Heróis
da floresta?
Há controvérsias quanto ao
papel dos povos tradicionais
da Amazônia para o desenvolvimento sustentável
da região
JOÃO
MAURÍCIO DA ROSA
té
onde pode ir a eficiência competitiva dos povos
tradicionais da Amazônia? Será que, num futuro
próximo, eles terão que optar entre melhorar
sua qualidade de vida ou conservar as florestas? Este
paradigma em torno do desenvolvimento sustentável
da maior floresta tropical do mundo ficou sem resposta
na IV Jornada Científica da AUGM (Associação
das Universidades do Grupo de Montevidéu) sobre
Meio Ambiente. O evento, realizado entre 28 e 31 de outubro
na Unicamp, reuniu cerca de 160 painéis divididos
em onze temas. Os trabalhos foram desenvolvidos por 400
pesquisadores de 100 instituições de ensino
e pesquisa de países latino-americanos, em nível
de graduação e pós-graduação.
O professor Mauro Willian Almeida, do Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, primeiro expositor
do evento, lembrou que não há unanimidade
de pensamentos sobre a conservação da Amazônia,
durante a palestra Uso sustentável dos recursos
naturais por comunidades tradicionais. Há
críticos, segundo Almeida, para os quais grupos
humanos do período neolítico foram responsáveis
por grandes extinções da fauna. Há
quem diga, também, que hoje é melhor criar
um parque nacional ao lado de um campo de golfe ou de
uma moderna fazenda de pecuária, do que junto a
populações pobres. A justificativa é
que golfistas e fazendeiros respeitam os limites das propriedades,
sendo possível conviver com eles, enquanto os pobres,
índios ou caboclos nem sempre mostram esse respeito
e avançam sobre as fronteiras.
O
professor do IFCH estuda e trabalha com os povos tradicionais
da Amazônia há 20 anos e também presta
assessoria para a implementação de projetos
de desenvolvimento econômico e de conservação
na região. As pessoas que se definem como povos
tradicionais, explica Almeida, participam das agendas
ambientais porque estão envolvidos na disputa pelos
recursos naturais com outros atores, como governos e empresas.
Este
quadro, de acordo com o pesquisador, foi gerado na estratégia
de desenvolvimento da Amazônia nos anos 70, traçada
pelo regime militar. A estratégia era baseada
na abertura de estradas para acessar os recursos naturais:
um programa de colonização dirigido às
enormes massas de pessoas pobres, que ocupariam os espaços
considerados vazios; à atração
do capital de grandes empresas; a políticas de
geração de energia elétrica; e, de
modo geral, a um processo de militarização
da fronteira.
Resumindo,
Mauro Almeida afirma que a idéia era ocupar economicamente
uma região rica em recursos naturais, atraindo
gente e capital. Pretendia-se eliminar uma síndrome
de pobreza por meio da mudança rápida do
processo de produção, diz. Ele enfatiza
que, no caso da Amazônia, o diagnóstico era
de uma população local atrasada e estagnada
no tempo, e que precisava ser transformada não
só culturalmente incutindo nela novos desejos
de consumo como tecnicamente substituindo
seus processos de uso da terra.
Apesar
desta política de ocupação considerada
agressiva até os dias atuais, o professor lembra
que, paralelamente, o governo militar foi criando uma
importante rede de unidades de conservação,
em forma de parques nacionais e estações
ecológicas. Uma combinação
paradoxal, entre políticas destrutivas do meio
ambiente e unidades conservacionistas, executadas em um
mesmo governo.
Genocídios
As conseqüências são por demais
conhecidas. Enquanto grande parte do país gozava
os efeitos do milagre econômico dos
anos 70, a abertura de estradas, construção
de barragens, instalação de fazendas e a
descoberta de áreas de garimpo obrigavam o deslocamento
de povos indígenas, seringueiros e promoviam verdadeiros
genocídios.
Outros grupos humanos foram atingidos, embora de
maneira menos visível pelo público. Como
os caboclos descendentes de antigas nações
indígenas, que haviam se misturado ao longo do
tempo e viviam dispersos como coletores, seringueiros,
pescadores. Esses povos, normalmente ignorados pelas políticas
públicas, que não mereciam estudos por antropólogos
e que sequer tinham uma identidade reconhecida, eram vítimas
de violência, lembra o pesquisador.
Tais
povos, insiste Mauro Almeida, eram vistos como obstáculos
ao progresso dos anos 70, mas não apenas isso:
também levavam a culpa por queimadas e caçadas,
a pecha de vilões ambientais. A solução
diante desta população eram o controle de
natalidade e a modernização, a introdução
de tecnologias, o incentivo às obras. Enfim, a
saída era a transformação da natureza
e, ao mesmo tempo, a transformação daquelas
pessoas, analisa o professor.
O
revés Nos anos 80, veio o revés.
Os moradores tradicionais da região passaram de
culpados a heróis ambientais. Houve até
exagero, talvez, nos anos marcados por Chico Mendes e
outros militantes de um movimento que ocorreu também
na Ásia, particularmente na Indonésia, países
dotados de bosques tropicais com populações
pobres e que começaram a se apresentar não
como problemas, mas como solução.
Em
contrapartida, assim que Chico Mendes começou a
denunciar a devastação provocada pela pavimentação
da BR-364, entre Porto Velho (RO) e Rio Branco (AC), ele
acabou acusado de ser agente dos países ricos,
que teriam interesse em estagnar o processo de desenvolvimento
regional para se apropriar de seus recursos naturais.
O
fato é que a ciência ainda se divide sobre
quem deva ser o herói da preservação
das florestas. Eu, com todo o respeito, defendo
a necessidade de haver uma sinergia entre os modelos propostos,
ou seja, uma integração de povos tradicionais
com áreas de completo isolamento. Deve haver
acordos institucionais, leis e regras a serem cumpridas
com contrapartidas econômicas e sociais.
-----------------------------------
A
Universidade Virtual
A
Associação das Universidades do Grupo Montevidéu
(AUGM) é uma universidade virtual, composta por
15 universidades públicas do Cone Sul. Elas
disponibilizam, umas às outras, seus recursos materiais,
laboratórios, equipamentos, bibliotecas e pessoal
acadêmico, derrubando barreiras existentes e multiplicando
as possibilidades de desenvolvimento para os povos do
Mercosul, explica o professor Mohamed Habib (na
foto, ouvindo o discurso do reitor Hermano Tavares). Participam
da AUGM instituições da Argentina, Chile,
Uruguai e Brasil.
|