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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 14 de março de 2014 a 24 de março de 2014 – ANO 2014 – Nº 590Visões do paraíso
Os moradores, os turistas e os pesquisadores que visitam Ouro Preto, Minas Gerais, e olham para o forro da nave da Igreja São Francisco de Assis, estão diante de uma representação do paraíso pós-vida. Foi o que concluiu o pesquisador e arquiteto Marco Aurélio Figueroa Careta em sua dissertação de mestrado, apresentada recentemente ao Instituto de Artes (IA).
Segundo ele, nas pinturas em perspectiva mais conhecidas, o que em geral acontecia era uma continuação da arquitetura do templo que, em dado momento, interrompia-se por uma abertura que dava para o céu da abóbada celeste, no meio do qual aparecia uma alegoria do céu pós-vida.
Manuel da Costa Ataíde, artista convidado para fazer a decoração dessa igreja, ao contrário, usou o espaço do forro da nave da igreja como um todo, da cimalha [que é uma moldura comumente utilizada em algumas igrejas mineiras para arrematar internamente uma parede] para cima, a fim de representar o paraíso, e o fez de uma forma mais complexa – espacial e temporalmente.
No caso de muitas pinturas em perspectiva de Minas Gerais e também de Ataíde, a cimalha é o limite entre o espaço arquitetônico e o espaço pictórico. No entanto, o que de extremamente particular este artista fez foi representar diretamente o Paraíso, sem espaços intermediários. “Tal diferença foi ímpar em relação ao céu de diversos outros pintores renomados do Brasil e da Europa”, verificou Marco Aurélio.
Tem mais: a arquitetura que Ataíde pintou no forro da nave da Igreja São Francisco de Assis não seria possível de ser executada pelos sistemas construtivos da época. “Para começar, uma arquitetura como aquela jamais pararia em pé. Suas curvas e flexões tornariam aquela estrutura infactível”, reparou.
Esse foi um dos indícios encontrados pelo mestrando para embasar a ideia de que Ataíde fez uma representação do paraíso naquele forro. “Uma arquitetura daquelas só poderia ser o céu, tanto que ela está habitada por anjos e por figuras da tradição da Igreja Católica, como os santos doutores”, descreveu.
Outro indício foi a proximidade entre o espaço que Ataíde expressa e as típicas representações do Jardim de Éden. Na Idade Média, lembrou, havia muitas representações do Jardim do Éden em iluminuras de livros. “Elas forneciam, por meio de elementos que pudessem constituir um jardim de fato, uma representação do paraíso perdido ou simplesmente do próprio paraíso”, averiguou o estudioso, que em sua pesquisa abordou uma pintura em perspectiva, também chamada pintura arquitetônica, um gênero encarnado no país sobretudo por Ataíde.
Também fascinado pela arte nos forros das igrejas, Marco Aurélio procurou se aproximar do que elas comunicavam e como elas se apresentavam. Sua investigação foi desenvolvida entre 2011 e 2013 em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Lisboa, Barcelona, Milão, Veneza, Roma, Parma e Florença.
O arquiteto documentou tudo e incluiu no seu estudo, que teve ainda 114 imagens, parte de sua autoria e parte de outras fontes, selecionadas de um universo de fotografias. Percorreu diversas igrejas, decifrando a arte nos forros: as pinturas em perspectiva e as obras que contribuíram para a sua criação. Entre elas, avaliou as obras de Giotto (pintor e arquiteto italiano do Renascimento) e de Correggio (mestre da expressão do sentimento, do sensual e do movimento) – pintores de um conjunto de trabalhos muito expressivo para o que veio a ser a pintura em perspectiva – e de Andrea Pozzo, artista italiano cuja obra está presente na Igreja de Santo Inácio, em Roma, reputada como a mais emblemática das pinturas em perspectiva.
A missão de Marco Aurélio foi garimpar todas as obras e, comparativamente, perscrutar o discurso poético de Ataíde no forro da Igreja São Francisco de Assis, projetada em estilo rococó: uma reação da aristocracia francesa ao barroco suntuoso do período de Luís XIV.
O mestrando deu alguns nomes para as figuras que identificou nessa sua observação. Um deles foi Baldaquino-Palco, que explica parte da concepção espacial que Ataíde desenvolveu ali. “Não se trata de uma concepção linear, como em outras pinturas em perspectiva”, comentou.
Outros nomes dados por ele foram Nave Mulata, que expressa determinadas características da nave e da Igreja São Francisco de Assis como um todo, as quais se relacionam intimamente com a pintura de Ataíde; e Vênus Mulata, que expressa algumas, dentre as prováveis falas do discurso de Ataíde, por meio da figura de Maria.
Ataíde pintou cinco forros em igrejas de Minas Gerais. Foram eles o forro da nave da Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto; o forro da capela-mor da Igreja Matriz de Santo Antonio, em Itaverava; o forro da capela-mor da Igreja Matriz de Santo Antonio, em Santa Bárbara; o forro da capela-mor da Igreja de Nossa Senhora do Rosário, em Mariana (a Rosário dos Pretos); e o forro da nave da Igreja Matriz de Santo Antonio, em Ouro Branco.
Peculiaridades
Orientado pelo docente do IA Mauricius Martins Farina, Marco Aurélio escolheu o assunto tanto pela sua formação como arquiteto como também pela poética das obras de Minas Gerais.
Conforme o pesquisador, as principais pinturas de Ataíde iniciaram no século 19. Acredita-se que entre 1801 e 1812, porém faltam documentos apurando isso. Mas é fato que nesse período ele fez alguns trabalhos na Igreja São Francisco de Assis.
Não obstante, há divergências sobre até que ponto uma ou outra pintura é de sua autoria. “Por outro lado, não paira dúvida de que a pintura pesquisada por mim no forro da nave seja dele”, ressaltou Marco Aurélio.
Essa obra de arte, contou o autor do estudo, possui muitas facetas: é engajada com os acontecimentos políticos, com os fatos sociais e com as questões humanistas e religiosas, então efervescentes.
Como toda obra de grande valor, disse, a sua arte é valiosa por aquilo que foi e, em potencial, por aquilo que ainda tem a oferecer. “Ao observá-la, não a olhei somente com olhos de arquiteto e sim de um artista que busca a arte para, assim, se aproximar dela.”
Mas do que fala essa pintura? Marco Aurélio responde que um dos aspectos mais salientes é a questão mulata. Todas as figuras na pintura da Igreja de São Francisco de Assis são mulatas.
Dados demográficos apontados na pesquisa do arquiteto dão conta de que a maioria da população de Ouro Preto era – em ordem decrescente – negra, mulata e branca, representada principalmente pelos portugueses e seus descendentes nascidos em Minas, sendo esta última uma minoria, mas que comandava a sociedade.
O pintor não retratou nem a maioria e nem a minoria. “Entendo que os mulatos eram o povo mineiro, que se deu pelo cruzamento dos portugueses e dos negros que vieram trabalhar ali. Aleijadinho era filho de pai português e de mãe escrava. O próprio Ataíde teve por concubina uma mulata, Maria do Carmo Raimunda da Silva, e com ela teve seis filhos”, recordou.
Um outro aspecto que segundo a pesquisa saltou na obra de Ataíde foram algumas possíveis relações com a Inconfidência Mineira e os ideais iluministas, uma crítica ao absolutismo.
A Inconfidência Mineira foi tão catastrófica para aquela sociedade que deve ser vista com bastante atenção, orientou Marco Aurélio, já que revela aspectos bastante peculiares.
O natural seria imaginá-la organizada por questões de raça e de nome familiar. Não foi assim. Muitas dessas estruturas que ocorreram rigidamente em outros lugares (em outras colônias portuguesas ou em outros lugares da mesma colônia que mais tarde veio a ser o Brasil) ali se deram de modo mais hibridizado.
Foi muito comum em Ouro Preto e em Mariana, por exemplo, negros ascenderem socialmente, escravos conseguirem a própria alforria e alguns adquirirem certo status social.
Mas esse povo foi impedido de se libertar de maneira severa com o fim da Inconfidência Mineira em 1789. Não à-toa Tiradentes foi considerado o símbolo do movimento. Ele foi esquartejado e suas partes foram colocadas nas principais cidades de Minas, para servir de exemplo.
Além disso, foram feitas festas para celebrar o fim daquele levante e a tragédia da intenção de se libertar, que também contava com a adesão de uma parte da elite daquela sociedade, então descontente. Por ordem do governador local, foi erigido um marco em Ouro Preto para simbolizar o desmantelamento da Inconfidência. Inconformada, a população decidiu destruí-lo poucos anos depois.
No ano em que se pôs fim ao movimento, aconteceu a Revolução Francesa e pouco depois outras iniciativas ao longo do território brasileiro. Esses eventos foram diferentes dos de Minas. Alguns deles foram até mais abrangentes, envolvendo as mais diversas classes. O próprio Tiradentes tinha tentado convencer pessoas das classes menos abastadas de que se libertar de Portugal seria benéfico.
Na visão de Marco Aurélio, o que Ataíde fez foi se posicionar diante daquele povo que ali já se constituía de forma autêntica, com uma cultura peculiar. Indícios da pesquisa sugerem que na obra do artista exista até uma representação da cabeça de Tiradentes, que foi o quarto que ficou exposto na praça de Ouro Preto, na frente da Casa da Câmara e Cadeia.
Logo, por tudo isso, percebe-se que pintar as figuras mulatas não era algo irrelevante para o artista. O fato de criar o céu e nele colocar os mulatos foi uma representação do povo mineiro e do contexto histórico. “Ataíde representou o paraíso e o ofereceu a esse povo”, constatou Marco Aurélio.
Quem foi
Manuel da Costa Ataíde, o mestre Ataíde, nasceu em Mariana em 1762 e morreu em 1830, aos 68 anos. Foi um dos pintores, douradores e artífices na arte da encarnação mais relevantes da época.
Sua primeira obra pública foi a corporificação de dois ícones de Jesus para a Igreja do Senhor Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo, em 1781. Foi um dos poucos pintores mineiros reconhecidos no período.
Era visto como uma figura humana, religiosa, membro de diversas irmandades, pessoa desprendida materialmente e que cobrava preços justos por suas obras. No testamento do pai, chegou a abrir mão de sua parte na herança em favor dos seus irmãos.
Publicação
Dissertação: “O paraíso aos mineiros: proposições acerca de um discurso poético de Manoel da Costa Ataíde”
Autor: Marco Aurélio Figueroa Careta
Orientador: Mauricius Martins Farina
Unidade: Instituto de Artes (IA)
Financiamento: Capes
Comentários
mestrado
Muito bom estudar a nossa cultura e nossas igrejas.
Temos muito material artístico no Brasil, que turisticamente e culturalmente poderiam ser melhor explorados.
Ótimo trabalho para divulgação e valorização da nossa cultura e arte.