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Mulheres e Direitos Humanos no Brasil: avanços e desafios

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Foto: ReproduçãoAngela Maria Carneiro Araújo é cientista social e professora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Integra o Comitê Gestor de Direitos Humanos da Unicamp.

 



 

Foto: ReproduçãoRegina Facchini  é antropóloga, pesquisadora e atual coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu e professora dos programas de pós-graduação em Antropologia Social e em Ciências Sociais na Unicamp.

 


 

 

"Discriminação contra a mulher" significará toda distinção, exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício pela mulher, independentemente de seu estado civil, com base na igualdade do homem e da mulher, dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural e civil ou em qualquer outro campo. (Artigo 1º da Convenção para a eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, adotada pela Assembleia Geral da ONU em1979).


O Dia Internacional da Mulher, celebrado no 8 de março, simboliza a luta das mulheres contra a discriminação e por igualdade de direitos civis, sociais, políticos e culturais. Considerando que a Declaração Universal dos Direitos Humanos completa 70 anos em dezembro de 2018, cabe refletir sobre a efetividade dos avanços nas condições de vida, na autonomia e liberdade das mulheres, bem como na superação das situações de violência e desigualdade nas quais se inseriam.

É indiscutível que a luta das mulheres pelo fim da discriminação e pela igualdade de gênero transformou a sociedade em muitos países e também no Brasil. Essas transformações se deram a partir da conquista de novos direitos, pela constituição de organismos estatais voltados para a promoção da equidade de gênero e pela adoção de políticas públicas que colaboraram para a redução da discriminação e das desigualdades de gênero.

No entanto, a Declaração dos Direitos Humanos completa 70 anos em um contexto internacional em que ocorre uma crescente hostilidade contra os direitos humanos e aumentam as manifestações de ódio, de intolerância e de rejeição aos direitos conquistados pelas mulheres, pelas populações negra, indígena e LGBTI, entre outros grupos e comunidades [1]. No contexto nacional, tal situação ainda se faz acompanhar de importante crise política e econômica.

 

Conquistas dos movimentos feministas

A luta das mulheres e do movimento feminista no Brasil vem, desde os anos 1970, reduzindo as discriminações contra as mulheres e transformando as relações de gênero.

A escolarização das mulheres cresceu em todos os níveis de ensino, sendo que nos anos 2000 elas passaram a ser maioria dos matriculados e também dos concluintes tanto no Ensino Fundamental e Médio quanto no Ensino Superior. O Censo de 2010 mostra que a porcentagem das mulheres com 25 anos ou mais que possuíam nível superior dobrou em uma década [2]. Nesse ano, apenas em 5 carreiras universitárias elas não eram maioria. Nos anos 2000, elas superaram os homens em carreiras de alta remuneração, antes consideradas masculinas, como Arquitetura (60,6%), Medicina (54%), na Odontologia (69%), na Administração (57%) e no Direito (55%). Em 2013, as mulheres eram 55% do total de estudantes inscritos nos cursos de graduação presenciais e 60% dos concluintes.

Essa crescente escolarização das mulheres contribuiu para o aumento constante de sua inserção no trabalho remunerado. Sua participação no mercado de trabalho aumentou 85% entre 1976 e 2007 e cresceu 33,9% entre 2001 e 2013, enquanto a dos homens cresceu 28,1%. Nesse período, a formalização do mercado de trabalho favoreceu mais as mulheres e os homens negros. Assim, enquanto a participação das mulheres brancas na formalidade cresceu 31%, a das mulheres negras cresceu 107% e a dos homens negros 91%, superando o número de homens brancos nesse tipo de ocupação em 2013.

Além disso, as mulheres entraram cada vez mais em nichos de trabalho antes considerados masculinos e as mais escolarizadas aumentaram sua participação em cargos de chefia e gerência, apesar da persistência do teto de vidro na maioria dos setores econômicos. Contudo sua presença continua majoritária, principalmente, no setor de serviços, no emprego doméstico e nas áreas tradicionalmente "femininas" do conhecimento, como educação (81% mulheres), saúde e bem-estar (74%), ciências humanas e artes (65%).

No âmbito legislativo e das políticas públicas há também importantes avanços, que se acentuam a partir dos anos 2000, quando são criados órgãos governamentais destinados a gerir políticas para mulheres e convocadas Conferências de Políticas para as Mulheres. No que diz respeito ao combate à violência são implantados sistemas de notificação da violência contra mulheres, são sancionadas a Lei Maria da Penha (2006) e a que tipifica o feminicídio (2015), além disso, é alterada a tipificação penal de estupro (2009), permitindo abranger outras práticas tidas como sexuais para além da penetração vaginal. No que diz respeito à participação política, a legislação brasileira indica desde 1997 que cada partido ou coligação deve preencher, nas eleições proporcionais, o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo.

 

Persistência das desigualdades, discriminações e violências

Apesar de todos esses avanços e conquistas ainda persistem as desigualdades de gênero, as discriminações e violência contra as mulheres. O Relatório de Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) de 2016 [3] registra que, no Brasil, mulheres recebem até 25% a menos que homens desempenhando trabalhos semelhantes e que a taxa de mortalidade materna é de 44 mortes a cada 100 mil nascidos vivos (a Noruega, a primeira colocada no ranking, apresenta 5 mortes para cada 100 mil). Na política brasileira, apenas 10% dos assentos do parlamento são ocupados por mulheres (a Argentina conta com 37% e a Arábia Saudita com 19,9%). A acentuada discrepância na participação política fez com que o Brasil caísse 11 posições (atualmente ocupa a 90ª posição no ranking, o que representa também uma queda de 23 posições desde 2011) no Relatório de Desigualdade Global de Gênero 2017, divulgado em 2017 pelo Fórum Econômico Mundial.

No que concerne à violência, os atendimentos a mulheres vítimas de violência sexual, física ou psicológica em unidades do Sistema Único de Saúde (SUS) somam, por ano, 147.691 registros - 405 por dia, ou um a cada quatro minutos. As mortes femininas por agressão passaram de 2,3/100.000 para 4,8/100.000 entre 1980-2013, representando um aumento de mais de 100% no período. [4] Em 2016, tramitaram na Justiça do País mais de um milhão de processos referentes à violência doméstica contra a mulher, o que corresponde, em média, a 1 processo para cada 100 mulheres brasileiras. Em uma década, entre a edição da Lei Maria da Penha, em 2006, até dezembro de 2017, o número de varas e juizados exclusivos em violência doméstica e familiar passou de 5 para 111. Além do aumento, também houve a instalação de setores psicossociais especializados no atendimento à vítima em 17 tribunais.[5] De acordo com o 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, uma mulher foi assassinada a cada duas horas no Brasil em 2016, totalizando 4.657 mortes. Mas apenas 533 casos foram classificados como feminícidio, mesmo após lei de 2015 obrigar tal registro para as mortes de mulheres dentro de suas casas, com violência doméstica e por motivação de gênero. [6]

O 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública indicava que a cada 11 minutos uma pessoa é estuprada no Brasil. Dados do 11º Anuário, para 2016, apontam que o número de estupros cresceu 3,5% no país e chegou a 49.497 ocorrências. Pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), divulgada em 2014, apontou que 89% das vítimas de estupro são do sexo feminino e possuem, em geral, baixa escolaridade. Do total, 70% são crianças e adolescentes. Em 70% dos casos, os estupros foram cometidos por parentes, namorados ou amigos/conhecidos da vítima. O mesmo estudo indica que somente 10% dos casos são denunciados e estimou que cerca de 7% dos casos de violência sexual resultaram em gravidez.

Em contraste com a maior visibilidade e difusão dos feminismos e das mudanças nas convenções acerca do que pode ser classificado como violência, a virada da última década é marcada por preocupante reação conservadora. Em uma legislatura apontada como uma das mais conservadoras das últimas décadas, é produzido um conjunto de propostas legislativas que retrocedem direitos, como no caso do PL 5069/2013, que altera e restringe a abrangência do atendimento a mulheres vítimas de violência sexual em hospitais, pela exigência da apresentação de boletim de ocorrência e exame de corpo de delito para a prevenção ou interrupção da gravidez decorrente de estupro, ou dos vários projetos de lei que visam a proteção da vida desde a concepção em qualquer caso.

Na contramão das evidências que apontam a violência física, psicológica e sexual contra mulheres como algo frequente e fortemente enraizado nas desigualdades de gênero persistentes na sociedade brasileira, o necessário combate a partir de políticas educacionais tem encontrado entraves na retirada sistemática de qualquer menção a “gênero” em planos municipais, estaduais e nacional de políticas para a educação. Além disso, a defesa pública de proposições e medidas conservadoras no executivo e no legislativo tem encorajado discursos e práticas que reforçam a violência que tem como alvo mulheres e a culpabilização das vítimas.

Nesse contexto, no qual as conquistas não têm sido suficientes para vencer o avanço da violência, da discriminação no mercado de trabalho, das desigualdades salariais e na participação política e das perdas concretas ou ameaças aos direitos das mulheres, é fundamental tomar o marco dos 70 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos como ocasião de reflexão e de construção de ações de proteção a esses direitos.

É preciso também lembrar que as ameaças e o desrespeito aos direitos humanos e às conquistas das mulheres não acontecem sem resistências e sem luta. Os feminismos do século XXI são cada vez mais conjugados no plural, têm seu alcance amplificado com a popularização do acesso a tecnologias de informação e comunicação e o aumento da escolaridade, têm sido constantemente renovados por uma grande quantidade de jovens e meninas, pelas mulheres negras, e indígenas e de diferentes orientações sexuais, pelas trabalhadoras rurais e também pelas trabalhadoras de distintos setores nas cidades. São muitos os feminismos, pois expressam também a diversidade das mulheres. A unidade nas lutas tanto no plano nacional quanto no plano global pode ser atestada pela palavra de ordem que mobilizou mulheres em distintos países no dia 8 de março de 2017: “Nem uma a menos”. Neste ano de 2018, no Brasil, na organização de manifestações unitárias foi agregada a essa consigna: “Nem um direito a menos! É pela vida das mulheres”.

 


[1] Conforme o Comunicado do Secretário Geral da ONU, Antonio Guterres, no Dia Mundial dos Direitos Humanos em 2017. In: http://diplomaciacivil.org.br/70-anos-da-declaracao-universal-dos-direitos-humanos-e-os-desafios-dos-proximos-anos/

[2] TEIXEIRA, Marilane O. “Os avanços e continuidades para as mulheres no mundo do trabalho entre 2004 e 2014”, disponível em http://promotoraslegaispopulares.org.br/os-avancos-e-continuidades-para-as-mulheres-no-mundo-do-trabalho-entre-2004-e-2014/

[3] Disponível em: http://hdr.undp.org/en/2016-report/download

[4] Wailselfisz JJ. O mapa da violência 2015. Homicídios de mulheres no Brasil. Rio de Janeiro: CEBELA, FLACSO; 2015.

[5] Dados do Relatório O poder Judiciário na Aplicação da Lei Maria da Penha - 2017, divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), disponível em http://www.cnj.jus.br/files/conteudo/arquivo/2017/10/ba9a59b474f22bbdbf7cd4f7e3829aa6.pdf

[6] Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2017/12/ANUARIO_11_2017.pdf

 

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