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Os pontos obscuros da linha branca

Pesquisa inserida em projeto internacional mostra
efeitos de reestruturação produtiva no segmento


MANUEL ALVES FILHO

Geladeiras expostas em loja em Campinas: investigações feitas em oito plantas de cinco países apontam redução de postos, aumento da parte variável do salário e intensificação da carga de trabalho (Foto: Antoninho Perri)A intensificação dos processos de internacionalização, concentração de capital e de reestruturação produtiva, associada às transformações tecnológicas e organizacionais, trouxe impactos significativos e semelhantes para o trabalho de gerentes de fábricas de eletrodomésticos de linha branca de cinco países diferentes. A constatação é da tese de doutoramento de Ana Maria Pina, defendida recentemente no Instituto de Geociências (IG) da Unicamp. De acordo com o trabalho, que investigou oito plantas instaladas no Brasil (três), Turquia (duas), China (uma), Coréia do Sul (uma) e Taiwan (uma), as mudanças ocorridas no setor acarretaram, entre outras implicações, redução de postos de trabalho, aumento da parte variável do salário e intensificação da carga de trabalho desses profissionais. O estudo foi orientado pela professora Leda Gitahy.

A pesquisa de Ana Pina foi desenvolvida no contexto de um projeto internacional, cuja coordenação geral coube ao professor Theo Nichols, da Universidade de Cardiff. No Brasil, a pesquisa, realizada com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), foi coordenada pela professora Ângela Maria Carneiro de Araújo, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, com apoio da professora Leda Gitahy. O objetivo do projeto como um todo foi analisar comparativamente quais foram as consequências dessas transformações para os trabalhadores. A pesquisa de campo se estendeu de 2001 a 2006. “Eu optei por analisar especificamente a situação dos gerentes porque existiam poucos estudos comparativos relacionados a esse tipo de função que contemplassem diferentes países”, explica a autora da tese.

Além disso, continua Ana Pina, o interesse em estudar os gerentes também se deveu ao fato de a categoria vivenciar uma situação peculiar. Esses profissionais são ao mesmo tempo responsáveis pela introdução de boa parte das inovações organizacionais nas fábricas e vítimas desse processo. De acordo com a pesquisadora, o projeto utilizou a mesma metodologia nos cinco países selecionados. Foram escolhidas empresas com no mínimo 500 funcionários e que tivessem uma participação expressiva na indústria de linha branca em suas respectivas nações. “Inicialmente, nós pretendíamos entrevistar, por meio de questionário padrão, 50 trabalhadores e 50 gerentes nas oito unidades, mas isso não foi possível em todas elas, visto que em algumas já não havia tantas pessoas ocupando postos em nível gerencial, resultado direto das implicações do que pretendíamos analisar”, conta Ana Pina.

A professora Leda Gitahy, orientadora da pesquisa: projeto contempla a área produtiva de um expressivo número de empresas e países(Foto: Antoninho Perri)Concluído o trabalho de campo, os dados foram tabulados em um programa estatístico desenvolvido para a área das Ciências Sociais, o que permitiu o cruzamento das diversas variáveis e a identificação das semelhanças e diferenças existentes entre as fábricas estudadas. Conforme Ana Pina, foi possível apurar mais pontos em comum do que distinções entre as unidades. A autora da tese esclarece que algumas transformações se deram de forma muito semelhante nas empresas do segmento de linha branca. A difusão das inovações tecnológicas, por exemplo, ocorreu de maneira parecida em todas elas. O mesmo aconteceu em relação aos novos métodos organizacionais. “Essas questões tiverem rebatimento nas condições de trabalho dos gerentes. Uma consequência desses fatores foi a redução dos postos de trabalho”, diz.

Outro ponto que chamou a atenção da pesquisadora foi o aumento da parte variável do salário da categoria analisada. Em outros termos, parcela importante do rendimento dos profissionais passou a ser vinculada aos resultados atingidos. Assim, uma fração dos ganhos foi traduzida na forma de bônus e prêmios. “Ademais, também houve a intensificação da carga de trabalho, uma vez que o número de profissionais que ocupavam cargo de chefia foi reduzido”, acrescenta Ana Pina. A percepção dos gerentes em relação às mudanças ocorridas também foi parecida, a despeito do país e da empresa considerados. De forma geral, eles disseram que se sentiam submetidos a um maior nível de estresse. Também afirmaram que a sensação de incerteza sobre a permanência no mercado de trabalho havia sido ampliada. “Essa percepção se deve, entre outros fatores, ao alto nível de exigência por parte das empresas, que passaram a cobrar de seus colaboradores maior grau de escolaridade, formação continuada, domínio de outros idiomas, além de determinadas características pessoais, como capacidade de liderança. A pesquisa mostrou que há um aumento das pressões sobre os gerentes, que passaram a enxergar suas chances de permanência no emprego cada vez mais vinculadas a indicadores de desempenho”.

Ainda que as semelhanças tenham emergido com mais vigor da pesquisa desenvolvida por Ana Pina, o trabalho também identificou diferenças entre os países estudados. Essas apareceram especialmente na percepção dos gerentes sobre suas condições de trabalho. Os maiores níveis de satisfação no trabalho foram explicitados pelos gerentes das plantas localizadas no Brasil. Em virtude de os cinco países contarem com quadros regulatórios muito distintos, assinala a pesquisadora, as relações de trabalho também se diferenciavam. O estudo das diversas plantas permitiu observar, por exemplo, que os gerentes brasileiros ainda contavam com algumas condições melhores em comparação com as dos demais países, no que se refere à manutenção de direitos trabalhistas e tipos de contrato adotados em seus locais de trabalho. Isso pode ser explicado pelo tipo de legislação vigente no Brasil, que é mais restritiva ao uso de formas precárias de emprego e pelo tipo de atuação dos sindicatos.

O maior nível de insatisfação apurado pelo estudo foi entre os gerentes da fábrica de Taiwan. “Isso se deveu possivelmente por causa de dois fatores. Primeiro, porque nos três países asiáticos estudados há uma maior flexibilização dos direitos trabalhistas, como a adoção dos contratos por tempo determinado. Há, ainda, as condições de trabalho adversas, como alto nível de ruído no interior das plantas e a ocorrência sistemática de doenças ocupacionais. Segundo, é preciso considerar o fato de que as entrevistas foram realizadas num período em que a unidade de Taiwan estava demitindo funcionários em razão da queda no faturamento, o que criou um clima ruim na fábrica”, aponta Ana Pina. “Como reflexo de seus quadros institucionais e das relações de trabalho vigentes nos três países asiáticos, a tendência de redução de direitos para os empregados assalariados e o desmantelamento do trabalho permanente foram muito mais contundentes. Aos gerentes desses países, sem dúvida, cabia o desafio maior de estimular e mobilizar trabalhadores com contratos precarizados”, completa a pesquisadora.

Ana Maria Pina, cuja tese foi defendida no IG: “Número de profissionais que ocupavam cargo de chefia foi reduzido” (Foto: Divulgação)Para a professora Leda Gitahy, a originalidade do projeto internacional, no qual a tese de Ana Pina se baseou, está no fato de ele ter contemplado a área produtiva de um expressivo número de empresas e países, o que permitiu o estabelecimento de parâmetro de comparação entre eles. A docente destaca que os dados apurados ao longo desse esforço cooperado geraram vários trabalhos acadêmicos, tanto no Brasil quanto nos demais países que participaram da pesquisa. Entre eles, vale destacar o livro Labour in a Global World, editado por Theo Nichols e Surhan Cam e publicado pela Palmgrave em 2005. Além dos pesquisadores do IG, participaram da parte brasileira do projeto as professoras Alessandra Rachid (UFSCar) e Adriana Cunha (Facamp), além de vários alunos de graduação, mestrado e doutorado das diversas instituições envolvidas.

Segundo a professora do IG, a trajetória cumprida pelo projeto não foi das mais simples. Inicialmente, relata, a ideia dos pesquisadores era promover um estudo comparativo entre os países desenvolvidos e os em desenvolvimento. Entretanto, a equipe da Inglaterra não conseguiu ter acesso às plantas industriais do país. Ademais, a proposta original incluía no estudo fábricas da Austrália, que foram adquiridas por grupos internacionais e fechadas em seguida. “Isso nos obrigou a fazer uma correção de rumo, que culminou no formato que foi efetivamente executado”. Leda Gitahy destaca, ainda, que o momento em que as pesquisas de campo foram executadas coincidiu com a fase em que ocorreu um intenso processo de internacionalização do setor de linha branca, efetivado por meio de compras e fusões de diversas empresas. No Brasil, o setor de linha branca tem participação importante na atividade econômica e na geração de emprego. Dados de 2008 indicam que o segmento emprega cerca de 30 mil trabalhadores.

 

 
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