Edição nº 590

Nesta Edição

1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
12

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 14 de março de 2014 a 24 de março de 2014 – ANO 2014 – Nº 590

A capoeira que se aprende na escola

Jogo integra projeto pedagógico que envolve grupo de 56 crianças

O gestual chama muito a atenção quando o assunto é a capoeira – uma manifestação cultural herdada dos escravos africanos. Realmente é um verdadeiro espetáculo para quem assiste. São golpes precisos que têm como princípio o próprio corpo e o do outro, lembrando uma situação de luta em dois sentidos: o jogo pelo prazer e o jogo pela libertação. Conceitualmente, a capoeira já permeia o imaginário das pessoas, que também é recuperada nas discussões feitas pelo meio intelectual, nas rodas de conversas, nos debates escolares, na academia, nos escritos e principalmente entre seus praticantes.

Essa luta, que em sua gênese tem um ranço negativo, hoje foi ressignificada por 56 crianças em estudo de mestrado elaborado pelo profissional de educação física Lucas Contador Dourado da Silva. O trabalho deu à luz um estudo que ocorreu numa escola municipal de Campinas, do distrito de Barão Geraldo. “Essa prática propiciou atitudes positivas nas crianças no seu modo de se relacionar com outras. Também foi engajadora, pois estavam motivadas a agir em seu próprio ambiente”, constata o pesquisador.

A dissertação, apresentada à Faculdade de Educação Física (FEF), abordou a inserção da capoeira na educação infantil (que compreende uma faixa etária entre três e seis anos de idade). O projeto começou com duas turmas que estudavam no período da manhã. A iniciativa foi tão bem-aceita que chegou a ser incluída no projeto pedagógico dessas turmas.

Nessa ressignificação, como o jogo partia de brincadeiras, elas atribuíam-lhe significado de maneira arbitrária, ou seja, como compreendiam. Lucas teve notícias de que elas também utilizavam a capoeira em outras situações e em outros ambientes. 

Os pais narraram que era muito comum que elas cantassem as músicas dentro de casa; ao verem imagens da capoeira, diziam que aprenderam com o tio Lucas; e, ao serem questionadas por que estavam realizando alguns movimentos, contavam que estavam fazendo um movimento da capoeira. 

“O corpo foi ressignificado ali durante as próprias brincadeiras”, contribui o pesquisador, para quem a inclusão da capoeira deve acontecer de maneira lúdica. “Como a capoeira era jogada em duplas, incluía muitas brincadeiras em que as crianças ora ensinavam e ora aprendiam.”

 

Inserção

Em seu estudo, Lucas confirmou, como um primeiro aspecto, que a capoeira pode ser inserida nas atividades da educação infantil e também em qualquer nível de ensino. “Para isso basta fazer algumas adaptações”, acredita.

Particularmente na educação infantil, as iniciativas de trabalho são de estímulo e gosto pela modalidade, já que este é um primeiro encontro das crianças com a capoeira. Dos elementos que podem produzir uma aproximação, notam-se a roda, o jogo e a música como conteúdos que podem estar presentes em qualquer dos estilos: Angola ou regional.

Um segundo aspecto, percebeu, consistiu em tratar esses elementos de maneira pedagógica por meio de brincadeiras, porque permite as crianças compreendê-los de forma prática e objetiva. “Unimos o conteúdo a uma linguagem dirigida ao público infantil. E isso envolveu um planejamento e a sua execução durante as vivências”, aborda.

Mas como a criança deve ser apresentada à capoeira? A ideia, conforme o pesquisador, é não ter uma intervenção abrupta e também trazer à tona brincadeiras que compõem o seu repertório de conhecimento, como o pega-pega e o esconde-esconde, fazendo relações com noções da história da capoeira por exemplo.

No pega-pega, propõe-se que as crianças, ao serem pegas, se abaixem. Para quem vai salvá-las, tem que passar a perna por cima (meia lua de frente). “Assim, nessa brincadeira, alguns movimentos da capoeira acabaram sendo inseridos no contexto da escola e não são aquelas práticas que se veem nas ruas ou em outros ambientes. É preciso criar novas experiências”, enfatiza. 

O mestrando relata que, apesar da aceitação da maioria das crianças em praticar a capoeira, algumas tiveram atitudes não engajadas ao que era proposto. “No nosso estudo, pudemos perceber que algumas crianças que estavam presentes formavam relações interpessoais que não estavam voltadas à prática das brincadeiras. Geralmente, eram as crianças mais ‘agitadas’”, lamenta.

Uma de suas análises foi feita a partir da interação que a criança possui, o que do ponto de vista da educação física lhe propicia não somente interagir socialmente, com o uso da linguagem verbal; na capoeira, ela consegue se relacionar também através do corpo, porque vai entendendo as relações de respeito e cooperação que o jogo propicia, porque cada um ocupa certo espaço.

Ao mesmo tempo, considera o estudioso, ao passar a perna por cima da criança, ela terá que dar uma resposta à pergunta que foi realizada pelo outro através de seu corpo. Trata-se de uma conscientização por meio dos movimentos, um novo jeito de interação, dimensiona.

Meninos e meninas da escola em questão participavam do projeto de capoeira indistintamente. Mas alguns estudos têm mostrado que é comum que eles se separem por gênero na hora do jogo. “Então é preciso estimulá-los a uma interação com o sexo oposto. Temos que desmistificar esse território”, diz.

 

Origem

O mestrando relembra que a capoeira representava muito para os escravos, pela ânsia de libertação do jugo opressor. Eles não tinham praticamente nada em suas vidas. Tinham unicamente seus corpos. “Por isso, essa manifestação, ainda hoje, apresenta-se através do corpo”, retoma.

A sua origem no Brasil é controversa, mas também não há registros de sua aparição na África. A primazia acaba sendo atribuída ao povo africano porque os escravos descendiam desse continente. Por outro lado, uma forte justificativa é de que as condições de opressão às quais eram submetidos foram o estopim para o surgimento da capoeira. 

Nos navios negreiros, embarcações de carga que transportavam os escravos que vinham ao Brasil, eles inclusive eram divididos de acordo com os diferentes dialetos para que não pudessem ter contato linguístico e nem cultural. Já havia até uma preocupação dos senhores em não trazer escravos da mesma etnia. 

Ocorre que, à época, o país estava sendo formado e era consistente a influência das culturas portuguesa e africana, além de uma pequena participação daqueles europeus de condição mais humilde que tentavam se estabelecer aqui. Isso acabou gerando uma cultura ‘transplantada’.

 

Método

Lucas utilizou em seu estudo a teoria bioecológica, fundada pelo psicólogo Urie Bronfenbrenner (1917-2005). Esse autor faleceu e não teve tempo de concluí-la, deixando algumas lacunas no método. 

Ele nunca mencionou, por exemplo, o ter de verificar o desenvolvimento integral de uma criança em atividades de capoeira. “Então notamos a necessidade de criar estratégias que dessem conta dos conceitos centrais dessa teoria, do ponto de vista científico”, menciona. 

O pesquisador reconhece que essa teoria é ampla e que não deu para atingi-la por completo em sua pesquisa. A teoria bioecológica prega quatro pontos. Um envolve os processos (relações interpessoais). As relações devem ser verificadas através do comportamento infantil de maneira natural e no ambiente imediato da criança. 

Nesse caso, identifica-se quais relações são formadas e qual a sua natureza, para observar se essas relações são recíprocas, se têm equilíbrio de poder e sua natureza. 

Outro ponto envolve as características da criança, por serem capazes de alterar muito as relações do jogo. Quando ela é muito nervosa e naquele momento expressou isso em uma interação, o que esse nervosismo gerou em outras crianças? 

Um outro ponto é o ambiente. Ele é visto e analisado pela própria estrutura metodológica. Como o contexto interferiu no comportamento das crianças? “No estudo, ele foi avaliado através das relações interpessoais no ambiente em que as crianças brincavam”, esclarece.

O último ponto tem relação com o tempo. “Iniciamos o trabalho em abril de 2012 e terminamos em dezembro do mesmo ano”, comenta ele, que integra o Grupo de Estudos em Educação Física no Desenvolvimento Infantil (Geefidi) e que em sua pesquisa foi orientado por Ademir de Marco, docente da FEF.

Sobre a metodologia empregada, informa que usou três instrumentos de coleta de dados no trabalho de campo: a filmagem, para conseguir captar o ambiente natural e o comportamento das crianças; os questionários, respondidos pelos pais ou responsáveis, para observar a relevância dada ao tema; e um diário de campo, preenchido após as sessões de atividade motora, a fim de convergir os dados. 

Na opinião de Lucas, a vantagem é que esse material ficará documentado. “Poderei estudar e verificar os elementos da teo-ria bioecológica quantas vezes quiser e me aprofundar sobre o fenômeno do comportamento infantil”, realça o pesquisador.

 

Conquista

Lucas começou praticar a capoeira aos 12 anos, com o mestre Franja, em um clube da cidade de Campinas. Gostou tanto da experiência que decidiu que “nunca mais iria parar”. Com três décadas de vida, ele treina pelo menos duas vezes por semana. 

Os exercícios de capoeira incluem alongamento, esquivas, chutes rodados de ponta de linha e exercícios do plano baixo, que são descida básica, negativa ou rolar. A partir desses fundamentos, faz-se o restante, e os floreios acabam sendo incorporados. 

Já há algum tempo, o Geefidi está desenvolvendo um projeto em conjunto com o Programa de Desenvolvimento e Integração da Criança e do Adolescente (Prodecad) da Unicamp. São atividades pedagógicas com ensino de capoeira, que começam a ser introduzidas agora.

Como resultado, o projeto conquistou uma sala própria no Prodecad, que será inaugurada em breve. Deste modo, a capoeira deverá ser incorporada às ações desse programa. Tal iniciativa foi idealizada pela pós-graduanda Daniela Soares, conta Lucas.

 

Publicação

Dissertação: “Vivências da capoeira na educação infantil”
Autor: Lucas Contador Dourado da Silva
Orientador: Ademir de Marco
Unidade: Faculdade de Educação Física (FEF)
Financiamento: Capes