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Direitos Humanos para os agentes da força, também!

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Foto: DivulgaçãoSusana Durão é professora do Departamento de Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

Artigo III - Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança”.

 

(Declaração Universal dos Direitos Humanos)

 

Falar de Direitos Humanos implica falar do “direito à vida, à liberdade e segurança pessoal” de todo e qualquer um [1]. Assim, somos obrigados a reconhecer e garantir Direitos Humanos para os agentes da força. Estou longe de ser a primeira a dizê-lo. Como afirmou Ricardo Balestreri em seu livro Direitos Humanos, Coisa de Polícia, “mais do que homo faber, os policiais são homo humanus” [2]. Mas para o direito à vida se efetuar é preciso criar a sensibilidade e obrigação coletiva, legal e cívica de não matar. Como confiar que vivemos em uma democracia se a ameaça de morte e sua execução podem ser exercidas inconsequentemente? Como viver em uma democracia na qual os mais pobres, sejam moradores de favelas, envolvidos com o crime ou em profissões de segurança -- o que em geral não se pensa junto -- são alvo recorrente de persecução?

Dados estatísticos têm sugerido mapeamentos relevantes da violência homicida no Brasil. Em 2017 o Brasil atingiu o maior registro histórico de homicídio: 62.517 mortes violentas intencionais. Pela primeira vez seria superado o patamar de 30 homicídios a cada 100 mil habitantes [3]. Apesar disso, 80% desses crimes não são solucionados pelo poder público. É nessa medida que o instituto Sou da Paz defende a criação de um indicador nacional de esclarecimento de homicídios [4]. Em 2017, de acordo com levantamento do Monitor da Violência publicado pelo portal G1, 5.017 pessoas foram mortas por policiais da ativa no Brasil, representando um aumento de 19% em relação a 2016. A letalidade policial é excessiva mesmo quando comparada com países que possuem níveis de violência similares aos do Brasil. Estes e outros dados fazem com que no mais recente ranking das democracias mundiais, o Brasil figure em 56º lugar entre os 201 países analisados. A qualidade da democracia decresceu em quase todos os indicadores, acompanhada de manifestações crescentes de autocracia [5]. É da concomitante ameaça à democracia e à vida que fala este texto.

Talvez não seja do conhecimento público, mas homicídio, vingança, revanchismo, aplicações cruéis de castigos e demissão “por justa causa” fazem parte do imaginário de quem trabalha no seio das forças de segurança e em ambientes laborais que envolvem a proteção privada, como a vigilância. Não quero com isso dizer que os esforços de regulação e de profissionalização não estão em marcha. O trabalho de mudança de diversas corporações policiais estaduais e associações profissionais e da FENAVIST, SESVESP e ABSEG no setor privado, é notável [6]. Por isso mesmo, pelos avanços conquistados, precisamos falar do lado sombrio da vida dos agentes da força neste país se pretendemos corrigi-lo.

Jamais poderei esquecer quando em 2008, na condição de pesquisadora pós-doutoranda vinculada à grande instituição que foi e sempre será o Museu Nacional (UFRJ), conheci Maurício e testemunhei seu terror [7]. Por intermédio dele tomei contato com a possibilidade de assassinato cruel no seio das polícias brasileiras. Eu conhecia o histórico e os dados da violência policial e da letalidade recorrentemente dos policiais, sobretudo nas regiões da pobreza urbana. Mas o inusitado medo de ser assassinado, revelado por Maurício, policial civil, fez-me mergulhar nessa dinâmica, voraz e banal, mas também incongruente, do uso da força contra a vida por quem e de quem tem o mandato de a proteger.

Conheci Maurício quando ele frequentava um curso de pós-graduação em segurança pública, um dos frutos do programa de governo RENAESP (Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública), oferecido pela Universidade Federal Fluminense. Enquanto conversávamos numa sala vazia do campus, ele recebeu um telefonema que mudaria sua vida. O delegado, seu superior, ameaçava-o violentamente porque Maurício havia recusado participar num esquema de falsa incriminação de dois turistas. Sua religiosidade impedia-o de entrar nesse tipo de táticas policiais. Quando o telefonema terminou concluiu que algo muito grave lhe aconteceria: ou veria sua carreira ser aniquilada, sendo transferido para unidades muito remotas do Estado, ou estava certo que o mandariam matar. Já tinha visto de tudo. Em consequência do telefonema, Maurício passou a instruir-me sobre como divulgar “o seu caso” nas agências internacionais de Direitos Humanos, como a Human Watch e a ONU, caso fosse assassinado. Fiquei em contato com ele nos anos seguintes. Maurício não morreria, mas seria efetivamente transferido e aniquilado. Sairia da polícia um ano mais tarde.

Recentemente, no decorrer de minhas pesquisas de campo no projeto internacional “Policiamento e Imaginários Urbanos: Novos formatos de segurança em cidades ao sul” (financiado pela FAPESP), reencontrei o medo de morrer entre vigilantes de segurança privada. No Brasil, pensamos frequentemente nos agentes da segurança pública ou privada como potenciais vítimas de ações violentas de assaltantes ou vingadores. Mas esquecemos que o perigo pode morar bem perto. Mais uma vez, não precisamos sair das organizações para testemunhar a ameaça de morte.

Conheci Roger num curso de vigilante no final de 2017. Este encontrava-se há vários meses a trabalhar como porteiro terceirizado em uma empresa do Estado. O supervisor propôs que fizesse o curso de vigilante para ser promovido. Mas com a promoção viria a cobrança: o trabalho de conseguir votos para o candidato a deputado estadual do gestor de segurança da empresa. Fez tudo o que “devia” até ser incapaz de prosseguir. Todo o dia sentia estar se vendendo ao que passou a chamar de “milícia política”. Usando de um estilo teatral, e fazendo uso livre das redes sociais, falou demais. Passou assim a ser considerado entre os superiores persona non grata. Vi-o ser alvo de pressões pesadas e receber diversas ameaças. Temendo pela facilidade de ser executado, Roger começou finalmente a perceber como negociar um posto de trabalho por apoio político podia sair-lhe caro. Foi através da sua experiência de vida, e certamente influenciado por conversas que tivemos, que Roger reconsiderou o que sempre lhe pareceu natural, a ele e a muitos vigilantes desejosos de exercer a força e a violência de que são alvo -- “bandido bom (não) é bandido morto”.

Temer pela vida no ambiente da segurança no Brasil não é infundado. Esse medo não é apenas alimentado por uma série de problemas associados ao exercício do policiamento e vigilância em sociedades violentas. Os estranhos entrelaçamentos entre o campo da segurança pública e privada e a política também ajudam a entender, aprofundadamente, o temor entre policiais e vigilantes. Acompanhando Roger e muitos outros vigilantes percebi que em anos eleitorais, como este, as empresas são em geral participantes ativas na política. Em grandes empresas do Estado onde o serviço de segurança é terceirizado, gestores se associam a candidatos estaduais e federais que passam a ser conhecidos internamente como “candidatos dos vigilantes”. Esta combinação entre setor público e privado abre o apetite a candidatos que anseiam pelo controlo de mercados eleitorais. Milhares de postos de vigilantes podem significar para eles milhares de votos, os necessários para se eleger como deputados também vinculados a cidades ou a grandes regiões urbanas.

Mesmo antes da eleição já corre solta a troca de vagas de empregos e promoções de uns, para quem manifesta e se envolve no apoio político, acompanhada da demissão ou despromoção de outros, dos que ficam de fora dos conluios políticos. Esse apoio é organizado e dinâmico e requer trabalho: os vigilantes-condutores da confiança dos gestores circulam pelos postos para angariar votos ou intimidar os trabalhadores renitentes; é promovida a criação de grupos de WhatsApp de vigilantes associados à campanha do político elegível; os trabalhadores são pressionados a participar em reuniões políticas mensais do partido do candidato, fazendo depender dessa participação recompensas ou castigos laborais. Do lado de fora, alguns desses vigilantes se transformam em cabos eleitorais, sendo pagos para distribuir panfletos e conquistar os votos dos vizinhos de bairro; outros apostam na proximidade conquistada junto aos candidatos para catapultar, nos dois anos subsequentes, apoio partidário e financeiro a candidaturas a vereadores na política local.

Nada disto é perceptível pelos tribunais eleitorais ou por entidades de fiscalização das empresas e trabalho vigilante, como a Polícia Federal. Foi acompanhando e penetrando o mundo dos assalariados pobres do Brasil, que transitam entre empregos CLT precários, bicos, trabalho temporário, desemprego, empréstimos formais e informais para conseguir pagar contas mínimas do mês, que percebi a relação entre as mais diversas formas de violência social, econômica e política. Mas entendi também a tentação de vigilantes pobres em aderir e se envolver nesse obscuro intercâmbio entre a micropolítica pelo trabalho (o anseio por usufruir de pelo menos um período de trabalho assalariado) e o microtrabalho na política (esse “trabalho” que se reverte em exercer sobre os outros uma violência política que é exercida sobre eles).

Lembro que neste caso falamos de trabalhadores, assalariados pobres, mas vigilantes. O seu acesso a armas e ao seu exercício da força depende estritamente da realização de um curso inicial genérico de 200 horas e de periódicas, mas muito limitadas, reciclagens. Em ano eleitoral, nas maiores empresas do país, lidar com o uso legítimo e profissional da força vigilante pode ser preterido pelo engajamento tenaz do uso ilegítimo da violência política. Num ambiente de trabalho onde os vigilantes são alvo de vigilância e deste tipo de pressão, aliada ao comprometimento da sua situação laboral, o que se entende por liberdade cívica e humana fica irremediavelmente comprometido.

O que vos relato é um dos capítulos das “democracias violentas”, como lhe chamam Goldstein e Arias. Para estes autores a violência “provém de múltiplas fontes, transforma tudo o que toca e configura a vida cotidiana e o funcionamento da governança de várias maneiras” [8]. Com base nessa visão da violência como parte da democracia brasileira, o objetivo deste texto foi discutir empiricamente essas categorias -- violência e democracia – aliadas às múltiplas inseguranças e medo de morte expressas na vida e cotidianos de policiais e vigilantes.

Se queremos substantivar a discussão sobre violência em democracia, cuidemos de não sucumbir a um olhar uniforme sobre policiais e vigilantes. Será mais útil entender como as hierarquias e as desigualdades, tão nefastas no Brasil, reproduzem violências plurais no seio das próprias instituições. Isso é particularmente grave se pensarmos que das forças de segurança é suposto surgir o preparo para lidar com os cidadãos e a profissionalização no âmbito da proteção de vidas e do patrimônio.

 


 

[1] Artº III da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ONU, 2009 [Visualizado em 11/09/2018].

[2] Balestreri, Ricardo Brisola. Direitos Humanos: Coisa de Polícia. Passo fundo, RS, CAPEC, Paster Editora, 1998.

[3] Atlas da Violência, IPEA e Forum Brasileiro de Segurança Pública, 2018. [Visualizado em 11/09/2018].

[4] http://soudapaz.org/upload/pdf/index_isdp_web.pdf. [Visualizado em 11/09/2018].

[5] V-Dem Institute. Varieties of Democracy:  [Visualizado em 11/09/2018].

[6] FENAVIST - Federação Nacional das Empresas de Segurança e Transporte de Valores; SESVESP - Sindicato das Empresas de Segurança Privada, Segurança Eletrônica e Cursos de Formação do Estado de São Paulo; ABSEG - Associação Brasileira de Profissionais de Segurança.

[7] Por motivos de ética profissional, proteção dos informantes e da autora, todos os nomes são fictícios e as empresas e regiões de atuação não reveladas.

[8] Goldstein, Daniel M. & Enrique Desmond Arias, Violent Democracies in Latin America, Durham: Duke University Press, 2010, p. 6.
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