Edição nº 590

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 14 de março de 2014 a 24 de março de 2014 – ANO 2014 – Nº 590

Alvos preferenciais

Pesquisa demonstra que pessoas de baixa renda ficam mais expostas ao mosquito da dengue

A dengue, que assola principalmente os países tropicais, não é uma doença “democrática” que atinge igualmente a todos os grupos sociais, como prega o senso comum. Pesquisa de mestrado em demografia desenvolvida pelo cientista social Igor Cavallini Johansen, orientada pelo professor Roberto Luiz do Carmo e apresentada no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), mostra que a dengue está mais associada aos grupos de estratos socioeconômicos menos favorecidos, especialmente os de baixa renda e de negros. Também estão mais suscetíveis aqueles que vivem perto dos chamados “pontos estratégicos”, como borracharias, ferros-velhos e depósitos de materiais recicláveis.

Tendo como cenário o município de Caraguatatuba, no litoral norte paulista, Igor Johansen estudou, por um lado, as possíveis inter-relações da distribuição dos serviços de saneamento (água, esgoto e coleta de lixo) com as características sociodemográficas da população residente; e, por outro lado, a dispersão espacial da dengue no nível intramunicipal. “A dengue possui um conjunto múltiplo de fatores relacionados ao espalhamento e intensidade da doença no território, tendo maior chance de atingir os grupos populacionais mais pobres”, reitera o autor da dissertação.

Johansen utilizou ferramentas de geoprocessamento e estatística espacial na expectativa de comprovar a relação entre baixa cobertura de saneamento básico e alta taxa de incidência de dengue. “A população sem acesso a abastecimento de água tende a estocá-la em baldes e tonéis nem sempre tampados devidamente, criando o ambiente ideal para o Aedes aegypti. Na falta de água limpa, o esgoto também pode servir para a oviposição. E, no caso de lixo e entulho acumulados nas residências ou calçadas, sete dias bastam para que o mosquito chegue à fase adulta.”

Entretanto, esta hipótese da pesquisa foi de certo modo refutada pelos primeiros resultados, como admite o próprio pesquisador. “A questão é que encontrei a relação entre baixa cobertura de saneamento e alta incidência de dengue em apenas 10% das subáreas analisadas; para a grande maioria das subáreas (90%), essa relação não se confirmou. Esse resultado pode ser interessante por mostrar que a relação realmente existe, ainda que não seja o principal problema de Caraguatatuba, mas a hipótese da pesquisa ficou comprometida.”

A explicação para que sua hipótese não tenha se sustentado, afirma Igor Johansen, está na alta cobertura de serviços de saneamento de Caraguatatuba – ele acredita que os resultados muito provavelmente seriam os mesmos em outros municípios do Sul e Sudeste do país, regiões privilegiadas em termos de serviços básicos. “Analisando a cobertura de saneamento em Caraguatatuba, descobri que quase 100% da população tem acesso ao abastecimento de água e também à coleta de lixo; apenas o índice de coleta de esgoto era menor, 58%, um problema comum das cidades litorâneas, que acabam jogando os dejetos ao mar.”

Buscando outros fatores, para além do saneamento ambiental, que explicassem o fenômeno, o autor do estudo adicionou novas variáveis aos dados do Censo do IBGE (2010) e às informações para controle da dengue mapeadas pela Secretaria de Saúde de Caraguatatuba, que lhe serviram inicialmente de base. “Decidi investigar também as características sociodemográficas da população residente e a proximidade de pontos estratégicos – nomenclatura utilizada pelo Ministério da Saúde no mapeamento de potenciais criadouros do mosquito transmissor.”

O modelo desenvolvido no decorrer da pesquisa permitiu a Johansen verificar que os casos de dengue não se espalham da mesma forma por todo o município, havendo áreas de maior concentração. “Uma demonstração de que a doença não é democrática está na proximidade entre os grupos populacionais mais atingidos e os pontos estratégicos. Como a Prefeitura já tinha esses pontos mapeados, eu pude verificar que morar em um raio de 300 metros desses locais aumenta em 67% a taxa de incidência de dengue. E não é em bairros nobres ou condomínios que encontramos borracharias e depósitos de materiais recicláveis; é na periferia, onde está a população carente.”

Ao associar os casos da doença com o nível de renda dos moradores, o pesquisador chegou a outra constatação importante: que o aumento de apenas 1% na proporção de domicílios com renda per capita até três salários mínimos faz aumentar em 71 vezes a taxa de incidência de dengue. “Nas cidades litorâneas, os pobres vão se instalar subindo a encosta e os mais ricos em prédios de bairros urbanizados, de preferência nos andares mais altos (o voo do mosquito alcança somente um metro de altura). Aqueles de maior poder aquisitivo, portanto, estão mais protegidos”.

Segundo o cientista social, mais uma variável estatisticamente significativa obtida como seu modelo diz respeito à proporção de pessoas não brancas: o acréscimo de 1% nesta população conflui para a elevação da taxa de dengue em mais de quatro vezes. “No Brasil, a cor da pele, a situação socioeconômica e o perfil epidemiológico estão intimamente associados. No caso de Caraguatatuba para o ano de 2013, quanto mais pessoas negras e pardas, maior a taxa de incidência de dengue.”

Johansen acrescenta que no sentido inverso, como fator de proteção da população, há o indicativo de que o aumento de 1% na proporção de domicílios não próprios, com destaque para os alugados, reduz em 92% a taxa de incidência na área de estudo. “Uma hipótese ainda a ser testada é de que a cidade serve como segunda residência para proprietários que descem a serra apenas em feriados e temporadas. O imóvel fica fechado praticamente o ano inteiro, sem que a vigilância tenha acesso a eventuais criadouros. Já no imóvel alugado, o inquilino está presente e tem um cuidado maior em relação a recipientes que podem acumular água.”

 

O cenário

Igor Johansen escolheu o município de Caraguatatuba para seu estudo tendo em vista a intensificação da mobilidade populacional depois da descoberta do pré-sal, com atração  de grandes projetos de infraestrutura e de mão-de-obra a partir da primeira década do século 21. “A dengue é uma doença tipicamente urbana e no litoral de São Paulo, como um todo, quase 100% dos habitantes vivem em cidades – inclusive pelas características geográficas, que não reservam espaço para sítios ou fazendas. A vinda de tantas pessoas exerce pressão sobre a estrutura de saneamento ambiental, quando minha ideia foi justamente relacionar a dengue com a falta de serviços básicos.”

O pesquisador salienta que o Aedes aegypti encontra na região condições favoráveis para o seu desenvolvimento, entre as quais a urbanização acelerada; clima quente e úmido; turismo proporcionado pelas belezas naturais, gerador de grande circulação de pessoas de São Paulo e de outras partes do país; o fato de se localizar no corredor de passagem para o porto de São Sebastião; e de ser cortada pela rodovia Rio-Santos, cidades que sabidamente representam dois polos onde a dengue é considerada endêmica.

De acordo com os dados da Secretaria de Saúde do município, o histórico da dengue em Caraguatatuba tem início em 2002, quando ocorreram as notificações dos primeiros casos autóctones – cuja transmissão se dá dentro da cidade e cujo contaminado é um residente. Se naquele começo foram 333 casos, a maior epidemia veio em 2010, com 3.698 ocorrências confirmadas e praticamente todas (3.672) autóctones; em 2013 houve o segundo maior pico, com 1.679 registros autóctones até o mês de novembro. Quanto a óbitos, foram dois em 2010 e um em cada ano subsequente (2011, 2012 e 2013).

O autor recorda que o pano de fundo para sua dissertação foi a participação em um projeto do Nepo (Núcleo de Estudos de População) da Unicamp, realizando entrevistas com moradores do município de Altamira, no Pará, onde a relação entre dengue e saneamento é uma questão relevante. “Na volta, conversando sobre o projeto de pesquisa com meu orientador, essa doença surgiu como uma síntese para mostrar a relação entre a população e o meio ambiente. As pessoas pensam, por exemplo, que a dengue não seleciona sua vítima, quando não é bem assim, existem grupos mais expostos.”

 

Metodologias

Distribuição das informações do Censo 2010 em uma grade regular, análise de cluster, aplicação do Índice Local de Moran e realização de uma Regressão Binomial Negativa Inflacionada de Zeros (ZINB). Essas metodologias aplicadas por Igor Johansen serviram para dividir a área urbana de Caraguatatuba em células de mesmo tamanho; diferenciar agrupamentos de áreas com piores e melhores condições de saneamento, comparando com a taxa de incidência de dengue; localizar as áreas de autocorrelação espacial de baixa cobertura de serviços de saneamento; e, por fim, estimar a associação entre as variáveis ambientais e sociodemográficas em relação à incidência da doença.

“Logo no início da pesquisa, tive a sorte de contar com uma nova forma de disponibilizar os dados do Censo do IBGE desenvolvida por uma colega do Nepo, Maria do Carmo [Dias Bueno], que dividiu o município em células exatamente do mesmo tamanho”, recorda Johansen. “A unidade mínima do IBGE é o setor censitário, que é irregular em tamanho e pode abranger áreas bastante distintas em termos de composição da população. Como as células são muito menores e regulares, aumentam a acurácia dos dados, permitindo trabalhar com uma escala bem pequena, de 250 por 250 metros.”

Outra grata surpresa para o pesquisador foi encontrar um banco de dados perfeitamente organizado pela Secretaria de Saúde de Caraguatatuba, com o georreferenciamento de cada um dos pontos de dengue. “Se uma pessoa contrai dengue, o ponto vai ser a sua residência. É analisando onde estão os pontinhos no mapa que a vigilância epidemiológica planeja suas ações. Sobrepondo esse mapa à malha cartográfica do IBGE com os dados do censo, verifiquei em cada célula o número de habitantes e domicílios com acesso a água, esgoto e coleta de lixo, e adicionei nessa matriz uma coluna a mais, com a soma de casos de dengue. Tendo tudo no mesmo banco de dados, pude correlacionar o número de casos da doença com as informações da população. Este foi o pulo do gato, que consegui dar a partir de duas fontes bastante diferenciadas.”

 

 

Publicação

Dissertação: “Urbanização e saúde da população: o caso da dengue em Caraguatatuba (SP)”
Autor: Igor Cavallini Johansen
Orientador: Roberto Luiz do Carmo
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)

Comentários

Comentário: 

Parabéns Igor, e seu orientador Roberto Luiz do Carmo, pela Dissertação sobre Urbanização e a dengue em Caraguatatuba.
Comento: Igor também pesquisou a ocorrência e o controle dos mosquitos Culex na minha disciplina (EDUCAÇÃO AMBIENTAL E MOBILIZAÇÃO SOCIAL PARA O CONTROLE DO MOSQUITO Culex quinquefasciatus EM UM NÚCLEO URBANO ISOLADO EM PARATY – RJ - Trabalho da disciplina BE-597 Educação Ambiental / 2011, disponível em: REVISTAS, https://www.ib.unicamp.br/profs/eco_aplicada/). Nesse caso, sim. Baixa renda, falta de uma rede de esgoto, e fossas sépticas abertas (coisa de bairro pobre), resultam em muito mosquito Culex, o pernilongo noturno.
Chamo a atenção: Sempre usei em minhas palestras, estrategicamente como forma de sensibilização, que >> SIM A DENGUE É DEMOCRÁTICA!! Atinge até a realeza! Colecionei noticias de ricos e famosos que contraíram dengue (Lady Di, governadores, como Ciro Gomes, senadores, artistas, Ronaldo “Fenômeno”, etc...) >> CONFIRA “Famosos também são vítimas da dengue; confira lista de artistas que já sofreram com a doença” (Disponível em: https://extra.globo.com/noticias/saude-e-ciencia/dengue/famosos-tambem-sa...).
Do ponto de vista da Educação Ambiental e educação para a dengue, é mais estratégico assumir que ricos e pobres são igualmente vítimas. Indicar que a dengue atinge da mesma forma moradores pobres de uma favela em Salvador e os ricos da Barra da Tijuca no Rio de Janeiro! Pode ser má ciência, mas deve gerar políticas públicas melhores.
C.F.S.A.

cfeandra@unicamp.br