Edição nº 590

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 14 de março de 2014 a 24 de março de 2014 – ANO 2014 – Nº 590

Substituição no futebol: entra o inteligente e sai o malabarista

Metodologia inovadora criada por professor da FCA é voltada à formação de jogadores diferenciados

“Eu já não tenho mais paciência para assistir a um jogo inteiro pela televisão”. A frase, dita por qualquer brasileiro apaixonado pelo futebol, já mereceria atenção. Proferida por um ex-jogador profissional e atual pesquisador do esporte, como é o caso, ela ganha uma dimensão ainda maior. O autor é Alcides José Scaglia, docente da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, com campus em Limeira. Dedicado a investigar aspectos relacionados à pedagogia do esporte, ele desenvolveu um método original de treinamento pautado no jogo. O objetivo é, como ele diz, formar jogadores inteligentes e não malabaristas da bola. Aplicada em um pequeno clube do interior paulista, a metodologia proporcionou ótimos resultados, abrindo perspectiva para a superação do enfadonho momento do futebol nacional.

Scaglia abraçou a carreira acadêmica depois de tentar ganhar a vida nos gramados. Passou pelas categorias de base da Ponte Preta, de Campinas, e atuou como profissional no Velo Clube, de Rio Claro, agremiações do interior de São Paulo. “Naquela época, eu já tinha claro que precisava estudar. Como não consegui me destacar no esporte, prestei vestibular e ingressei no curso de educação física da Unicamp. Depois, fiz mestrado e doutorado. Em 2010, prestei concurso e assumi o cargo de docente aqui na FCA”, relata. O contato com o tema principal de suas pesquisas começou logo no primeiro semestre da graduação, nas aulas do professor João Batista Freire, que iniciou um projeto sobre escolinha de futebol.

Mais tarde, no mestrado, Scaglia aprofundou suas investigações sobre o ensino-aprendizado do futebol. Para isso, ele entrevistou ex-jogadores para entender como eles aprenderam a praticar o esporte. “Na época, os depoimentos deixaram muito claro que a questão da rua era um ponto importante na relação que eles estabeleceram com a bola. A pedagogia da rua, que é marcada pelas brincadeiras da bola com os pés, estava presente em todos os relatos. Esse foi um aspecto importante para a sequência dos estudos. Nós percebemos que o jogo espontâneo, muito mais que o jogo em si, contém elementos que geram uma aprendizagem significativa. Essa aprendizagem, marcada por expressões lúdicas, se diferencia muito da prática deliberada adotada tanto nas escolinhas quanto nos clubes. Em outras palavras, ela é capaz de formar jogadores diferenciados”, afirma.

No doutorado, o atual docente da FCA avançou um pouco mais os meias, para usar uma linguagem própria do futebol, e passou a investigar o que significava de fato o jogo espontâneo. Scaglia buscou entender o processo organizacional e sistêmico, o que permitiu que tivesse uma compreensão ampla acerca da pedagogia da rua e da transição dela para uma posterior sistematização. “De 1992 a 2000, nós sistematizamos o método e construímos um currículo de formação direcionado aos garotos que estavam se iniciando no futebol”, lembra. Em 2003, o Scaglia percebeu que o que tinha sido feito em relação à iniciação dos jogadores precisava ter continuidade, agora no campo da especialização.

O pesquisador concluiu que a metodologia desenvolvida para a iniciação poderia servir de base para o ensino da modalidade em etapas posteriores, ou seja, desde as categorias amadoras até o time profissional. “Ao entendermos o processo de organização do jogo, nós conseguimos manipular esse mesmo jogo de modo a criar um método de treinamento marcado pelas especificidades que o futebol requer. O objetivo era formar jogadores inteligentes e não jogadores malabaristas. Estávamos interessados em atletas que conseguissem ler o jogo e tomar decisões capazes de desmontar uma defesa ou, ao contrário, neutralizar um ataque”, reforça o professor da FCA. Na sequência, junto com outros ex-alunos da Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp, Scaglia criou, em Campinas, a organização não governamental Associação Futebol Arte (AFA). O espaço utilizado para as atividades foi cedido pela Escola Americana.

Os educadores físicos selecionaram meninos para formar uma equipe sub-12, que passou a servir de projeto piloto. “Procuramos clubes como Ponte Preta e Guarani, entre outros, para apresentar a metodologia. Entretanto, nenhum deles se interessou. Queríamos mostrar que, com método pautado somente no jogo, nós conseguiríamos ganhar deles. Em um ano, já estávamos comprovando na prática que conseguíamos enfrentar de igual para igual diversos times, inclusive os de São Paulo. Esse bom desempenho despertou o interesse do Paulista Futebol Clube, que estava em formação. Estabelecemos uma parceria e começamos a aplicar a metodologia no clube, inicialmente nas categorias amadoras e depois no time profissional”, conta Scaglia.

Como resultado da experiência, o Paulínia registrou algumas conquistas importantes com os times de base e também com o profissional. Além do mais, o clube virou um centro de referência em formação de jogadores no país. “Outra consequência foi a transferência de alguns dos nossos jovens atletas para agremiações de destaque, como o Fluminense e o Botafogo, ambos do Rio de Janeiro, e o Real Madrid, da Espanha”. Ao mesmo tempo em que formava jogadores, a equipe também tratava de qualificar professores, para que pudessem levar a metodologia adiante. Scaglia ficou no Paulínia até 2008. Em 2009, assumiu a Secretaria de Esportes de Paulínia e, em 2010, como já dito, tornou-se docente da Unicamp.

Além dos ganhos evidentes dentro de campo, o método desenvolvido por Scaglia também se destaca por outros aspectos. “Ele não tem empresários e não requer alojamentos. Os garotos, preferencialmente da região, treinam uma vez ao dia e depois retornam para suas casas. Isso reduz muito os custos”, assegura. O docente diz estar convencido de que o modelo pode ser a saída tanto para as deficiências técnicas e táticas do futebol brasileiro, quanto das dificuldades relacionadas à gestão do esporte. “Nós trabalhamos o conceito da periodização do jogo. Nossa proposta é acabar com o adágio popular segundo o qual treino é treino e jogo é jogo. O que nós defendemos é que treino é jogo e jogo é treino. Por isso é que as coisas dão tão certo”, pontua.

Scaglia admite, no entanto, que a proposta representa uma quebra de paradigma, e que por isso mesmo ainda deverá continuar encontrando resistências para ser adotada por parte dos clubes. “De fato, não é uma decisão trivial seguir esse método. Por ele, toda a lógica atual teria que ser transformada. Certezas ‘absolutas’ teriam que ser abandonadas. Mesmo assim, entendo que é inevitável que a metodologia comece a ser gradualmente assimilada. Na Europa, há muitos anos que o modelo de treinamento aplicado no Brasil foi abandonado, daí o sucesso de vários clubes de lá. Isso explica, por exemplo, porque muitos jogadores brasileiros não se adaptam ao futebol europeu. Alguns sequer conseguem treinar. Na Holanda, por exemplo, a discussão de se trabalhar com o jogo vem da década de 1970, com o técnico Rinus Michels!”, compara.

Na opinião de Scaglia, se o Brasil quiser se transformar novamente numa referência mundial na formação de jogadores de futebol, o caminho já está pavimentado. “A tradição das brincadeiras de bola com os pés ainda é forte no país. Ela contempla muita espontaneidade, criatividade e ludicidade. Se valorizarmos essa cultura, certamente voltaremos a dar as cartas na formação de atletas diferenciados”, antevê. O docente da FCA assinala, entretanto, que todos esses aspectos não mantêm qualquer relação com a questão do dom, algo que está arraigado na mente dos torcedores brasileiros. “Cada vez mais, as pesquisas científicas comprovam que não existe dom, pelo menos como está presente no imaginário popular. As pessoas precisam saber que a competência adquirida é muito importante”, pondera.

Para sustentar a sua posição, o professor da FCA menciona a “teoria do balde”. Conforme essa proposição, cada ser humano nasce com um balde, sendo que alguns são grandes e outros, pequenos. “O tamanho do balde é algo inato. É o recipiente no qual você colocará coisas boas, coisas ruins ou poderá enchê-lo apenas pela metade. Nesse sentido, por hipótese, alguém com um balde grande pode completá-lo somente com elementos desinteressantes. Ao passo que alguém com balde pequeno poderá enchê-lo com o que é essencial para resolver as questões mais prementes no campo profissional, o que lhe dará a garantia de um sucesso maior que o obtido pelo dono de um baldão”.

Atualmente, Scaglia continua dando sequência as seus estudos, com a colaboração do Paulínia Futebol Clube. As investigações, que contam com a participação de alunos de graduação e pós-graduação, são realizadas no Laboratório de Estudos em Pedagogia do Esporte (LEPE), coordenado pelo docente. “O interessante desse trabalho é que, inicialmente, nós levamos a metodologia para o clube. Agora, nós vamos buscar no clube elementos para alimentar nossas novas pesquisas”, diz, acrescentando que tem mantido contato com algumas agremiações interessadas em conhecer melhor o método desenvolvido por ele. Quem sabe sairá dessa tabelinha o gol de placa que falta ao futebol nacional?