estilo de vida esportivo apareceu,
ficou claro que uma roupa esportiva também conferia uma marca
para quem a vestia. Essa roupa mostrava alguém sintonizado
com o tempo, a velocidade, a audácia e com todos aqueles valores
que o esporte aportava.”
O esporte, realça a professora,
era um fenômeno tipicamente urbano e uma roupa esportiva traduzia
valores que refletiam a cultura urbana. Até mais ou menos
a década de 1960, raramente usava-se tênis na rua. Hoje ele
ganhou a preferência dos jovens, adultos e crianças, passando
a integrar a vida dessas pessoas em qualquer lugar.
Item indispensável do guarda-roupa, particularmente a calça
comprida começou a ser mais aceita no Ocidente na década de
1960, a despeito da peça já integrar a indumentária feminina
desde o final do século 19. Era defendida pelas feministas,
por proteger a mulher especialmente no ambiente da fábrica.
A noção de especialização
de funções também foi verificada por Soares. Quando se especializou
uma função, criou-se uma roupa específica para ela. No caso,
as práticas esportivas e as práticas corporais expressaram
um tipo de especialização de discursos igualmente: “eu vou
praticar algum esporte ou simplesmente fazer exercícios, não
mais com minha roupa do dia a dia, pois aquela é uma função
específica”. A especialidade de discurso construiu uma especialidade
de vestimenta, refere a professora.
Consultas
Soares trabalhou com três
coleções de revistas da década de 1930 para esta pesquisa:
Educação Physica - Revista Téchnica de Sports e Athletismo,
de 1932 a 1945; Revista de Educação Física do Exército, de
1932 até os dias de hoje; e a Revista Sport Illustrado de
1938 a 1952. Esta última difere das outras duas por não ser
uma revista científica e sim um semanário com notícias esportivas
e que destacava competições de várias modalidades, ricamente
documentada em imagens fotográficas.
Um outro conjunto de revistas
de variedades também foi estudado, como contraponto àquelas
específicas de educação física e esporte, com a finalidade
de sublinhar o lugar das roupas esportivas na vida cotidiana.
Foram elas em especial as revistas A Cigarra, Ariel, Revista
da Semana e Viver.
Embora fossem periódicos de
divulgação e de variedades, traziam em muitas de suas capas
moda esportiva. Em sua quase totalidade, foram encontradas
referências ao uso de roupas especializadas para as práticas
corporais e esportivas, seja em reportagens específicas, seja
em imagens e seja ainda na publicidade desses produtos.
Soares constata que realizar
uma pesquisa sobre roupas pode surpreender, já que permite
indicar como em cada época existe um lugar para determinada
roupa e como a roupa constitui a cultura de uma sociedade.
“As roupas são verdadeiros indicadores sexuais. Com seus códigos,
elas reafirmam toda uma cultura, inclusive a ideia de que
a nudez é assustadora”, expõe.
Nesse sentido, aponta a professora,
é preciso analisar as roupas na história porque cada época
produz algumas porém apaga outras. Ademais, as roupas trazem
uma visão de distinção e pertencimentos. O filósofo Simmel
(1989) afirmou que, já no início do século XX, a moda era
pensada como manifestação privilegiada da realidade social,
ressaltando que o modo de andar, a cadência e o ritmo dos
gestos eram, sem dúvida, essencialmente determinados pelo
vestuário.
Do mesmo modo, os processos
de distinção e de afirmação de lugares sociais foram sendo
também determinados pela roupa, o que contribui para o alto
valor que ela ocupa como marcador social, como traço de distinção
de classe como assinalou Bourdieu (2007). Assim, a roupa,
apesar de ser entendida como um aspecto banal da vida, permite
conhecer camadas profundas da sociedade.
A pesquisa de Soares teve
início com o projeto de pós-doutorado, financiado pela Fapesp.
Com esta bolsa, ela passou em 2007 seis meses na Universidade
de Montpellier III, na França, onde realizou um estudo mais
profundo sobre diferentes teorias e a história das roupas
esportivas.
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Artigos
SOARES, C.L. Vêtements. In : Bernard ANDRIEU et Gilles BOETSCH
(dir.) Dictionnaire du Corps Paris: CNRS, 2008.
SOARES, C.L. Etude des vêtements spécialisés destinés aux
pratiques corporelles et sportives à São Paulo (Brésil): entre
esthétique, confort et efficacité (1920-1960). In: XIIème
Colloque International du CEHS (Comité Europeen d Histoire
du Sport)- Sport et art: construction et réalité, 2009, Lorient.
Actes du XIIème Colloque International du CEHS (Comité Europeen
d Histoire du Sport)- Sport et art: construction et réalité.
Lorient: Musée National du Sport (collection) Mémoire du Sport
, éditions ATLANTICA, 2009. v. 1. p. 63-71.
Publicação
Tese de Livre-Docência “As roupas nas práticas
corporais e esportivas: a educação do corpo entre o conforto,
a elegância e a eficiência (1920-1940)”
Autora: Carmen Lúcia Soares
Unidade: Faculdade de Educação Física (FEF)
Financiamento: Fapesp
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