O
Centro de Estudos e Pesquisas em Reabilitação Prof. Gabriel
Porto (Cepre) da Unicamp tradicionalmente atende pessoas
com deficiência visual e surdez. Desde a criação do curso
de Fonoaudiologia, esse serviço foi ampliado, sobretudo
para alterações da motricidade oral, fala e de linguagem
oral e escrita. Os atendimentos para crianças englobam síndromes
diversas, entre as quais alterações neurológicas, que levam
a problemas de aprendizado, dificuldades escolares e de
inclusão social. Para essas crianças se recomendam usualmente
programas integrados de atenção, por meio de serviços de
saúde e de educação, visando a promoção de seu desenvolvimento.
Uma modalidade de atendimento, que vem sendo desenvolvida
no Cepre, visa criar oportunidades de encorajar essas
crianças a mostrarem suas competências, que nem sempre emergem
nos ambientes em que estão submetidas, e possibilitar-lhes
o desenvolvimento, diz a professora Cecília Guarnieri Batista,
do curso de Fonoaudiologia da Faculdade de Ciências Medicas
(FCM) da Unicamp. Os atendimentos no Programa Infantil DV
incluem, entre outras atividades, os grupos de convivência.
As crianças com deficiência visual (cegueira e baixa visão)
e que apresentam dificuldades escolares participam desses
grupos em encontros semanais. São desenvolvidos diferentes
projetos temáticos, entre os quais se incluiu o Projeto
Brincar: dentro do período de atendimento, criou-se um espaço
em que são oferecidos brinquedos, miniaturas de móveis,
eletrodomésticos, utensílios de cozinha e outros que favorecem
o faz-de-conta.
Durante as atividades do projeto, os profissionais e estagiários
observam, orientando e dirigindo apenas o suficiente, não
atuando formalmente, mas também não se mantendo passivos,
pois a idéia é encorajar e não dirigir a brincadeira. Cecília
aproveitou o atendimento para realizar pesquisas financiadas
pelo CNPq e Fapesp. Elas foram desenvolvidas em atividades
de iniciação científica pelas hoje fonoaudiólogas e então
alunas Carolina Molina Lucenti de Souza e Luciana Hueara
e renderam trabalho de conclusão de curso e três artigos.
O primeiro, publicado na Revista Brasileira de Educação
Especial, aborda “O faz-de-conta em crianças com deficiência
visual: identificando habilidades”; o segundo, a ser publicado
na revista Psicologia, Reflexão e Crítica, trata da “Interação
entre crianças com necessidades especiais em contexto lúdico:
possibilidades de desenvolvimento”; o terceiro, submetido
à revista Psicologia, Teoria e Pesquisa e aguardando parecer,
analisa a atuação do adulto na brincadeira entre crianças
com deficiência. Eles atêm-se a três momentos diferentes
da pesquisa: a identificação de habilidades, possibilidades
de seu desenvolvimento e atuação do adulto no trabalho.
Cecília relata que, no primeiro projeto, com miniaturas
de utensílios de cozinha, eletrodomésticos e móveis, uma
menina inteiramente cega foi reconhecendo, com pequenas
intervenções dos instrutores, os vários objetos. Isso mostra,
segundo a docente, que, na falta de visão, outras capacidades
além do tato são acionadas, como o raciocínio e o aprendizado
já adquirido. “O reconhecimento dos objetos se mostrou mais
fácil do que imaginávamos e até do previsto na literatura.
A brincadeira leva a mudanças de atitude impressionantes,
como a da criança com dificuldades de concentração mas que,
diante de uma proposta, mostra-se profundamente participativa
e se concentra ao criar uma história do faz-de-conta, motivada
pela atividade, o que normalmente teria dificuldade de fazer”.
A professora afirma que o processo procura descobrir capacidades
e identificá-las porque depois há como desenvolver potencialidades
que não haviam ainda emergido, mas estavam a caminho. Assim,
habilidades que ainda estavam em início de desenvolvimento
podem ser expandidas e atingir novos níveis de complexidade.
Com essas crianças, na faixa de cinco a seis anos, em uma
reunião de avaliação mais formal, com tempo restrito, ocorre
em geral que ela se sinta tolhida, por não conhecer o ambiente
e o avaliador, e não se coloque à vontade, situação muitas
vezes agravada pela presença da mãe que, querendo ajudar,
se mostra ansiosa. Em conseqüência, cercada por circunstâncias
tão adversas, a criança não se revela. Quando o processo
se dá com tempo maior, em um ambiente em que a criança está
familiarizada com as pessoas, em que encontra várias possibilidades
de efetivamente brincar livremente, a atividade se torna
realmente lúdica.
A prática mostra, e a literatura referenda, que esse tipo
de criança nem sempre é encorajada a brincar com outras.
Embora tratada, atendida e mesmo recebendo orientação de
adultos, quando freqüenta ambientes educacionais, corre
o risco de ser marginalizada. Emergem então as perguntas:
como se pode dar a brincadeira entre elas e o que ganham
com isso?
O estudo focado na interação entre as crianças mostrou
que o parceiro pode ajudar muito. Carolina Molina Lucenti
de Souza diz que os pais geralmente têm medo de deixar essas
crianças com outras. “Nossas observações mostram que isso
não é bom, pois elas podem ganhar muito na convivência.
Observamos que existem vários modos de as crianças brincarem
juntas mesmo quando o fazem em paralelo, porque estão atentas
umas às outras, o que acaba gerando aproximações motivadas
pelo interesse. Verifica-se que elas se ensinam mutuamente
a montar cenas, a criar histórias e se constata que uma
criança pode ajudar a outra. Desenvolvem-se vários tipos
de relações, de companheirismo e também o que nós denominamos
de relação de maternagem: uma criança buscando ajudar e
ensinar a colega”.
Ela
lembra do caso de uma menina com baixa visão, considerada,
na escola, aluna com dificuldades de aprendizagem, que pediu
para o adulto explicar à colega cega como é um triângulo,
repetindo gestos que certamente observara em sua professora
regular. Por isso, considera que, com a oportunidade, ocorrem
situações em que a criança torna-se professora e deixa de
ser aluna.
Sobre o diferencial do trabalho, Cecília lembra que os
estudos que existem nem sempre se concentram na descoberta
e encorajamento das capacidades, mas na execução de planos
de intervenção que visam corrigir as deficiências apresentadas.
Constata que dificilmente são criados espaços que permitam
o afloramento de competências. E a propósito afirma: “Corriqueiramente,
detectam-se as dificuldades e utilizam-se vários profissionais
para ajudar no seu enfrentamento. Mas existem menos espaços
de investigação e mesmo de intervenção que favoreçam o aparecimento
de capacidades em situação em que o agente do processo não
é tão diretivo, de forma a permitir o aparecimento das capacidades
e da forma de desenvolvê-las”.
Depois desse primeiro momento, afirma Cecília, a pesquisa
se orientou no sentido de descobrir qual a participação
dos adultos, que papéis ele vai assumindo no processo e
que tipos de relações se manifestam entre eles e as crianças.
Constataram que o adulto organiza o espaço, escolhe os
brinquedos que considera mais apropriados, e reorganiza
e rearranja certas situações quando necessário. De vez em
quando, oferece sugestões que são seguidas ou não e até
modificadas pelas crianças que, muitas vezes, enxergam outras
alternativas. O adulto sustenta a atuação, está ali, e também
é visto como parceiro. Intervém para tirar dúvidas, para
fazer perguntas. Ao valorizar a conversa, ele ajuda a expandi-la;
ao prestar-lhe atenção, valoriza as crianças.
A pesquisadora explica que normalmente o adulto dirige uma
situação ou um programa de treino porque parte do pressuposto
de que a criança está atrasada, em risco e precisa ser ensinada.
No trabalho por ela proposto, o adulto tenta sustentar a
atividade da criança sem obedecer a um roteiro único, respeitando
o lúdico, que não está necessariamente atrelado ao brinquedo,
mas a uma situação prazerosa.
Constitui foco do trabalho, enfatiza Cecília, tentar entender
o desenvolvimento da criança, realizando intervenções que
buscam potencialidades que estão em vias de se desenvolverem
e procurar promovê-las. Busca trabalhar com as crianças
em uma situação em que elas estejam participando por um
tempo razoável para que se conheçam, desenvolvam vínculos
e relações de confiança, o que facilita muito o aparecimento
de suas capacidades.
Por apresentarem um desenvolvimento muito instável, elas
precisam de um ambiente amigável, tranqüilo e de menor cobrança,
para que as capacidades apareçam e possam ser observadas.
Constata que em certas crianças um trabalho que parecia
inicialmente muito difícil se torna mais fácil depois de
poucas sessões, porque os vínculos e a familiaridade com
o local fazem diferença quando se avalia.
Atendimento gera linhas de pesquisa