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Caingangue na rede

Docente do IEL coordena 1º programa
de inclusão digital para indígenas no país

O portal Kanhgág Jógo (“Teia Kaingang”), cujo endereço é www.kanhgag.org, é um dos resultados do Projeto Web Indígena coordenado pelo linguista e professor Wilmar da Rocha D’Angelis, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). É o primeiro programa brasileiro de inclusão digital desenvolvido para comunidades indígenas em sua própria língua materna. Trata-se de uma iniciativa de inclusão digital pró-ativa primeiramente dirigida ao caingangue, povo com o qual D’Angelis tem contato há mais de 30 anos. Mas apresenta forte vocação para ser abraçado por outras comunidades indígenas do país. A página foi construída em 2008 e hoje sua manutenção é quase exclusivamente feita pelos índios.

Com o incentivo do linguista, o aluno de graduação do IEL José San Martin criou a estrutura básica de uma página em um software livre. Ele construiu-a, disponibilizou-a e hospedou-a. Depois treinou outros voluntários do projeto, na Universidade, para poderem operar o software. O mesmo foi feito com a participação dos indígenas durante oficinas de inclusão em telecentros instalados nas aldeias, a fim de compreenderem a estrutura do site. Aos poucos, os indígenas foram assumindo também a tarefa de traduzir a interface, de modo que não apenas os conteúdos da página são na língua indígena, mas também os termos como “entrar”, “deletar” e “postar”, tão comuns na Internet.

Passados dois anos, os índios fazem as suas postagens e atualizam o conteúdo com frequência. Nesta fase, o principal objetivo é ampliar o número de usuários, e as oficinas funcionam como atividade de divulgação da página e treinamento para essas novas adesões. Mesmo quando não participa de alguma das oficinas, D’Angelis não descuida do Portal, acompanhando a inserção de cada novo usuário. Ele conta que as pessoas entram lá, criam os seus logins, como em qualquer outra página, podendo postar conteúdos e comentários. “É uma página aberta e livre que já soma 90 usuários fixos”, informa o professor.

D’Angelis lembra que a língua Kaingang (é como os linguistas e antropólogos escrevem o termo) é falada por um dos povos indígenas mais numerosos do Brasil. Eles vivem em cerca de 30 terras indígenas nos Estados do Sul do Brasil (e duas no interior paulista). São mais de 30 mil pessoas. “Infelizmente tiveram uma grande perda linguística, mas ainda assim quase 20 mil falam a língua indígena.” Das 180 línguas indígenas ainda faladas no Brasil (são mais de 200 povos indígenas, contudo alguns somente usam o português), a dos caingangues está entre as cinco com maior número de falantes.

A meta de inclusão digital do Projeto Web Indígena não é numérica. Envolve conquistar usuários de todas as áreas da nação caingangue. Este trabalho, localiza D’Angelis, ainda está na metade e há um longo caminho pela frente, pois ainda não foram feitas oficinas no Paraná, exemplifica. “É preciso avançar, posto que estas oficinas se prestam a divulgar o trabalho e a criar novos usuários. É algo que tem incentivado os índios, que constantemente fazem postagem de vídeos em caingangue e de fotografias, demonstrando grande envolvimento.”

O próximo passo consistirá em formar um pequeno grupo de gestores que domine a tecnologia da página, “de modo a assumirem toda a gestão do processo”, salienta D’Angelis. “Estamos aguardando os recursos do ProExt (Programa de Extensão Universitária), aprovados ainda em 2009, para efetuarmos a formação destes gestores”, acrescenta. O ProExt dá apoio a instituições públicas de ensino superior no desenvolvimento de programas ou projetos de extensão que contribuam para a implementação de políticas públicas. Ele abrange a extensão universitária, com ênfase na inclusão social.

Na fase atual, um índio caingangue que aprendeu o software, quando esteve na Unicamp por alguns meses, já participa como monitor das oficinas e também como intérprete. Isso porque, em algumas aldeias, a compreensão em português, mesmo de professores indígenas, não é tão proficiente quanto em caingangue. Recorrer às oficinas bilíngues tem sido o recurso empregado para ampliar o entendimento dos participantes, relata o professor.

Este projeto é desenvolvido pelo grupo de pesquisa “Conhecimento de línguas indígenas brasileiras na relação universidade e sociedade”, liderado por D’Angelis, e que envolve alunos de graduação do IEL e de outras unidades, além de alunos de pós-graduação. Associado a esse grupo de pesquisa, o projeto conta ainda com a participação da ONG Kamuri (Núcleo de Cultura, Educação, Etnodesenvolvimento e Ação Ambiental), de Campinas, dedicada ao trabalho com comunidades tradicionais (esta ONG intermediou e produziu a instalação de telecentros em várias comunidades caingangues); e da Unicamp, graças ao apoio e a recursos da Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (Preac), desde 2008.

Conteúdo

A primeira parte do site é destinada a notícias e novidades, denominada “vãme” (lê-se “wõmbê”) em caingangue. Outra parte envolve conversas, cuja experiência não foi tão produtiva pelo fato de não ser um chat em tempo real. Agora uma das seções mais frequentadas é a de imagens.

No menu do site, uma única palavra está escrita na língua portuguesa: “vocabulário”. Ali é possível descobrir o que significam vários termos desconhecidos pelo usuário não índio. Embora não dirigida a esse público, a seção ajuda a compreender o que são esses conteúdos. A sua função é compartilhar uma terminologia técnica que está sendo criada agora. Os índios têm se esmerado na tarefa de criar termos, entre outros, para designar palavras próprias para palavras como “senha”, por exemplo, ou expressões como “passe o mouse”. “Isso opera como uma contribuição à linguagem, trazendo o seu enriquecimento e modernização”, acredita D’Angelis.

Como o projeto acontece por meio de oficinas que, a cada vez, reúnem pessoas de um certo conjunto de comunidades, essa informação não é de conhecimento geral. Então eles postam suas criações na seção “vocabulário”. “É uma maneira de compartilhar os novos termos técnicos que eles estão construindo, o que não impede que ocorram mudanças nesse processo.”

A criatividade com a língua indígena produz coisas interessantes, refere D’Angelis, como o uso tradicional e os novos usos da palavra “jyjy”, que aparece em vários lugares e expressões. Ela figura como login – “crie um nome para você”, mas também aparece na acepção comum para “nome”, numa seção onde estão sendo acrescentados nomes tradicionais. É que, com a perda linguística e cultural, algumas comunidades perderam inclusive muitos destes nomes. Trata-se, portanto, de um trabalho cooperativo constante. “Esperamos reunir um repertório com mais de mil nomes durante os próximos anos”, enfatiza.

Uma outra seção curiosamente chama-se “vĩkikepẽ” (o “v” pronuncia-se como “w”), que é uma brincadeira com “wikipédia” (o sentido literal de “vĩkikepẽ” é “feito na nossa língua mesmo”) –, um arremedo de uma das enciclopédias mais acessadas na web. Os usuários podem entrar no site e dar novas contribuições, até mesmo com vistas ao seu treinamento. A intenção é que as trocas funcionem exatamente como um lugar de pesquisa para que inclusive os professores indígenas permitam que os seus alunos façam os acessos das salas de aula, realça o linguista.

Vocação indigenista

D’Angelis compreende e fala duas línguas indígenas: o caingangue e o guarani, porém estuda algumas outras, como o ashaninka, que ele acompanha há mais de 15 anos. O seu interesse sempre foi pelas comunidades indígenas. Tornou-se indigenista aos 19 anos, quando abandonou um curso de Jornalismo. Depois disso, trabalhou por dez anos com os índios na região de Xanxerê e Chapecó, Santa Catarina, onde fixou residência nesse período, visitando e trabalhando também com muitas aldeias do Paraná e, principalmente, do norte do Rio Grande do Sul.

Quando deixou aquele trabalho, buscou outra forma de ter uma ação mais qualificada com as sociedades indígenas. Como gostava de estudar a língua e tinha se dado bem com o guarani e o caingangue, resolveu que iria cursar Linguística. Isso o trouxe para a Unicamp. Passou então a atuar também como linguista junto aos caingangues e outros povos e línguas indígenas. Hoje D’Angelis é professor do Departamento de Linguística, na área de línguas indígenas.

Segundo ele, na década de 1990, começaram a ser impulsionados alguns cursos de formação de professores caingangues em programas envolvendo universidades regionais. Esses cursos colaboraram para o incentivo inicial a uma produção escrita na língua indígena.

A experiência de inclusão digital com os caingangues é piloto para D’Angelis e uma experiência pioneira no Brasil porque, embora existam muitas ações de inclusão com povos indígenas, essa é a primeira realizada em língua indígena. “Logo, esperamos o seu fortalecimento e um futuro para ela”, discute o linguista.

Há dez anos, recorda ele, quando ia a aldeias do interior de São Paulo e do Sul, a comunicação disponível era meramente um telefone público, que ficava ao lado da aldeia e que funcionava com instabilidade. Dez anos depois o cenário é outro: “há um celular por índio ou pelo menos um por família, e a telefonia celular já é uma realidade local. Isso, que aconteceu com a telefonia, está em processo na questão da Internet”.

Daqui a dez anos, o computador e o acesso à Internet nas comunidades indígenas do sul, no caso dos caingangues, será universalizado. “Não existirá área indígena que não esteja conectada à web. Então temos que fazer este trabalho logo para que, quando chegar lá, os jovens que estão realizando os acessos vejam que a sua língua é viva e traz várias possibilidades de comunicação, de registro de informação, inclusive tecnológica. Isso em qualquer espaço e também no espaço na Internet”, prevê o professor.

Porta de entrada

Conforme D’Angelis, a ideia de inclusão digital muitas vezes é vista de uma maneira passiva, ou seja, “as pessoas deviam poder ter acesso”, “poder ver” e “poder usufruir desse grande volume de informações que constam da Internet”. “É um lado relevante da inclusão digital que hoje é também um componente da inclusão na cidadania, nos nossos novos contextos.”

As sociedades indígenas do Brasil que estão sofrendo um processo de pressão da língua portuguesa sobre as suas línguas maternas, correndo o risco de seu desaparecimento, pelas interações cada vez maiores com o mundo dos não índios, têm ressentido, em muitos casos, uma certa obsolescência da língua indígena para tratar das coisas desse novo mundo em construção e de suas novas relações.

Nesse contexto, uma inclusão digital assim passiva – ainda que ressalvado o lado positivo já referido – teria apenas um impacto negativo porque seria mais um dos lugares importantíssimos em que o jovem indígena somente encontraria a língua portuguesa como porta de entrada. “Seria mais um lugar a consagrar para ele, na cabeça dele, na concepção dele e no cotidiano dele, a obsolescência da sua língua”, afirma D’Angelis.

Em muitos grupos indígenas, salienta o linguista, os jovens têm a noção de que a sua língua é um instrumento apenas para falar com seus avós, na aldeia, sobre a roça. A iniciativa da Unicamp procurou antecipar-se a um processo crescente de acesso a computadores nas aldeias. “Ao fazer isso, estimulamos o jovem para que, ao entrar na web, também encontre a sua língua lá, num uso real, não folclórico.”

 

 



 
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