CLAYTON
LEVI
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“Se
nós descuidarmos da universidade, estaremos indo irremediavelmente para um lugar
eternamente subordinado na divisão internacional do trabalho capitalista” |
A
Jornal da UnicampPorque o senhor diz que a reforma da Previdência
é uma grande negociata?
Francisco de Oliveira O objetivo
primordial da reforma da Previdência é de caráter fiscalista.
Ela não está preocupada em ampliar os marcos da seguridade social,
mas em restringi-la com o objetivo de fazer caixa. Em segundo lugar, há
um objetivo mais sombrio, que é o de inventar os fundos de previdência
complementar para atender àqueles que têm salários mais altos
que os limites estabelecidos pela emenda constitucional. Isso significa um mercado
riquíssimo de seguros privados. Algumas simulações mostram
que até 2010 esses fundos de Previdência, a partir da reforma, podem
chegar a R$ 670 bilhões. Aos preços de hoje, esse valor corresponderia
a quase 50% do PIB brasileiro. Se somarmos todas as privatizações
de empresas estatais que foram feitas ao longo dos últimos dez anos, não
dá nem um terço desses R$ 670 bilhões. Portanto, o que se
esconde por trás da reforma da Previdência são altos negócios.
E altos negócios, no sistema capitalista, não se fazem sem negociata.
JUMas
isso não contradiz a postura histórica das pessoas que estão
no governo, que sempre usaram um discurso de esquerda contra os interesses do
mercado?
Oliveira É uma grave contradição.
Um partido de trabalhadores que é a coluna vertebral deste governo, o que
deveria estar fazendo é ampliar a seguridade social. Em primeiro lugar,
por razões de justiça social, razões de cidadania e até
razões econômicas, porque a seguridade social constitui um poderoso
regulador dos movimentos erráticos da economia. Mas infelizmente o Partido
dos Trabalhadores, por meio de sua liderança, escolheu outro caminho. É
uma grave contradição.
JU
Do ponto de vista econômico, quais seriam as conseqüências
negativas da reforma?
Oliveira Afetará a renda das
pessoas. Trata-se de um arrocho salarial disfarçado. Ninguém está
falando desse aspecto. A imprensa não dá nenhuma atenção,
mas isso é um formidável arrocho salarial.
JU
Então, a quem interessa essa reforma?
Oliveira
De uma ótica fiscalista interessa àqueles preocupados com o equilíbrio
fiscal do estado. Mas interessa sobretudo ao capital financeiro, porque se criará
um enorme mercado de seguros privados, que é uma espécie de maná
do deserto. Deve ter sido esse o alimento de Moisés ao atravessar o deserto.
JU
O senhor acha que ainda há margem de manobra para alterar alguma
coisa significativa na reforma da Previdência?
Oliveira
Sou pessimista. Os deputados estão falando em nome de quem? Deveriam estar
falando pela força eleitoral que a institucionalidade do sistema partidário
lhes confere. Nesse ponto há um corte. E nesse corte a instituição
política do partido ganha uma economia em relação à
chamada base social e não tem quem refaça essa ligação
porque a institucionalidade dá direito ao partido de ser autônomo
em relação à sua base. Ele perde o compromisso e você
não tem como cobrar. O mandato representativo é ao mesmo tempo delegativo.
Uma vez com o mandato, ele age de maneira autônoma. Isso é fatal
para a relação com a base. Exemplo disso é que os destaques
propostos para alterar o texto da reforma foram retirados. Isso demonstra que
não há muita diferença hoje, no Brasil, entre situação
e oposição. Há uma mistura de interesses.
JU
O senhor compara a atual política econômica do governo a um
ornitorrinco. Por quê?
Oliveira A economia periférica
capitalista brasileira é um ornitorrinco. É uma combinação
esdrúxula de setores altamente desenvolvidos, um setor financeiro macrocefálico,
mas com os pés de barro. O ornitorrinco brasileiro não é
bem como o ornitorrinco da Oceania. Ele é uma figura magra, esquelética,
sustentando uma cabeça enorme, que é esse sistema financeiro, mas
com pernas esquálidas e anêmicas, que são a desigualdade social
e a pobreza extrema. Esse ornitorrinco não é como o subdesenvolvimento,
que surgiu de uma singularidade histórica, quando o capitalismo mercantil
alcançou a América, destruindo as civilizações pré-colombianas,
e criando outras sociedades, chamadas subdesenvolvidas porque não eram
um elo na cadeia do desenvolvimento, mas uma coisa criada pelo encontro do capitalismo
com outras sociedades. O ornitorrinco não é mais isso, porque os
traços originários da sociedade brasileira já desapareceram
ao longo de 500 anos e, portanto, são outros.
JU
O senhor também diz que a opinião pública está
sendo manipulada para reforçar a imagem negativa do funcionário
público. De que maneira isso está ocorrendo?
Oliveira
As classes dominantes da sociedade brasileira são patrimonialistas.
É uma sociedade que não distingue o público do privado, o
mercado do estado. Quem se aproveita disso são as elites e as classes dominantes.
Isso gerou um estado mal conformado, cujos serviços são precários
de fato, uma macrocefalia, ao mesmo tempo gigante e inoperante. É esta
imagem que chega ao povão. O povão enfrenta filas. A cara negativa
do estado brasileiro é esta cara medonha que o povo vê. Mas quem
o povo vê? Ele não vê o estado porque o estado é uma
abstração teórica. A materialidade do estado que o povo vê
é o funcionário público que o atende, e às vezes o
atende mal. Então há uma relação de amor e ódio
entre o povão e o funcionário público. A imagem negativa
que se faz do funcionário público é, ao mesmo tempo, verdadeira
e falsa. Verdadeira porque de fato os serviços do estado são ruins,
os profissionais são estressados e as instalações são
ruins. Mas também é uma imagem falsa porque estas condições
não foram criadas pelo funcionário público e sim pela forma
em que o estado brasileiro foi montado e pela predação que as classes
dominantes fazem sobre o estado brasileiro, como por exemplo destinar 30% do orçamento
público para pagar juros da dívida interna e externa.
JU
Em sua opinião, quais seriam as conseqüências da reforma
para a universidade pública caso o texto do governo seja aprovado sem grandes
modificações?
Oliveira No médio e longo
prazo a primeira conseqüência é tornar a universidade menos
atrativa para futuros professores. Isso pode desfalcar a universidade de quadros
importantes. Essa conseqüência não vai demorar para aparecer.
Outra conseqüência, mais importante, de longo prazo, é a incapacidade
de dotar a universidade pública dos recursos à altura dos desafios
do presente, desafios de um sistema que é cada vez mais movido pela ciência
e tecnologia. Se nós descuidarmos da universidade, estaremos indo irremediavelmente
para um lugar eternamente subordinado na divisão internacional do trabalho
capitalista. Pode haver uma regressão. Só quem faz pesquisa científica
no Brasil é a universidade pública. Se tirar isso desaba tudo, porque
a contribuição do setor privado para ciência e tecnologia
no Brasil é ridícula.
JU
Qual seria, em sua opinião, o papel da universidade pública
nesse momento de mudanças turbulentas?
Oliveira Nesse
momento de transição, a universidade deveria ajudar a iluminar as
possibilidades reais que o povo brasileiro tem para retomar o crescimento e diminuir
as desigualdades sociais, com suas pesquisas e seus acervos sobre a história
brasileira. Isso ajuda muito. Na questão da energia nuclear, por exemplo,
físicos importantes que atuavam em universidades públicas fizeram
a crítica das opções da energia nuclear durante a ditadura,
apontando os riscos. Angra dos Reis está aí confirmando toda a crítica
que se fez naquela época. A universidade ajuda nesse sentido. A universidade
não substitui a ação cidadã, mas ilumina o campo de
estudo e leva à reflexão porque é o lugar onde se desenvolve
o conhecimento. É a única instituição que tem capacidade
de autocrítica. Sua matéria de trabalho é a dúvida,
é a crítica.
JU O
que o senhor quis dizer exatamente ao afirmar que estaria havendo uma crise de
representatividade nos partidos políticos, em especial no PT, partido do
qual o senhor é um dos fundadores históricos?
Oliveira
Está havendo essa crise no PT, especificamente. O partido diz que
está representando os trabalhadores. Mas quais trabalhadores, de quais
setores? O PT foi fundado por um movimento sindical que hoje está muito
danificado pela globalização, pela reestruturação
produtiva. Não foi à toa que o setor sindical que mais cresceu na
CUT, por exemplo, foi o dos funcionários públicos, porque até
então eles não tinham sido muito afetados. A partir de agora, as
instituições formadas para representar esse setor de trabalho serão
danificadas. E isso leva a perder capacidade de representação.
JU
Segundo o senhor, essa crise de representatividade estaria gerando descontentamentos
internos no PT, o que daria margem para a articulação de uma dissidência.
Está em gestação algum novo movimento dentro do PT?
Oliveira
Não existe movimento em gestação. Inclusive, se dissesse
isso estaria alvoroçando os caçadores de bruxas. O que existe é
uma crescente insatisfação que passa por vários setores,
incluindo parlamentares, militantes, gente que não se sente bem, que tem
vergonha do que está acontecendo. Exemplo disso é que na primeira
votação da reforma da Previdência, a Câmara saiu triste.
Os deputados estão com a consciência perturbada, sobretudo aqueles
de esquerda e do PT, porque estão conscientes de que deram uma mancada.
Ninguém comemorou a vitória do governo. Quando os parlamentares
aprovaram o impeachment de Collor (Fernando Collor de Mello), houve uma explosão
de alegria na Câmara. Dessa vez, não tem alegria nenhuma relacionada
a essa vitória do governo.
JU
No que o senhor acha que pode resultar esse descontentamento interno no PT?
Oliveira
Não sei. Seria apostar. Por enquanto não haverá
uma recomposição porque a direção do partido está
tratorando os dissidentes. A curto prazo não vejo nada. O que vejo é
uma coisa subterrânea, uma crescente insatisfação, uma amargura.
JU
Em sua visão, o que teria levado um governo petista a adotar uma
postura que contraria o seu discurso histórico?
Oliveira
É uma boa questão e também a coisa mais difícil
a ser elucidada. A gente pode tentar uma solução fácil, dizer
que eles traíram, que foram cooptados pelo grande capital, e tudo isso
também é verdade. Mas a elucidação completa é
muito difícil. Eu desconfio que há o predomínio de uma nova
classe dentro do PT e que isso influiu poderosamente no partido.
JU
E quais seriam as raízes dessa nova classe?
Oliveira
As raízes estão na posição a que certos trabalhadores
foram levados, por exemplo, na administração de fundos de previdência
nas estatais, na administração do Fundo de Amparo ao Trabalhador,
na convivência com organizações do tipo do BNDES (Banco Nacional
de Desenvolvimento Econômico e Social). Isso vai criando uma ideologia comum.
Isso consegue criar um descolamento, porque o trabalhador que exerce a administração
de um fundo fica dividido. E nessa divisão, quem ganha é o lado
administrador de fundos. Isso deveu-se a poderosas modificações
na sociedade brasileira pelo processo de globalização e sobretudo
pelo processo de financeirização da economia. Isso atingiu camadas
de trabalhadores e os transformou em gestores de fundos capitalistas.
JU
Por que essa suposta nova classe interna do PT teria emergido justamente
no momento em que o partido alcança o ponto máximo do poder?
Oliveira
O poder é o momento propício, além do fato de que
você se vê obrigado a administrar uma economia capitalista. O PT é
muito mal preparado teoricamente para administrar uma economia capitalista. O
PT tem especialistas em fundo de previdência e gente que sabe como administrar
isso. Mas quem faz o papel teórico de pensar o estado no PT?
JU
Isso tem a ver com a sua crítica à ausência de intelectuais
no núcleo duro do governo?
Oliveira Isso poderia parecer
um ressentimento por não ter sido convidado a compor o governo. Devo dizer,
de saída, que abomino o poder e não estou fazendo nenhuma bravata.
Quando Luiza Erundina se elegeu prefeita de São Paulo, uma das primeiras
pessoas para quem ela ligou foi para mim, convidando-me para o cargo de secretário
de Planejamento. Minha imediata resposta foi negativa. Não quero nada com
o poder, não me seduz e estou vacinado contra ele. Mas é sintomática
a falta de intelectuais no grupo do governo. Isso mostra a oligarquização
do partido e uma disputa ferrenha pelo monopólio da interpretação
do governo. Porque intelectual sempre perturba, sobretudo com os intelectuais
que o PT tem.
JU No momento em
que um partido de esquerda assume um alinhamento com a direita, sem oposição,
qual seria o futuro da esquerda no Brasil?
Oliveira Diria que é
nebuloso. Não tem futuro previsível porque houve um embaralhamento
grande. O PT foi a formação mais consistente de esquerda que o Brasil
conheceu porque conseguiu fazer confluir vários movimentos que se amalgamaram
no partido. No passado, houve o Partido Comunista que quase chegou a isso porque
tinha massa popular. O partidão chegou a ter 10% dos votos para presidente
em 1945, tinha uma reconhecida influência sobre os sindicatos e tinha a
nata da intelectualidade brasileira. Depois o partidão entrou num processo
de clandestinidade que o levou ao fisiologismo descarado e às alianças
com a direita. O PT repete essa história triste do partidão. O PT
é depositário de uma longa trajetória da esquerda brasileira.
Se ele malbaratar essa herança, o destino da esquerda estará gravemente
comprometido.
JU Ao mesmo tempo
em que o senhor diz que o PT estaria malbaratando sua herança ideológica,
todos sabem que vários grupos dentro do partido estão criticando
essa postura. Em sua opinião, o que pode sobrar do PT?
Oliveira
Sobra enquanto máquina partidária. O PT já é
a máquina partidária mais importante do país e continuará
a ser. Isso tem enorme importância porque essas são as instituições
credenciadas para operar na política. Além disso, o partido tem
ramificações em vários setores da sociedade, ligados a diversos
interesses e, portanto, vai sobrar como partido. Mas como partido transformador
duvido que sobre alguma coisa.
JU
Nesse caso, qual o futuro daqueles que pretendem preservar as raízes históricas
do PT?
Oliveira O futuro mais imediato que os aguarda é
uma expulsão. A direção do partido forçará
as pessoas a tomarem outro caminho. A longo prazo, é imprevisível.
Não se cria um partido novo da noite para o dia nem sem bases sociais.
Além disso, nessa sociedade, é cada vez mais difícil criar
um partido político no estilo clássico. Não adianta ficar
como o PSTU bradando em nome de um proletariado que não adere a ele. Os
partidos políticos que se criam são como máquinas.