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Dando voz à criança pequena sobre seus direitos

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ReproduçãoEliane Giacheto Saravali é docente do Departamento de Psicologia da Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Marília, São Paulo.


 

 

Princípio X - Direito a crescer dentro de um espírito de solidariedade, compreensão, amizade e justiça entre os povos. A criança deve ser protegida contra as práticas que possam fomentar a discriminação racial, religiosa, ou de qualquer outra índole. Deve ser educada dentro de um espírito de compreensão, tolerância, amizade entre os povos, paz e fraternidade universais e com plena consciência de que deve consagrar suas energias e aptidões ao serviço de seus semelhantes.

(Declaração Universal dos Direitos da Criança)


Pensar uma escola em que aspectos centrais da convivência e do estabelecimento das relações possíveis entre os homens não sejam, de alguma forma, contemplados ou abordados, é inconcebível para os dias atuais. Sonhar e almejar uma sociedade mais justa, igualitária e menos excludente implica pensar uma escola nos mesmos moldes. Do contrário, como acreditar que os alunos de hoje serão adultos diferentes amanhã?

Garantir direitos específicos e iguais a diferentes cidadãos é uma tarefa árdua que transcede as legislações, as declarações e os documentos assinados, embora, tais conquistas sejam sim um passo muito importante. Mas, na formação do cidadão, precisamos pensar que, para além das leis ou a partir delas, queremos homens que respeitem, incluam e não segreguem.

Pensar na questão dos direitos humanos e, em específico, nos direitos das crianças, nos remete, inicialmente, àquilo que temos concretizado em forma de tratados, documentos e legislações. Podemos destacar duas importantes conquistas nesse sentido: a Declaração Universal dos Direitos das Crianças e o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. São documentos importantes que nos mostram como devemos tratar as especificidades infantis, garantindo aos pequenos condições de crescimento e desenvolvimento.

A epistemologia de Jean Piaget (1896-1980) teve por objetivo estudar como as pessoas adquirem o conhecimento e, nesse sentido, como ocorre a passagem de um nível de conhecimento mais elementar para outro nível mais avançado. Os resultados desta busca apontam para a defesa da construção do conhecimento. Essa construção é individual e consiste em reelaborações e reorganizações internas que realizamos a partir de nossas interações com o meio.

Em mais de seis décadas de pesquisa, Piaget investigou e demonstrou essa construção e evolução no que se refere a diferentes noções como, por exemplo, número, espaço, tempo, causalidade e diversos temas, sobretudo relacionados ao pensamento físico e lógico-matemático. Coube a seus seguidores (DELVAL, 2013, 2002) explorarem as construções referentes à compreensão de objetos de conhecimentos sociais, inclusive, a compreensão que crianças possuem sobre os próprios direitos (DELVAL; PADILLA, 1997).

Nestas pesquisas específicas sobre os direitos das crianças, desenvolvidas, também, no contexto brasileiro (SARAVALI, 1999; BARROSO, 2000, SILVA, 2017)  podemos acompanhar como as crianças e os adolescentes, interpretam e compreendem os seus direitos. São importantes estudos que dão voz aos personagens principais, permitindo que acompanhemos suas crenças em diferentes situações envolvendo seus direitos. Os resultados destes estudos indicam que as crianças desconhecem a violação de direito apresentada em situações hipotéticas, bem como não conseguem propor soluções para a resolução dos problemas apresentados.

Os pequenos pouco sabem dos seus direitos, sequer conseguem distinguir direitos de deveres; justificam atitudes autoritárias do adulto pelas ações inadequadas das crianças, assim como não são capazes de encontrar soluções adequadas para a resolução de problemas que envolvam a violação dos seus direitos. Em algumas situações, as crianças chegam a vislumbrar as injustiças, mas como não têm conhecimento dos seus direitos, não são capazes de identificá-los, nem de estabelecer conexões destes com seu desrespeito.

A partir destes dados, julgamos interessante observar a posição das crianças neste processo, ou seja, se os pequenos desconhecem seus direitos, como poderão reinvindicá-los ou mesmo proteger-se? Qual seria então o papel da escola nesta discussão?
Temos visto, em muitos materiais utilizados pelas escolas, que essa temática, quando faz parte do cotidiano dos alunos, é tratada como uma grande lista de informações a ser memorizada ou pela qual os alunos passarão rapidamente e superficialmente. Isso será inócuo.

Uma intervenção pedagógica, coerente com os processos percorridos pelas crianças, necessita balizar as atividades e interações de tal forma que aos pequenos sejam dadas reais oportunidades de conhecerem seus direitos, pensarem sobre eles, coordenarem diferentes aspectos envolvidos em situações de respeito e desrespeito, entre tantas outras reflexões e ações.   Compreender os direitos e poder reinvindicá-los, exercê-los e proteger-se não significa apenas ter contato com eles, memorizando-os e repetindo-os.  O conhecimento é adquirido por meio de uma construção e reelaboração individual.

É preciso propor leituras nas quais as crianças possam vislumbrar e debater sobre condições infantis diferentes em nossa sociedade; realizar pesquisas sobre isso. Os alunos devem assistir a filmes, desenhar e produzir textos a partir de situações envolvendo o desrespeito; refletindo sobre as consequências das diferentes ações do homem.

Ouvir músicas que tragam aspectos desta temática, entrevistar pessoas que estejam engajadas em ações específicas, debater com os colegas sobre o que existe em seu bairro, sua cidade, no país são, também, ações importantes. E, claro, conhecer as leis, tendo acesso àquilo que possui um caráter informativo.

Temos percebido que ao promover um trabalho em sala de aula, nestas condições, alteramos o padrão de respostas das crianças que passam assim a conhecer e a mencionar seus direitos.

O direito da criança passa por seu reconhecimento como sujeito, mas também pela compreensão das ideias prévias construídas por ela e as dificuldades inerentes a essa construção, bem como a elaboração de atividades no contexto educativo que permitam o avanço destas concepções e a reflexão sobre os diferentes assuntos abordados. Apesar de serem incapazes de compreender certos conteúdos é importante que as crianças tomem contato com eles, reflitam, ouçam as opiniões de seus pares, entrando em desequilíbrio com suas próprias ideias, pois só assim poderão chegar um dia a compreendê-los.

A educação escolar deve contribuir para a busca de formas mais adequadas para garantir o respeito aos direitos das crianças, propiciando a conscientização dos próprios sujeitos, pois ao conhecê-los é mais provável que os pequenos possam saber se proteger.


Referências

BARROSO, L. M. S. As ideias das crianças e adolescentes sobre seus direitos: um estudo evolutivo à luz da teoria piagetiana. 2000. 327f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000.

DELVAL, J.; PADILLA, M.L. El desarrollo del conocimiento sobre la sociedad. 1997 (mimeo).

DELVAL, J. Introdução à prática do método clínico: descobrindo o pensamento da criança. Tradução de Fátima Murad. Porto Alegre: Artmed, 2002.

DELVAL, J. El descubrimiento del mundo economico por niños y adolescentes. Madrid: Ediciones Morata, 2013.

SARAVALI, E. G. As idéias das crianças sobre seus direitos: a construção do conhecimento social numa perspectiva piagetiana. Dissertação (mestrado em educação) - Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 1999.

SILVA, Camila Fernanda da. A construção da noção de direito em alunos do 3º ano do ensino fundamental: uma pesquisa-ação na perspectiva piagetiana . 277 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Filosofia e Ciências, Marília, 2017.

 

 

 

 

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