Direitos trabalhistas
Walter Barelli
Professor do Instituto de Economia da Unicamp
A conquista principal foi a própria Constituição, porque o clima que levou à redemocratização teve muito a ver com o renascimento do movimento sindical, o chamado novo sindicalismo. A Constituição em si foi um produto dessas lutas sindicais. Eu me lembro que havia uma grande esperança. Muitos dirigentes sindicais pretendiam ser constituintes; nem todos, porém, se candidataram. Esse clima de participação e de avanços foi levado para a Constituinte.
Os primeiros sete itens da Constituição são inovadores no sentido de avanço das liberdades e de afirmação do país. No sétimo item há um elenco sindicalista de várias questões que deveriam estar na Constituição. Preconizava-se à época a confecção de uma Constituição auto-aplicável. Vem daí o detalhamento que houve dos chamados direitos trabalhistas, que é o artigo 7º.
Essas grandes vitórias iniciais levaram à organização do bloco conservador, de onde surgiu o “Centrão”. Um dos capítulos sensíveis foi o artigo 8º, que trata da questão sindical. Acabou sendo feito um grande acordo para conseguir que os sindicatos fossem autônomos – e isso também é um grande avanço –, mas com limitações constitucionais na sua expansão, entre os quais o fato de só poder ter um sindicato por unidade, além de todos ficarem dependentes da chamada contribuição confederativa, que mascara o antigo imposto sindical.
As discussões eram grandes. A correlação de forças mostrou que a esquerda não tinha condição de ganhar nesse item, e houve uma grande aliança e uma intensa atuação do setor empresarial, que tinha muito interesse em impedir a proliferação dos sindicatos e, principalmente, o chamado pluralismo sindical.
Depois, passado esse capítulo, o grande item que interessava aos trabalhadores foi o capítulo da Seguridade Social, que estabeleceu a universalidade das políticas de Saúde, Previdência e Assistência Social – o que se verificou na área da Saúde. Na Previdência e na Assistência houve alguns avanços, mas ainda não se pode falar que seja uma política com universalidade. Essa parte é o que a gente chama de conquistas.
Entre os desafios, eu destacaria que não vingou a idéia de uma Constituição auto-aplicável. Primeiramente, pela própria forma como foram feitas as redações. Elas precisariam de legislações complementares, que tinham de ser estabelecidas – uma parte nos primeiros cinco anos de vigência da Constituição. O que houve? O Sarney brigou com a Constituição. Ele e o Mailson [da Nóbrega] diziam que ela tornaria o país ingovernável. Começava aí a briga. Com o Collor, o Brasil ficou uma grande confusão. Com o seu impeachment, algumas das coisas foram feitas no governo Itamar Franco – a LOAS, por exemplo.
O SUS foi uma quase uma conquista auto-aplicável, que foi se completando aos poucos. Na parte da Seguridade, portanto, a Saúde avançou. Já com o Sarney, o orçamento da Seguridade não seguiu exatamente o que pensavam os constituintes. Isto, que seria uma caixa de ressonância e a daria a possibilidade de ter recursos numa política social ampla, que estariam de alguma forma garantidos por um orçamento separado, foi torpeado. Até hoje, não se pode dizer que o Orçamento dá autonomia para a Saúde, Previdência e Assistência Social.
Os problemas, não minha opinião, são esses. O fato de não ser auto-aplicável leva você a sair da Constituição para lutar em outros fóruns. Hoje, as centrais sindicais estão numa campanha contra a demissão imotivada. Mas isso foi conquista da Constituição. Ela tem pontos altos, não-regulamentados, o que é ruim, já que não é auto-aplicável em tudo. Se você não exercita o que está escrito nela, todo aquele espírito constituinte se perde.
Desde o início, a Constituição Cidadã foi atacada por muitos. O PT não assinou, mas o grande obstáculo foi sem dúvida a bancada conservadora, que achava que ela tornaria o país ingovernável.
Reforma agrária
Plínio de Arruda Sampaio
Constituinte, relator do capítulo do Poder Judiciário
Primeiro, é preciso dizer que é muito relativo dizer que houve uma conquista no que diz respeito às leis. Neste país, por uma questão de fato, a lei não se aplica a quase 100 milhões de pessoas. Preto, pobre e pedreiro vivem sob o arbítrio... Estão fazendo um oba-oba como se o país já tivesse se redemocratizado. Trata-se de uma democracia relativa. O povo pobre ganhou alguma coisa? Ganhou. Talvez, a mais importante tenha sido a aposentadoria do homem do campo que não contribuiu, que nunca teve carteira. Isso teve uma dimensão social enorme. Evitou uma crise de fome aguda, quando, por exemplo, houve a seca no Nordeste nos anos 90. Talvez, tenha sido a medida de maior dimensão. As outras são medidas que representam avanços e que se aplicam, na verdade, a uma minoria da população.
No campo da reforma agrária, houve um retrocesso. Houve uma cisão. O artigo é demasiadamente restritivo para que ela possa ter a velocidade de que precisa, o que dificulta muito a sua concretização. Isso foi uma obra do “Centrão”. Nós, da esquerda, nos dividimos. O MST e a Contag não se entenderam, fizeram duas emendas distintas. Com isso, é óbvio que os deputados reformistas ficaram desorientados. Isso fez com que o “Centrão” encontrasse uma brecha para criar esse traumatismo. Como relator do capítulo do Poder Judiciário, eu senti o peso terrível dessa divisão. Ela confundiu as nossas forças.
A falta de unidade no setor popular é trágica. A divisão permite à direita uma vantagem tática. Isso é reversível a partir do movimento popular, e eu acredito em seu poder. Apenas a pressão popular pode mudar esse quadro. Sem organização, não adianta.
O maior desafio, na minha opinião, é a consciência do que é possível fazer no Brasil. Tem gente – a maioria – que acredita que é possível reformar o capitalismo. Ninguém tem consciência de que, enquanto realmente não houver uma ruptura socialista, não tem solução. Esse é o maior obstáculo. Ninguém faz uma estratégia correta de luta popular. A estrategista reformista já está provada que não conduz a nada. Nesse contexto, não é possível dar uma vida digna no campo. Não é possível acabar com a favela ou dar uma educação realmente boa a todo povo brasileiro. Isso, no capitalismo, é impossível. Sua lógica é excludente. Ademais, o nosso capitalismo é fraco, dependente e dominado pelo capital estrangeiro.
É preciso ter consciência da necessidade de caminhar – num processo, não é para amanhã – rumo a uma alteração profunda do sistema econômico e social. No campo da reforma agrária, neste momento, o grande combate é acelerar a desapropriação de terra como a única maneira de deter a apropriação da nossa agricultura pelo agronegócio.
Imprensa
Florestan Fernandes
Gerente de jornalismo da TV Brasil
Acompanhei a Constituição como repórter e por meio do trabalho do meu pai [Florestan Fernandes], que foi deputado constituinte e atuou muito na área da educação. Acho que muita coisa ficou para ser regulamentada depois. Isso, na minha opinião, comprometeu parte do trabalho que foi feito em várias áreas, entre as quais a tributária e a própria educação. Há muitos tópicos que precisam ser regulamentados.
Houve, também, uma batalha muito grande na área da educação, entre os setores privado e público, sobretudo no que diz respeito à destinação de recursos. As escolas filantrópicas, ligadas à Igreja, fizeram muita pressão para obtenção de recursos.
Meu pai ficou um pouco decepcionado com o resultado final. Ele me revelava que a bancada da educação ligada ao setor privado era muito forte, e que o embate era muito duro. Por incrível que pareça, ele teve, na comissão, o apoio de pessoas que jamais imaginaria como, por exemplo, a Tutu Quadros, que votou junto com os progressistas.
Segundo ele dizia, havia ali um rolo compressor, com interesses muitos poderosos. Às vezes, pessoas por quem ele tinha grande admiração o surpreendiam negativamente.Além disso, eram freqüentes os debates internos dentro do próprio partido.
Como jornalista, acredito que a intensa mobilização popular, principalmente dos movimentos sociais, é um dos pontos a ser destacado. Era um momento de muita efervescência. O País vinha da luta pelas eleições diretas. Acho que, ali, os grupos e os partidos passaram a se definir ideologicamente. Uma das grandes questões era a tese da Constituinte ser exclusiva. Eu e meu pai defendíamos essa tese, que foi derrotada. Nesse momento, começa a se delinear o que iria surgir no quadro partidário.
Como todos estavam no mesmo palanque, havia aquela falsa impressão de uma certa unidade de idéias e caminhos. Na Constituição, porém, ficou clara a idéia de quem estava defendendo o quê. Meu pai, por exemplo, identificou que as pessoas que estavam no espectro de centro-esquerda estavam muito comprometidos com o capital, o que também ficou claro para os jornalistas. A própria formatação do “Centrão” dava pistas dessa divisão. Emergiu desse quadro o que a gente percebe hoje com muito mais clareza. O embate dentro da Câmara foi delimitando as afinidades ideológicas e partidárias. Surgiu também, neste momento, o movimento de políticos ligados às igrejas evangélicas.
Seguridade e Previdência
Assunta Bergamasco
Presidente da Anfip
Foram muitos os avanços da Constituição. Vários direitos trabalhistas, por exemplo, foram inseridos na Carta, como a igualdade entre trabalhadores rurais e urbanos. Outra grande conquista foi ter sido incluído um capitulo referente à Seguridade Social, tendo definida, com clareza, a sua fonte de custeio.
Hoje já sabemos, com transparência, o que financia a Saúde, a Previdência e a Assistência Social. Com isso, nós diminuímos muito a pobreza no país. No campo, por exemplo, houve melhoria na distribuição de renda.
Até a Constituição de 1988, só tinha acesso à Saúde quem tivesse filiação ao Inamps, quem tivesse contribuindo com a Previdência Social. O SUS, sem dúvida, foi um avanço. Isso, porém, não significa que ele esteja plenamente funcionando.
Acho que o grande desafio, hoje, é a preservação das fontes de financiamento para a Seguridade Social. É preciso conservar o Orçamento e avançar nas políticas públicas. Nas discussões sobre a Reforma Tributária, o governo ensaia a retirada da multiplicidade de fontes de custeio, para jogar tudo como se fosse um tributo só. E, desse montante, o governo pretende destinar um percentual para a Seguridade Social, tornando seu financiamento vulnerável. A Previdência Social precisa continuar sendo, efetivamente, uma distribuidora de renda. (A.K.)