Quando as disciplinas de humanas
passaram a ser substituídas por disciplinas
técnicas edição, fotografia,
tv, rádio , ela quase abandonou o curso
de jornalismo da Unesp. Mas deu-se conta de que a
formação como jornalista possibilitaria
a pós-graduação em história
na Unicamp, desenvolvida junto à linha de pesquisa
Jogos do Político. Agora, Flávia Millena
Biroli Tokarski retribui com uma pesquisa sobre o
jornalismo dos anos 1950, trazendo uma abordagem diferenciada
da prática da profissão, ou de como
as redações do tilintar das Remington
chegaram ao silêncio dos laptops.
Com a corrente: modernidade,
democracia e seus sentidos no jornalismo brasileiro
nos anos 1950 é o título da tese
de doutorado defendida no Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas (IFCH), em 26 de junho, orientada
pelo professor Ítalo Arnaldo Tronca. A jornalista
pretendia manter a linha de seu mestrado, avaliando
como a grande imprensa cobriu o suicídio de
Getúlio Vargas em 1954. Enquanto recolhia o
material de época, decidiu mudar o foco ao
perceber que, naqueles anos tidos como dourados mas
conturbados politicamente, ocorria forte discussão
sobre o velho e o novo jornalismo.
Um processo de transformação
estava em curso. Veículos como o Jornal do
Brasil, Diário Carioca e o recém-criado
Última Hora procuravam introduzir mudanças
tanto nos padrões gráficos como de textos,
enquanto os profissionais discutiam o que significavam
aquelas mudanças e de que tipo de jornalista
a nova imprensa precisava, explica Flávia
Biroli. Paralelamente havia a percepção
de que a própria sociedade rompia com antigos
padrões de cultura, política e comportamento,
em meio ao discurso desenvolvimentista que levaria
Juscelino Kubitschek a se eleger presidente com sua
promessa de 50 anos em cinco.
A tendência pela valorização
do progresso e da técnica justifica a importância
atribuída pela autora aos textos de jornalistas
do período que compõem a maioria
das fontes consultadas abordando aquele momento.
Os textos (reproduzimos trechos nesta página)
estabelecem distinções entre velhos
e novos jornalistas, entre o antigo e o moderno. A
improvisação e a escrita tida como literária
e pouco regrada eram atribuídas ao passado
do jornalismo, enquanto o jornalismo visto como novo
procurava se apresentar como mais técnico,
isento e regrado. O partidarismo e a boemia teriam
sido deixados igualmente para trás.
Dentro desse imaginário
que se firmava, fortalecia-se a pretensão de
garantir a distinção entre informação
e opinião. A questão da objetividade
ganhava importância, com a ordem de enxugar
o texto como medida de isenção, deixando
o espaço para a reprodução fiel
dos fatos em vez de comentários e discussões.
É uma idéia falaciosa, originária
do liberalismo dos séculos 18 e 19, de que
apresentando o cotidiano de maneira isenta chega-se
a uma verdade que represente a totalidade dos interesses
da sociedade. Este viés prevalece no jornalismo
contemporâneo, observa Flávia Biroli.
Nas empresas de comunicação
que se agigantavam, as redações apresentavam
uma divisão cada vez maior do trabalho, intensificando
o processo de produção. Apesar de certa
resistência dos veteranos, isso foi, em geral,
lido positivamente pelos jornalistas mais jovens,
que acreditavam contar com um espaço garantido
nessa sociedade que se modernizava, nesse jornalismo
baseado nos padrões norte-americanos. Já
no início dos anos 1940, a historiadora encontrou
a primeira referência ao termo lead, em norma
da Meridional, agência noticiosa montada por
Assis Chateaubriand. O lead segue o conceito da pirâmide
invertida, em que as informações fundamentais
(quem, quando, como, onde e porque) são sintetizadas
no parágrafo inicial, diluindo-se as informações
secundárias no corpo do texto.
24 horas Depois do
curso de jornalismo pioneiro criado pela Fundação
Casper Líbero em 1947, surgiu outra dezena
deles nos anos 50, juntamente com os primeiros manuais
de redação. Além da padronização
dos textos, os guias mantinham a visão tradicional
do jornalismo como missão e ensinavam
que o novo jornalista precisa ter ritmo.
Aparece muito a figura do jornalista 24
horas, disposto a correr atrás da notícia
a qualquer momento, o que era extremamente nocivo
porque implicava explorá-lo durante todo o
dia, critica a pesquisadora. O primeiro conjunto
de normas da Tribuna de Imprensa, de Carlos Lacerda,
aconselhava quem pretendia trabalhar por cinco horas
(carga horária legal) a procurar emprego
na prefeitura.
Apesar do debate intenso,
as mudanças ocorreram muito lentamente, notando-se
no máximo uma mistura de padrões nos
anos 50. Eles falavam muito sobre desenvolvimento
técnico, mas continuavam praticando o jornalismo
que transcrevia literalmente os debates da Câmara
e do Senado, ironiza a jornalista. Via-se a
mesma postura em fichas para contratação
de jornalistas, com perguntas sem qualquer referência
à profissionalização: A
resposta de um candidato de 17 anos foi que tentava
o emprego porque precisava de um bico.
Contratado por baixo salário, sua ficha trazia
uma recomendação de próprio punho
de Carlos Lacerda: que lesse Eça de Queiroz
para aprimorar o estilo.
Na ditadura
Na prática, as mudanças aconteceriam
só e justamente num período de exceção,
quando a censura imposta pela ditadura militar obrigou
a novas estratégias de cobertura política.
A partir daí o estilo mudou muito. O
ideal normativo dos anos 50 realmente ganhou forma
com a padronização do texto, o silêncio
e recuo no tom do noticiário político.
Este modelo viria a se tornar vencedor nos anos 80,
com a predominância do chamado padrão
Folha, adotado por quase todos os grandes jornais,
afirma a pesquisadora.
De acordo com Flávia
Biroli, tanta ordenação significou restrição
ao jornalista como autor e uma diminuição
muito grande em sua autonomia, mesmo que esta tenha
sido sempre relativa. A homogeneização,
a planificação, o esvaziamento maior
da perspectiva autoral, com a valorização
da técnica baseada nos ideais de isenção,
formam o modelo que predominou, o que nos leva a essa
sensação atual de que todos os textos
são iguais, de que todos os jornais são
iguais.
Era uma vez
A redação
estava cheia, jovens que ele não conhecia,
muitas moças, moças demais aos
telefones, nas máquinas de escrever.
Os móveis tinham mudado de lugar, só
havia mesas simples, pequeninas, pessoais. Não
fazia muito, aquela era uma redação
solene. Os redatores tinham mesas enormes, em
estilo colonial, escuras, cada uma ficava em
cima de um tapete que dava ao redator a aparência
de uma autoridade. Tudo aquilo, solenidade,
mesas coloniais e tapetes, tinha desaparecido.
(Carlos Heitor Cony, em Quase Memória,
sobre o dia em que
Mário Flores voltou de três meses
de licença médica e soube que
não mais assinaria a crítica de
teatro, morrendo de infarto ao chamar o elevador
para ir embora do prédio do Jornal do
Brasil)
A comunicação
foi breve. Não sabendo escrever à
máquina, com a portaria do Ministério
do Trabalho que dispensava os gráficos
de receberem originais manuscritos, ele teria
de pedir aposentadoria. Como havia, na época,
a lei de estabilidade, ele receberia uma indenização
proporcional a seu tempo de serviço,
que era mais de trinta anos.
(Idem, sobre a saída
de seu pai Ernesto Cony do JB,
em fins dos anos 50)
Chame de mulher
do sr. Fulano a mulher do sr. Fulano, e não
a esposa. A mãe é mãe e
não genitora. Quem volta não regressa.
Doença não é enfermidade.
Abraço não é amplexo. Deitado
de costas não é decúbito
dorsal. Não castigue o estilo. Escreva
enxuto como Graciliano e ameno como Eça.
Leia os bons autores: mas não os imite
ao escrever uma notícia.
(Do guia de redação da
Tribuna de Imprensa)
Tudo deriva daí:
a informação do fato; a formação
pelo fato; a atualidade do fato; o estilo determinado
pelo fato. O fato, o acontecimento, é
a medida do jornalista... A veracidade, o realismo,
é a sua grande força. O mau jornalista
é o sofisticado ou o fanático,
ou o mal informado, ou o divagante ou o vernaculista.
Todos eles perdem de vista o objetivo, o fato,
a realidade para se prenderem apenas no modo
de o retratarem ou nas suas segundas intenções
mais ou menos ocultas.
(Tristão de Ataíde,
Diário de Notícias, 1957)
Outro dia, um
jornalista, ao me entrevistar para uma revista,
arregalou os olhos e disse: Quer dizer
que vocês consultavam o Aurélio
vivo, ele próprio? É claro,
e o Correio da Manhã era um jornal muito
bem escrito. Não vejo ninguém
hoje em dia, em nenhum jornal, com o cuidado
de recrutar cobras como Graciliano
Ramos ou Aurélio Buarque de Holanda,
para retocarem a prosa editorial de seu jornal.
(Antonio Callado, chefe de
redação do CM entre 1954 e 1959)
|
Topo