MÁRIO
FERREIRA PRESSER
Segundo
a instituição responsável pelo seu cálculo, o Instituto
Brasileiro de Economia (IBRE) da Fundação Getulio Vargas, o Índice
Geral de Preços (IGP) tem como finalidade registrar o ritmo evolutivo
de preços como medida síntese da inflação nacional.
O IGP é composto pela média ponderada do IPA (60%), IPC (30%)
e INCC (10%). Estão disponíveis três versões do
IGP, sendo o método de cálculo idêntico para as três
versões, diferindo apenas na periodicidade da pesquisa de preços
e na estrutura de pesos de seus componentes:
IGP-DI
- compreende o período entre o primeiro e o último dia do mês
de referência;
IGP-M - compreende o período
entre o dia 21 do mês anterior ao de referência e o dia 20 do mês
de referência;
IGP-10 - compreende o período
entre o dia 11 do mês anterior ao de referência e o dia 10 do mês
de referência.
O IGP-M tem como principal destinatário
o mercado financeiro, em virtude de convênio com a Confederação
Nacional das Instituições Financeiras (CNF). Sua divulgação
é feita pelo IBRE com a participação da Associação
Nacional das Instituições do Mercado Aberto (ANDIMA). Contratos
financeiros e outros, como aluguéis e serviços vários, utilizam
esse índice para os reajustes anuais dos contratos. Em particular, as diversas
esferas de governo - federal, estadual, municipal - emitiram títulos de
dívida pública que se encontram indexados ao IGP em alguma de suas
modalidades.
Há uma grande e justificada controvérsia,
neste momento, envolvendo reajustes de contratos por qualquer das modalidades
do IGP. Houve um descolamento entre os IGPs e os IPCs desde a desvalorização
de janeiro de 1999, que se acentuou no último trimestre de 2002. Este fenômeno
pode ser observado no Gráfico 1. A tônica da discussão econômica
na grande imprensa centra-se na questão da construção da
reputação do governo Lula, envolvendo a promessa por escrito de
não interferir nos contratos firmados: a maioria dos comentadores defende
que os contratos indexados aos IGPs apesar do descolamento entre os índices
- devem ser mantidos.1 Com freqüência, encontra-se justificando essa
posição a validade de uma suposta lei que estabeleceria
que a diferença entre os índices tenderia a desaparecer ou a ser
reduzida com o passar do tempo.
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Esta
Nota Técnica pretende contribuir para o debate sobre a propriedade do IGP
como indexador de contratos na economia, mostrando que há várias
evidências de que o IGP, ao menos no período recente, teria deixado
de se constituir numa medida síntese da inflação nacional,
como é sua intenção declarada.
Não
há porque supor que os índices convergirão num futuro próximo.
O contrário parece ser o caso: conforme mostra o Gráfico 1, aumenta
o hiato entre o IGP e os índices de preços ao consumidor, em particular
desde a desvalorização do real no início de 1999. Entre janeiro
de 1998 e abril de 2003, os dois índices de preços ao consumidor
situaram-se entre 155,6% (INPC) e 149,9% (IPCA), uma diferença de apenas
5,7 pontos percentuais em 64 meses. Por sua vez, neste período o IGP-DI
acumulou 196,4% e o IPA-DI, 233,8%, índices que superam o IPCA em 46,5
e 83,9 pontos percentuais, respectivamente, uma diferença por todos os
títulos muito significativa. Nos últimos doze meses decorridos até
abril de 2003, período que registrou uma acentuada desvalorização
do real, aumentou a diferença absoluta e relativa entre os índices:
a diferença entre o IGP-DI e o IPCA acumulava 21,4 pontos percentuais de
janeiro de 1998 a maio de 2002, que representavam apenas 46% dos 46,5 pontos percentuais
que separavam os dois índices em abril de 2003. Esse comportamento divergente
dos índices gera uma dúvida fundamentada: qual indexador ou conjunto
de indexadores representa melhor a inflação geral da economia?
Em
resumo, as evidências recentes são as seguintes: o IGP-DI acumulado
em doze meses, até abril de 2003, estava em 32,37%. Outra de suas variantes,
o IGP-M, amplamente utilizado pelo mercado financeiro, acumulava 32,97%. Entre
os componentes do IGP-DI, o IPA-DI acumulava, no mesmo período, 42,65%;
o IPC 16,48% e o INCC, 16,25%. Logo, a grande discrepância entre o IGP-DI
e os demais índices de preços ao consumidor (entre os quais, neste
período, o INPC do IBGE registrava a maior taxa acumulada nos últimos
doze meses, com 19,36% e o IPC-Fipe, a menor, com 14,45%) deve-se ao comportamento
do IPA-DI.
Uma evolução dos preços
no atacado, medidos pelo IPA-DI, que supera em mais de vinte e três pontos
percentuais a dos preços ao consumidor, indicaria a formação
de formidável pressão inflacionária no nível dos produtores
e atacadistas que tenderia ser transmitida em grande parte aos IPCs nos próximos
meses. É difícil, em termos econômicos, acreditar que os intermediários
entre atacadistas e consumidores os varejistas - pudessem ou aceitassem
absorver a maior parte de uma diferença de preços tão significativa.
Tampouco há evidência de que este fenômeno esteja acontecendo.
Por outro lado, o nível de atividade encontra-se deprimido, mas é
difícil acreditar que a recessão pudesse inibir a passagem de reajustes
de tal magnitude dos atacadistas aos varejistas.
Entretanto,
o que se observa nos meses de maio e junho do corrente ano é que não
houve o repasse esperado aos índices de preços ao consumidor. O
IPC da própria FGV-RJ em maio foi de apenas 0,69%. Todos os demais índices
de preços ao consumidor situaram-se abaixo de 1%. Em junho, o comportamento
de todos esses índices continua com uma trajetória em queda, alguns
até acusando deflação, apesar do fato de que vários
preços administrados, importantes nas cestas de mercadorias que informam
o cálculo destes índices, são indexados pelo próprio
IGP, retro-alimentando os IPCs com uma tendência altista nos últimos
meses. Sem dúvida, este é um comportamento singular e anômalo,
que merece uma explicação cabal da sua natureza, não fornecida
até agora, a meu juízo, pelo IBRE/FGV-RJ. Isto porque existem outras
evidências que colocam em xeque a propriedade do IGP como um índice
de inflação geral.
Guimarães forneceu
um primeiro argumento ponderável: a existência do IGP tem sido
justificada como uma estimativa, de periodicidade mensal, do Deflator Implícito
do PIB. Contudo, o IGP tem fornecido, nos últimos anos, uma má antecipação
do Deflator - o coeficiente de correlação entre os dois índices
no período 1996/2002 é 0,33; o coeficiente correspondente no caso
do Deflator e do IPCA é 0,99. Vale dizer, indicadores de preços
ao consumidor revelaram-se, no período 1996-2002, superiores ao IGP como
deflator implícito do PIB e medida síntese da inflação
nacional, objetivo declarado do IGP.
Compartilha-se
nesta Nota Técnica da tese de Guimarães: por problemas de ponderação
ou de coleta ou ambos, o IGP-DI e suas variantes não refletem a inflação
geral do país, em especial no período recente. Desde o último
trimestre de 2002, depois de uma brusca e rápida depreciação
da moeda nacional em relação ao dólar e às outras
moedas fortes nos dois trimestres precedentes, acentuou-se a impropriedade do
IGP como medida síntese da inflação nacional.
Não há evidências da transmissão mais acelerada da
inflação registrada pelo IPA-DI aos índices de preços
ao consumidor, como se mostrou nos parágrafos anteriores. Adicionalmente,
há forte evidência que o IGP-DI deixou também de ser um fidedigno
indicador antecedente para estimar a evolução nominal da arrecadação
do ICMS, propriedade que mantinha desde 1995.
Em defesa
dessa tese, apresenta-se a seguir a análise do comportamento recente da
arrecadação do ICMS do Estado de São Paulo. Realizaram-se
também testes econométricos com os valores agregados deste imposto
para o Brasil, obtendo-se conclusões similares. É conhecimento tácito
dos especialistas em tributação estadual, adquirido pelo aprendizado
obtido pelo acompanhamento da arrecadação, que o comportamento nominal
da arrecadação do ICMS reflete no curto prazo, partindo de uma determinada
base do ICMS, a evolução nominal da inflação geral,
ponderada por um índice do nível de atividade. O importante a sublinhar
aqui é que uma subida geral dos preços tende a ser imediatamente
captada na arrecadação deste imposto em condições
normais de funcionamento da economia. De fato, os testes econométricos
mostram que as correlações entre ICMS e IGP são extremamente
elevadas (superiores a 90%), ao contrário dos fracos resultados entre Deflator
Implícito do PIB e IGP relatados por Guimarães.
O
Gráfico 2 mostra a evolução nominal do ICMS do Estado de
São Paulo entre janeiro de 1998 e abril de 2003.2 Nos últimos doze
meses, até abril de 2003, a evolução nominal da arrecadação
do ICMS foi de apenas 8,5%, contra os 32,4% do IGP-DI. A evolução
nominal do ICMS Brasil, neste período, foi ainda menor, 5,2%.
Estes
são resultados absolutamente surpreendentes. Note-se que, até o
último trimestre de 2002, a evolução nominal do ICMS (São
Paulo ou Brasil) acompanhava de perto a evolução nominal do IGP-DI,
muito melhor do que a evolução nominal do INPC ou de qualquer outro
índice de preços ao consumidor. Desde então, há uma
divergência na evolução nominal do ICMS e do IGP-DI, como
mostra o Gráfico 2 para São Paulo, justamente no período
que segue ao registro de valores mensais muito elevados do IPA: o IGP-DI passa
a crescer muito à frente do ICMS e o hiato nominal não se fecha
nos meses seguintes, pelo contrário, tende a aumentar. Não há
mudanças tributárias neste período que possam explicar tal
evento. É fato que há uma recessão longa e marcada por taxas
de juros muito elevadas, cujos efeitos sistêmicos sobre a arrecadação
do ICMS de São Paulo possivelmente expliquem que, nos primeiros meses de
2003, o ICMS não consiga sequer acompanhar a evolução nominal
dos IPCs (no caso do Gráfico 2, do INCC). Isto reforça a tese de
que o índice geral de inflação é mais bem representado
pelos índices de preços ao consumidor no período recente:
em condições normais de funcionamento da economia, a elasticidade
do ICMS em relação aos índices gerais de inflação
era próxima de 1, conhecimento tácito comprovado pelos testes estatísticos.
Nas recessões, o ICMS pode crescer abaixo do índice geral de inflação,
mas certamente não na escala em que passa a divergir da evolução
do IGP no período recente.
A explicação
da crescente divergência entre a evolução nominal do IGP e
do ICMS pode ser atribuída a comportamentos anômalos do IGP, da arrecadação
do ICMS ou de ambos. Os testes estatísticos descritos no Anexo Técnico
mostram que ambos é a resposta mais provável na atual
conjuntura.
Por outro lado, os testes mostraram que,
na conjuntura recessiva recente, o ICMS não conseguiu sequer acompanhar
os índices de preços ao consumidor, ou seja, ficou muito aquém
da trajetória prevista pelo IGP. Testes com índices de preços
ao consumidor, por sua vez, mostraram uma elasticidade mais próxima à
unidade característica de um índice geral da inflação
- na sua relação com o ICMS. Portanto, os testes fornecem elementos
adicionais aos apresentados por Guimarães, corroborando a tese de que os
IPCs representam melhor a inflação geral da economia do que qualquer
modalidade do IGP.
Todos os contratos costumam prever
a substituição dos índices de reajuste em caso de sua descontinuidade.
Na situação atual, esta descontinuidade nos contratos indexados
por alguma das variantes do IGP está sendo causada não pela interrupção
da coleta e cálculo do índice, mas pela inadequação
aos objetivos que levaram à sua criação e adoção
pelos agentes econômicos, ou seja, ser uma medida síntese da inflação
nacional, capaz de manter o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos.
Dois
governos federais, de diferentes orientações partidárias,
absortos em jogos reputacionais com grandes empresários, recusam-se a denunciar
os contratos indexados pelo IGP. Os prejuízos causados aos Tesouros Nacional,
Estadual e Municipal são imensos. Guimarães, ex-Secretário
do Tesouro Nacional, já os havia denunciado: Para a União,
a indexação de títulos do Tesouro Nacional pelo IGP, em vez
do IPCA, implicou, em 2002, uma transferência da ordem de R$ 6 bilhões
para detentores desses títulos. No caso da dívida dos Estados e
municípios refinanciada pela União, a adoção do IGP,
em vez do IPCA, acarretou um aumento do saldo devedor superior a R$ 24 bilhões
no ano passado. Os prejuízos do conjunto dos consumidores com contratos
indexados ao IGP também são imensos. Cabe depositar, mais uma vez,
o interesse público nas mãos das organizações da sociedade
civil e do Judiciário para que uma das maiores transferências espúrias
de renda aos grandes empresários da história recente do Brasil não
seja concretizada.
Mário Ferreira Presser é professor
do Instituto de Economia da Unicamp.
1
Eduardo Guimarães, ex-presidente do IBGE e do Banco do Brasil, é
uma das raras exceções entre os comentadores,defendendo a substituição
do IGP nos contratos, mas num processo que deveria se iniciar somente em 2004.
Ver: Eduardo Guimarães. O viés do IGP e seus efeitos.
Valor Econômico, 30 de junho de 2003, Ano 4, Nº789, 1º Caderno.
2
O ICMS do estado de São Paulo foi normalizado, isto é, foi retirado
o excesso de arrecadação devido à anistia fiscal que elevou
a arrecadação no período setembro a dezembro de 2002. Se
fosse retirado o excesso de arrecadação devido ao programa REFIS
no último semestre de 2000, a correlação já muito
elevada entre ICMS e IGP-DI no período seria ainda maior.