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Livro
revela conexões do tráfico sexual
Obra
foi apresentada em seminário que discutiu
os múltiplos aspectos da sexualidade
ANTONIO
ROBERTO FAVA
O Núcleo de Estudos
de Gênero da Unicamp (Pagu) e o Centro Latino-Americano
em Sexualidade e Direitos Humanos/UERJU promoveram,
de 25 a 27 de junho, o seminário Sexualidades
e Saberes: Convenções e Fronteiras,
realizado no Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH). O evento não só traçou
um amplo painel multidisciplinar sobre a sexualidade,
como também serviu de canal para que especialistas
denunciassem as redes comandadas por criminosos que
exploram a prostituição em diferentes
níveis.
A professora Maria de Fátima
Leal, da UnB, por exemplo, proferiu palestra sobre
Tráfico de mulheres, crianças e adolescentes
para fins de exploração sexual comercial
no Brasil, tema do livro do mesmo nome publicado pelo
Centro de Referência, Estudos e Ações
sobre Crianças e Adolescentes (Cecria). Seu
relato revela aspectos dramáticos que envolvem
a exploração sexual de vítimas
de todas as faixas etárias. É o caso,
por exemplo, de Kelly Fernanda Martins.
Casada aos 14 anos, divorciou-se
três anos mais tarde, com duas filhas para criar.
Interrompeu os estudos na 5ª série do
ensino fundamental. Menina pobre, morava com a mãe,
empregada doméstica, enquanto trabalhava ora
como guardadora de carros ora como faxineira, em casas
de família. Um dia, duas amigas tentaram convencê-la
de que deveria mudar de vida. Com a promessa de ganhar
muito dinheiro, sugeriram então que fosse para
Israel, no Oriente Médio. Kelly não
tinha idéia de que estaria entrando num mundo
totalmente novo e perigoso. Dois meses depois de embarcar,
Kelly foi encontrada morta, após um dia em
estado de coma provocado por uma overdose de drogas.
Tinha 26 anos.
A história de Kelly,
envolvida em muitos mistérios, assemelha-se
à de milhares de moças que engrossam
as estatísticas sobre o tráfico de mulheres,
adolescentes e crianças, um negócio
que movimenta bilhões de dólares em
todo o mundo. Administrado por traficantes de armas
e drogas, esse tipo de crime, em constante expansão,
tem-se revelado um delito de poucas conseqüências
penais para os que integram as redes que o praticam.
Estimativas apontam que o número de pessoas
traficadas através de fronteiras internas e
internacionais chegue a quatro milhões por
ano, de acordo com a Organização Internacional
de Migração.
Durante um ano, a professora
Maria de Fátima Leal organizou pesquisas sobre
o assunto em 20 estados brasileiros. Os estudos foram
desenvolvidos pelo Cecria (Centro de Referência,
Estudos e Ações Sobre Crianças
e Adolescentes), para se ter uma idéia
bastante aproximada dessa situação no
país. Trata-se de um trabalho inédito
no Brasil com o objetivo de entender como é
que funcionam as redes e suas principais rotas de
ação dentro e fora do país. Com
isso, esperamos criar mecanismos para poder enfrentar
o problema da exploração sexual e comercial
de mulheres no Brasil, diz.
Mas essa não é
uma questão que possa ser resolvida de um dia
para o outro, com facilidade, mesmo porque essas redes
têm envolvimento de organizações
poderosíssimas como a Yakusa (Japão)
e as máfias russa e chinesa, para ser ter uma
idéia da extensão do problema, revela
a pesquisadora.
As mulheres envolvidas nessas redes de tráfico
por aliciadores têm um perfil peculiar: a maioria
é composta de por afrodescendentes, pertence
a classes populares e possui baixa escolaridade. São
pessoas que vivem nas periferias das cidades, em geral
com alguns familiares um filho ou mãe
, exercem trabalhos subalternos sem qualquer
garantia e que já sofreram algum tipo de violência
social ou sexual. Pode-se verificar que além
da falta de condições financeiras, provocadas
pelas desigualdades sociais freqüentes nessa
classe social, observa-se que essas mulheres vivem
o trauma de um fator preponderante: a violência
doméstica a que essas meninas são submetidas.
Muitas vezes são estupradas, abusadas sexualmente,
negligenciadas e maltratadas física e mentalmente,
conclui Maria de Fátima.
Rota do tráfico
O tráfico de mulheres desenvolve-se
por 241 rotas, domésticas (por 20 estados brasileiros)
e internacionais. Dessas, 131 são baseadas
no Exterior e têm como destino a Espanha, a
Holanda, a Alemanha e países vizinhos da América
do Sul. O tráfico interno, conforme explica
Maria de Fátima, é tão expressivo
quanto o tráfico internacional. O principal
destino é a Espanha onde vamos encontrar
a famosa Conexão Ibérica, formada por
diferentes organizações criminosas,
com destaque para a máfia russa, que movimenta
oito milhões de dólares por ano. No
Brasil, essas rotas se dividem da seguinte maneira:
69 delas se concentram no Nordeste, 76 na região
Norte, 35 no Sudeste, 33 no Centro-Oeste e 28, no
Sul. Além da Espanha, que conta com 32 rotas,
os destinos mais freqüentes são Holanda
e Venezuela, com 11 e 10 rotas, respectivamente. Ocorre
que nem sempre as mulheres acabam ficando no Brasil;
elas geralmente saem do interior do Amazonas e do
Pará, por exemplo, para Roraima, de onde partem
para a Venezuela, Suriname e Guiana. De lá,
rumam para a Espanha, Holanda e Alemanha. No
Brasil, São Paulo e Rio de Janeiro são
as duas principais cidades do país, onde o
tráfico de mulheres é mais intenso.
As mulheres partem dessas cidades quase sempre com
destino à Holanda, à Itália,
Israel, Portugal e Estados Unidos.
As mulheres sempre saem de
cidades pequenas e transferidas para lugares mais
desenvolvidos. Essas rotas geralmente são por
vias terrestres, marítimas ou hidroviárias.
O tráfico interno se caracteriza por haver
mais mulheres adolescentes do que adultas, e a idade
delas varia entre 15 e 24 anos. Para que possam cruzar
de um estado a outro, a própria máfia,
por meio de seus aliciadores, se incumbem de providenciar
documentos falsos, como se as meninas tivessem 18
anos ou mais. Mas esse documento tem ainda uma
outra finalidade: legalizá-las
não só para saírem o estado,
mas especialmente para deixar o país com passaportes
e documentos falsos.
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Transgressão e filosofia na alcova
Há mais de meio século,
seus livros eram vendidos às escondidas,
debaixo do balcão. O livreiro não
ousava expô-los nas vitrines, mas tirava-os
de um lugar reservado quando o freguês
pedia. As bibliotecas públicas guardavam
o volume no que era chamado de inferno
dos livros malditos; os bibliotecários
não o entregavam ao leitor, a não
ser com autorização especial do
diretor do estabelecimento. E as bibliotecárias
ficavam ruborizadas quando se falava no Marquês
de Sade, batizado Donatien-Alfonse-Francis Marquis
de Sade (1740-1814).
Para a professora Eliane Robert Moraes, da PUC
de São Paulo, Sade foi um homem curioso
e polêmico: Autor de textos brilhantes,
com uma boa dose de filosofia, foi também
o maior responsável, no século
18, pelo movimento libertino que imperou na
França, disse a professora, durante
sua conferência no seminário Sexualidades
e Saberes: Convenções e Fronteiras.
Em 1772, o comportamento e
as atitudes do Marquês de Sade ultrapassavam
os limites de suas costumeiras diversões:
numa noite de amor, por exemplo, com uma certa
Rosa Keller, torturou-a e feriu-a de tal modo
que o tribunal de justiça o condenou
à morte. Como era marquês, acabou
sendo indultado. No entanto, os delitos sexuais
do nobre pervertido repetiram-se.
Segundo Eliane, Sade acabou
preso, passando nada menos que 39 anos, com
algumas interrupções, nos presídios
e manicômios judiciais. Sade foi
um homem que não acreditava em Deus.
Para ele, só existia o corpo, as sensações
do corpo e tudo aquilo que o corpo do libertino
pode proporcionar em termos de prazer, sem a
preocupação de causar ou não
algum mal ao outro. Daí que a filosofia
de vida do Marquês de Sade vai pregar
a violência sexual, a dor no corpo do
parceiro. O primeiro livro de Sade, Os
120 dias de Sodoma, ainda sem tradução
no Brasil, conta a história dos quatro
maiores libertinos da França, que se
encontram num castelo, no alto de uma montanha.
Levam para lá 50 súditos, desde
lindas ninfetas até homens e mulheres
velhos, caquéticos, com os corpos deformados,
que vão fazer uma série de experiências
sexuais durante 120 dias. Com essa obra, Sade
se propôs a apresentar o que denominou
de as 600 paixões sexuais que existem
no mundo, divididas em quatro partes:
as simples, as complexas, as criminosas e as
assassinas.
Devo-lhe adiantar que
as simples não são nada simples.
São paixões que não têm
nada a ver com aquilo que chamamos de sexualidade
normal. Mexem com excrementos, com a urina e
com todo tipo de matéria que o corpo
produz. Com isso, pode-se imaginar como são
as classes criminosas e assassinas, explica
Eliane. Tudo é válido no universo
de Sade, contanto que dê prazer ao personagem,
que se entrega às mais diversas práticas
sexuais, desde a zoofilia até a homossexualidade
e ao incesto.
No entanto, ela acentua que
a literatura de Sade, apesar de toda a crueldade
e violência sexual, está longe
de ser pornográfica. Todo autor
que desvenda algum elemento que faz parte de
nossa humanidade está falando alguma
coisa importante. É claro que seria formidável
se todos eles só falassem sobre o lado
bom do homem, opina a professora. Sade
talvez foi o escritor que tenha mais falado
de crueldade e violência em seus textos.
Mas com certeza não foi ele quem as inventou.
A crueldade está desde sempre na cena
real e história da humanidade.
É claro que não
se pode condenar, nem edulcorar livros como
os de Sade, mas afirmar seu valor transgressivo
como forma de conhecimento, prega a professora
Eliane. .
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