Peter Schulz foi professor do Instituto de Física "Gleb Wataghin" (IFGW) da Unicamp durante 20 anos. Atualmente é professor titular da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp, em Limeira. Além de artigos em periódicos especializados em Física e Cienciometria, dedica-se à divulgação científica e ao estudo de aspectos da interdisciplinaridade. Publicou o livro “A encruzilhada da nanotecnologia – inovação, tecnologia e riscos” (Vieira & Lent, 2009) e foi curador da exposição “Tão longe, tão perto – as telecomunicações e a sociedade”, no Museu de Arte Brasileira – FAAP, São Paulo (2010).
A Declaração Universal dos Direitos Humanos chega aos 70 anos agora em 2018. No que deveria ser um período de celebração, assistimos, no entanto, a um desfile de constantes violações abjetas e brutais desses mesmos direitos que deveriam reafirmar a nossa identidade humana. Em vez disso, ameaça-nos a desumanização. A universidade não está alheia a isso. Desde o ano passado a Unicamp, por exemplo, mobiliza-se em várias ações a partir do marco da assinatura da Cátedra dos Refugiados e do lançamento do Pacto Universitário pela Promoção do Respeito à Diversidade, da Cultura de Paz e dos Direitos Humanos. O Comitê Gestor do Pacto articula uma série de iniciativas, desde o oferecimento de uma disciplina de pós-graduação sobre direitos humanos, a inclusão da temática no guia dos calouros desse ano, até a criação do Observatório de Direitos Humanos da Unicamp, que por sua vez se desdobra em novas ações. O plano de trabalho do comitê gestor alinha as manifestações de interesses e propostas de pesquisas sobre o tema, além de demandas de ensino, pesquisa e extensão. Em breve deveremos conhecer essas propostas e as demandas. Todo esse movimento é apoiado por reflexões em artigos que se multiplicam no Portal e Jornal da Unicamp. Este é mais um entre tantos, mas chamando a atenção a um artigo que aparece quase ao final do histórico documento das Nações Unidas, é o 27, em especial a primeira parte: “Toda a pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam”. A ciência como direito humano aparece também no artigo 15 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. O que segue espero que não chova no molhado e possa contribuir para as discussões em curso.
A universidade pública é autônoma para contribuir para o direito de todas as pessoas tomarem parte livremente na vida cultural da comunidade e fruir as artes. É a missão da extensão. A universidade pública também é autônoma nas propostas de ensino de graduação, apesar das ameaças recentes contra a criação e oferecimento de certa disciplina em uma dada universidade, ameaças que ajudaram a difundir a ideia da disciplina por dezenas de outras instituições de ensino superior. Mas o final do artigo 27 é diferente: “direito...de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam”, que representa um nó a ser desatado pela universidade. A pesquisa científica segue os ditames dos colégios invisíveis, agências de fomento e órgãos de avaliação externos, que avaliam apenas por relatórios e não presencialmente. A universidade não exerce a liberdade de criar cursos de pós-graduação (strictu sensu), como é o caso da graduação. Aqui a autonomia cede para a heteronomia.
O que significa “direito...de participar no progresso científico”? Toda pessoa teria direito a influir na decisão sobre as linhas de pesquisa a serem fomentadas, por exemplo? Ou só se refere a usufruir dos possíveis benefícios dessa pesquisa? Usufruir quanto e quando? Os direitos humanos poderiam ser incorporados à própria pesquisa, não só no território das humanidades, mas no das ciências naturais e tecnológicas? A ciência deveria se preocupar em trabalhar pelos outros direitos?
O que o Google nos brinda com as palavras chave “science and human rights”? Chama a atenção, logo de cara, o portal da Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS): Science and Human Rights Coalition [I], que se define como uma “rede de organizações científicas e de engenharia que reconhecem um papel para cientistas e engenheiros nos direitos humanos”. Entre as notícias da semana o relato do encontro sobre integração de direitos humanos com educação em STEM (Ciência, tecnologia, engenharia e matemática), que descreve parte do encontro como “fornecendo instantâneos de práticas de ciência através da lente dos direitos humanos”. Essa coalizão é “devotada a facilitar a comunicação e parcerias sobre direitos humanos intra e intercomunidades científicas e entre essas e comunidades de direitos humanos”. Através de seus encontros, publicações e projetos, “busca melhorar o acesso à informação científica e tecnológica para ativistas de direitos humanos e engajar cientistas, engenheiros e profissionais da saúde em questões de direitos humanos”. É preciso aprofundar um pouco para entender o alcance do discurso. Para isso abre-se uma bibliografia comentada [II]. É uma fonte vasta com documentos relacionados ao papel da ciência nos direitos à saúde, alimentação e água e meio ambiente. A coalizão inclui ao seu escopo o artigo 15 do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que além do que já consta na declaração universal, proclamam o direito de manutenção, desenvolvimento e difusão da ciência, da liberdade de investigação científica e de cooperação. E aqui a preocupação com os direitos humanos dos próprios cientistas, também frequentemente violados. Outras associações também se dedicam a essa questão: The International Human Rights Network of Academies and Scholarly Societies [III], Scholars at Risks [IV] e a Philipp Schartz Initiative [V].
A revista Science & Diplomacy [VI] aponta ainda em direção ao conceito de diplomacia pela ciência como mecanismo, tanto no nível governamental, quanto não governamental, para promover direitos humanos. A conferência de Pugwash, tema de coluna anterior [VII] e certamente ligada aos direitos humanos, é considerada um marco fundador dessa diplomacia promovida pela ciência não governamental.
Mas afinal o que significa o direito...de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam para um cientista? Significa algo diferente para físicos, ecologistas, químicos e psicólogos? Que conhecimento específico podem os cientistas aportar para a definição desse direito? Essas perguntas vêm sendo feitas há vários anos pelas comunidades associadas à coalizão da AAAS. São permanentemente oportunas e necessárias: a ciência pode ajudar a assegurar os direitos humanos, mas “trabalhar em direitos humanos é inerentemente político e cientistas frequentemente se irritam quando se adicionam camadas de interpretação política aos seus resultados básicos objetivos” [VIII]. Mas é necessário vencer essa irritação e não temer as camadas políticas, pois avanços da ciência também ameaçam os direitos humanos. Basta passear pela revista Science Engineering Ethics. Escolho um comentário de Stephen Marks da Harvard School of Public Health [IX].
“Muitas ameaças dos avanços da ciência aos direitos humanos, que foram identificados no passado como potenciais tornaram-se reais hoje em dia, como a invasão da privacidade por gravações eletrônicas ou o controle sobre a autonomia individual através de progressos na genética e neurociência. Esse comentário conclui por apelar a um maior engajamento de cientistas e engenheiros em parcerias com ativistas de direitos humanos nas traduções de pronunciamentos normativos em definições de políticas e intervenções de planejamento.”
[I] https://www.aaas.org/program/science-human-rights-coalition
[II] https://www.aaas.org/page/science-and-human-rights-select-annotated-bibliography
[III] https://www.internationalhrnetwork.org/
[IV] https://www.scholarsatrisk.org/
[V] https://www.humboldt-foundation.de/web/philipp-schwartz-initiative-en.html
[VI] http://www.sciencediplomacy.org/
[VII] https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/peter-schulz/nova-estreia-em-pugwash-60-anos-depois
[VIII] https://scienceprogress.org/2008/10/science-secures-human-rights/
[IX] https://link.springer.com/article/10.1007%2Fs11948-014-9518-z