Por
que eles querem se matar?
Pesquisa inédita sobre o suicídio
reitera importância de
aprimorar programas de prevenção
CARLOS
LEMES PEREIRA
convulsão
bélica na qual o mundo mergulha neste momento cabe
na medida para uma retomada das reflexões sobre
as clássicas pulsões de vida e morte que
ainda fundamentam boa parte das ciências da mente.
E quando se tem à mão a possibilidade de
uma abordagem ao arrepio da complexidade do
viver humano, o resultado pode ser muito instigante. É
o que oferece a tese de doutorado Proposta psicológica
de uma entrevista semi-estruturada para autópsia
em casos de suicídio (ESAP), defendida na Unicamp
pela psicóloga clínica Blanca Susana Guevara
Werlang, do Programa de Pós-Graduação
em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul.
Mesmo
se não acabasse por se encaixar no atroz pano de
fundo dos atentados terroristas que estão prestes
a desembocar na primeira guerra mundial do século
21, o estudo de Blanca, já por si, encontraria
ressonância junto às mais intensas inquietações
da modernidade. Afinal, décadas atrás, o
escritor argelino Albert Camus pontuou: O suicídio
é a grande questão filosófica de
nosso tempo.
De
fato. A realidade que embasou a pesquisadora não
foi o fanatismo político-religioso que impulsionou
aviões seqüestrados contra as torres gêmeas
do World Trade Center e o Pentágono. Até
porque os acontecimentos de 11 de setembro precederam
sua pesquisa. Mas, principalmente, porque seu foco é
o chamado homem comum. Que, longe de vislumbrar
qualquer glória no ato de se matar, muitas vezes
termina por fazê-lo, numa freqüência
que situa o suicídio entre as dez principais causas
de morte no mundo para indivíduos de todas as idades.
E, agravando, entre a segunda ou terceira para a faixa
etária de 15 a 35 anos. Portanto, estamos
nos referindo a um grave problema de saúde pública,
frisa Blanca, que acredita no potencial da pesquisa como
base instrumental para o desenvolvimento de programas
de prevenção.
Principalmente
no Brasil, ressalta: Entre nós, o suicídio
ainda é uma questão pouco abordada e refletida.
Isso, não obstante serem bem evidentes o que ela
classifica de coeficientes, que, na sua avaliação,
demonstram que a situação é
crítica, pelo menos em certas localidades, e que
o comportamento suicida é um episódio sério,
que exige não só atenção especial,
mas também uma metodologia de investigação
mais efetiva. Se ainda é embrionária
no Brasil e dependente de pioneirismos acadêmicos
como o de Blanca , nos EUA, por exemplo, a autópsia
psicológica é uma técnica que começou
a ser desenvolvida já na década de 1950.
Além
do clichê Não que, a par disso,
um número significativo de estratégias não
tenha sido aperfeiçoado para abordar o problema.
Mas continuamos com dificuldades de compreender
as características pessoais dos sujeitos que realmente
cometem suicídio, por não serem passíveis
nem de avaliação direta, nem de tratamento
de qualquer espécie, observa a psicóloga.
Assim, é difícil predizer quais deles,
potencialmente suicidas, vão transformar suas fantasias
e/ou ideações em atos concretos. Ela
acrescenta barreiras de ordem metodológicas para
a determinação do modo de morte,
de forma a diferenciar, com segurança, as que realmente
advêm de suicídio das que têm outra
origem.
Afinal,
ao contrário do que mitifica uma certa classe popularesca
de romance, cinema e novelas de TV, não é
sempre que o investigador psicológico
vai encontrar, providencialmente, na cena de um suicídio,
o manjado bilhete iniciado pelo clichê A quem
interessar possa.... Por isso, antes de começar
a trilhar sua pesquisa, Blanca se debruçou na literatura
médica internacional e se convenceu: São
efetivas as chances de se chegar à constatação
do suicídio mediante exames retrospectivos. Trata-se
de uma avaliação capaz de sinalizar pistas
diretas ou indiretas acerca de um determinado comportamento
letal que estava por atingir o seu ápice.
Em resumo: compreende-se, com razoável grau de
certeza, o que ela chama de aspectos psicológicos
de uma morte específica.
E
como mapear com segurança tais pistas, se o investigado
em si já está morto? Recolhe-se, via
entrevistas, informações de diferentes pessoas
que conheciam a vítima a começar
pelo cônjuge, depois parentes, recorrendo também
a amigos, colegas de trabalho ou de estudo e até
a simples conhecidos. Reconstitui-se o estilo de vida
do falecido, elaborando-se, assim, uma história
clínica a mais completa possível,
responde a psicóloga.
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Como
foi feito o estudo
Para
sua tese, Blanca selecionou 21 casos de morte notificados
como suicídio em organismos policiais e de medicina
legal da Região Metropolitana de Porto Alegre.
Uma empreitada que exigiu fôlego para ser deslanchada,
lembra a pesquisadora: A partir dos registros de
morte por suicídio de 399 casos na Grande Porto
Alegre, foi possível examinar e registrar dados
de mais de uma centena de inquéritos, entre agosto
de 1998 a janeiro do ano passado.
No
transcorrer, houve o afunilamento. Para avaliar
a aplicabilidade do instrumento, fechamos uma amostra
de 42 sujeitos, que, de alguma forma, se associavam com
os 21 casos. Esse contingente tecnicamente
denominado de informante possibilitou
25 entrevistas, que foram gravadas em áudio e posteriormente
transcritas. A seleção atendeu a critérios
tanto de inclusão quanto de exclusão,
explica a psicóloga.
No
primeiro caso, valorizou-se o próprio registro
da morte como suicídio; a existência de dados
de identificação (incluindo certificação
do último endereço de parentes, amigos,
conhecidos etc.); a possibilidade de acesso a dois informantes
sobre cada caso ou até apenas um, quando
era o único possível, desde que não
apresentasse contradições com os dados periciais;
e o consentimento formal em participar do levantamento.
Os critérios de exclusão foram: último
endereço dos informantes estar fora da área
urbana da Grande Porto Alegre; o fato de a língua
falada não ser o português, ou qualquer impedimento
de comunicação adequada; a não localização
do informante até 30 semanas após a morte
da vítima, e a impossibilidade de ser entrevistado
até 32 semanas depois do episódio.
Pontos
chaves Por mais que a literatura consultada
por Blanca salientasse a importância clínica
para a autópsia psicológica, ela constatou
que os autores não conseguiam indicar estratégias
definidas. Há disponibilidade tão
somente de sugestões de áreas ou tópicos
de investigação, afirma. Daí,
a necessidade do estabelecimento de quatro pontos
chaves, como ela nomeou: precipitadores e/ou estressores,
motivação, letalidade e intencionalidade.
São
o que cientificamente se define como constructos, ou seja,
os pilares teóricos subjacentes à estratégia
de autópsia psicológica, explica a
pesquisadora. A exploração de todos
eles é fundamental. Mas, sem dúvida, a ESAP
está baseada ou enfocada no elemento
que falta: a intenção da vítima em
relação à sua própria morte.
Portanto, entendendo o suicídio como um ato de
se matar intencionalmente, e a ESAP como uma forma de
avaliar, após a morte, o que estava, antes dela,
na mente da pessoa, se torna imperioso identificar como
o sujeito planejou, preparou e objetivou sua própria
morte.
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