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Desenvolvendo competências em
crianças com necessidades especiais
Projeto do Cepre mostra que o ‘faz-de-conta’ é importante para despertar habilidades

CARMO GALLO NETTO

A fonoaudióloga Carolina Molina Lucenti de Souza desenvolve atividade com crianças no Cepre: serviço é ampliado (Fotos: Antoninho Perri)O Centro de Estudos e Pes­quisas em Reabilitação Prof. Gabriel Porto (Ce­pre) da Unicamp tra­dicionalmente atende pessoas com deficiência visual e surdez. Desde a criação do curso de Fonoaudiologia, esse serviço foi ampliado, sobretudo para alterações da motricidade oral, fala e de linguagem oral e escrita. Os atendimentos para crianças englobam síndromes diversas, entre as quais alterações neurológicas, que levam a problemas de aprendizado, dificuldades escolares e de inclusão social. Para essas crianças se recomendam usualmente programas integrados de atenção, por meio de serviços de saúde e de educação, visando a promoção de seu desenvolvimento.

Uma modalidade de atendimento, que vem sendo desenvolvida no Ce­­pre, visa criar oportunidades de encorajar essas crianças a mostrarem suas competências, que nem sempre emergem nos ambientes em que estão submetidas, e possibilitar-lhes o desenvolvimento, diz a professora Cecília Guarnieri Batista, do curso de Fonoaudiologia da Faculdade de Ciências Medicas (FCM) da Unicamp. Os atendimentos no Programa Infantil DV incluem, entre outras atividades, os grupos de convivência. As crianças com deficiência visual (cegueira e baixa visão) e que apresentam dificuldades escolares participam desses grupos em encontros semanais. São desenvolvidos diferentes projetos temáticos, entre os quais se incluiu o Projeto Brincar: dentro do período de atendimento, criou-se um espaço em que são oferecidos brinquedos, miniaturas de móveis, eletrodomésticos, utensílios de cozinha e outros que favorecem o faz-de-conta.

Durante as atividades do projeto, os profissionais e estagiários observam, orientando e dirigindo apenas o suficiente, não atuando formalmente, mas também não se mantendo passivos, pois a idéia é encorajar e não dirigir a brincadeira. Cecília aproveitou o atendimento para realizar pesquisas financiadas pelo CNPq e Fapesp. Elas foram desenvolvidas em atividades de iniciação científica pelas hoje fonoaudiólogas e então alunas Carolina Molina Lucenti de Souza e Luciana Hueara e renderam trabalho de conclusão de curso e três artigos. O primeiro, publicado na Revista Brasileira de Educação Especial, aborda “O faz-de-conta em crianças com deficiência visual: identificando habilidades”; o segundo, a ser publicado na revista Psicologia, Reflexão e Crítica, trata da “Interação entre crianças com necessidades especiais em contexto lúdico: possibilidades de desenvolvimento”; o terceiro, submetido à revista Psicologia, Teoria e Pesquisa e aguardando parecer, analisa a atuação do adulto na brincadeira entre crianças com deficiência. Eles atêm-se a três momentos diferentes da pesquisa: a identificação de habilidades, possibilidades de seu desenvolvimento e atuação do adulto no trabalho.

Cecília relata que, no primeiro projeto, com miniaturas de utensílios de cozinha, eletrodomésticos e móveis, uma menina inteiramente cega foi reconhecendo, com pequenas intervenções dos instrutores, os vários objetos. Isso mostra, segundo a docente, que, na falta de visão, outras capacidades além do tato são acionadas, como o raciocínio e o aprendizado já adquirido. “O reconhecimento dos objetos se mostrou mais fácil do que imaginávamos e até do previsto na literatura. A brincadeira leva a mudanças de atitude impressionantes, como a da criança com dificuldades de concentração mas que, diante de uma proposta, mostra-se profundamente participativa e se concentra ao criar uma história do faz-de-conta, motivada pela atividade, o que normalmente teria dificuldade de fazer”.

A professora afirma que o processo procura descobrir capacidades e identificá-las porque depois há como desenvolver potencialidades que não haviam ainda emergido, mas estavam a caminho. Assim, habilidades que ainda estavam em início de desenvolvimento podem ser expandidas e atingir novos níveis de complexidade.
Com essas crianças, na faixa de cinco a seis anos, em uma reunião de avaliação mais formal, com tempo restrito, ocorre em geral que ela se sinta tolhida, por não conhecer o ambiente e o avaliador, e não se coloque à vontade, situação muitas vezes agravada pela presença da mãe que, querendo ajudar, se mostra ansiosa. Em conseqüência, cercada por circunstâncias tão adversas, a criança não se revela. Quando o processo se dá com tempo maior, em um ambiente em que a criança está familiarizada com as pessoas, em que encontra várias possibilidades de efetivamente brincar livremente, a atividade se torna realmente lúdica.

A prática mostra, e a literatura referenda, que esse tipo de criança nem sempre é encorajada a brincar com outras. Embora tratada, atendida e mesmo recebendo orientação de adultos, quando freqüenta ambientes educacionais, corre o risco de ser marginalizada. Emergem então as perguntas: como se pode dar a brincadeira entre elas e o que ganham com isso?

O estudo focado na interação entre as crianças mostrou que o parceiro pode ajudar muito. Carolina Molina Lucenti de Souza diz que os pais geralmente têm medo de deixar essas crianças com outras. “Nossas observações mostram que isso não é bom, pois elas podem ganhar muito na convivência. Observamos que existem vários modos de as crianças brincarem juntas mesmo quando o fazem em paralelo, porque estão atentas umas às outras, o que acaba gerando aproximações motivadas pelo interesse. Verifica-se que elas se ensinam mutuamente a montar cenas, a criar histórias e se constata que uma criança pode ajudar a outra. Desenvolvem-se vários tipos de relações, de companheirismo e também o que nós denominamos de relação de maternagem: uma criança buscando ajudar e ensinar a colega”.

A professora Cecília Guarnieri Batista, da FCM: “Brincadeira leva a mudanças de atitude”Ela lembra do caso de uma menina com baixa visão, considerada, na escola, aluna com dificuldades de aprendizagem, que pediu para o adulto explicar à colega cega como é um triângulo, repetindo gestos que certamente observara em sua professora regular. Por isso, considera que, com a oportunidade, ocorrem situações em que a criança torna-se professora e deixa de ser aluna.

Sobre o diferencial do trabalho, Ce­cília lembra que os estudos que existem nem sempre se concentram na descoberta e encorajamento das capacidades, mas na execução de planos de intervenção que visam corrigir as deficiências apresentadas. Constata que dificilmente são criados espaços que permitam o afloramento de competências. E a propósito afirma: “Corriqueiramente, detectam-se as dificuldades e utilizam-se vários profissionais para ajudar no seu enfrentamento. Mas existem menos espaços de investigação e mesmo de intervenção que favoreçam o aparecimento de capacidades em situação em que o agente do processo não é tão diretivo, de forma a permitir o aparecimento das capacidades e da forma de desenvolvê-las”.
Depois desse primeiro momento, afirma Cecília, a pesquisa se orientou no sentido de descobrir qual a participação dos adultos, que papéis ele vai assumindo no processo e que tipos de relações se manifestam entre eles e as crianças.

Constataram que o adulto organiza o espaço, escolhe os brinquedos que considera mais apropriados, e reorganiza e rearranja certas situações quando necessário. De vez em quando, oferece sugestões que são seguidas ou não e até modificadas pelas crianças que, muitas vezes, enxergam outras alternativas. O adulto sustenta a atuação, está ali, e também é visto como parceiro. Intervém para tirar dúvidas, para fazer perguntas. Ao valorizar a conversa, ele ajuda a expandi-la; ao prestar-lhe atenção, valoriza as crianças.
A pesquisadora explica que normalmente o adulto dirige uma situação ou um programa de treino porque parte do pressuposto de que a criança está atrasada, em risco e precisa ser ensinada. No trabalho por ela proposto, o adulto tenta sustentar a atividade da criança sem obedecer a um roteiro único, respeitando o lúdico, que não está necessariamente atrelado ao brinquedo, mas a uma situação prazerosa.

Constitui foco do trabalho, enfatiza Cecília, tentar entender o desenvolvimento da criança, realizando intervenções que buscam potencialidades que estão em vias de se desenvolverem e procurar promovê-las. Busca trabalhar com as crianças em uma situação em que elas estejam participando por um tempo razoável para que se conheçam, desenvolvam vínculos e relações de confiança, o que facilita muito o aparecimento de suas capacidades.

Por apresentarem um desenvolvimento muito instável, elas precisam de um ambiente amigável, tranqüilo e de menor cobrança, para que as capacidades apareçam e possam ser observadas. Constata que em certas crianças um trabalho que parecia inicialmente muito difícil se torna mais fácil depois de poucas sessões, porque os vínculos e a familiaridade com o local fazem diferença quando se avalia.

 

Atendimento gera linhas de pesquisa

O programa de atendimento regular do Cepre de que a professora Cecília participa se destina a crianças que apresentam problemas variados, encaminhados pelas escolas ou por profissionais que as atenderam, com alterações no desenvolvimento, focados em deficiências visuais, e problemas cognitivos, sociais e de linguagem.

O atendimento em grupos de convivência constitui um serviço à comunidade e propicia a realização de pesquisas, com vistas a contribuir para melhorias desse tipo de trabalho. Psicóloga de formação, preocupada com a psicologia do desenvolvimento, Cecília diz que procurou entender mais sobre o desenvolvimento da linguagem, o que se tornou mais fácil depois da criação do curso de Fonoaudiologia na Unicamp, que permitiu ampliar o atendimento e as pesquisas que já eram realizadas no setor.

Nos grupos de convivência são desenvolvidas atividades muito variadas, através de projetos de ensino não-formal, como sobre o corpo humano, sobre meios de transporte.

Esses projetos são realizados com a participação de bolsistas de iniciação cientifica do curso de fonoaudiologia, que realizam atendimento e pesquisa, caso de Carolina e Luciana, e de alunos do programa de aprimoramento profissional. O curso de aprimoramento profissional, que também constitui uma pós-graduação lato sensu, é mantido junto a vários serviços de saúde do Estado de São Paulo. Na Unicamp, o programa “Psicologia do Desenvolvimento e Deficiência”, do qual a professora Cecilia é supervisora, destina-se a formandos de Psicologia e Fonoaudiologia, que recebem bolsa da Secretaria da Saúde, e tem duração de um ano.

 
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