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A liberdade religiosa como direito à transcendência

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Foto: DivulgaçãoRui Luis Rodrigues é professor de História Moderna no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Estuda a obra de Erasmo de Roterdã.

“Todo ser humano tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, em público ou em particular”.
( Declaração Universal dos Direitos Humanos)


– I –

Encontramo-nos na situação, impensável há dez anos, em que é preciso reafirmar valores e convicções que julgávamos definitivamente estabelecidos. De repente, nesse nevoeiro da chamada “pós-modernidade” com seus desdobramentos quase nunca claros, o que antes era óbvio deixou de sê-lo.

Para iniciarmos nossa reflexão, basta pensarmos no fato de que a própria ideia de que os seres humanos possuem direitos considerados inalienáveis passou a ser estranha para muita gente – e isso no âmbito mesmo da sociedade ocidental onde a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi gestada como resposta à barbárie perpetrada não apenas pelo totalitarismo fascista, mas também por outras instâncias que operaram, em diferentes contextos, formas de degradação do ser humano.

A lição deveria ter sido aprendida. Os fatos permanecem, patentes, diante de nossa memória coletiva: Auschwitz, os relatos tétricos sobre os gulag stalinistas, o genocídio de que foram vítimas os armênios, as violências étnicas em diferentes partes do mundo que, não raramente, incluíram violência sexual, a precarização contínua das condições de vida do povo palestino, os preconceitos contra as minorias, as múltiplas formas pelas quais regimes ditatoriais impuseram não apenas limitações brutais à liberdade humana, mas realizaram a própria desumanização de milhares e milhares de pessoas através da tortura. Infelizmente, essa lista está longe de ser exaustiva; e, para nossa maior consternação, boa parte dela se concretizou após a decisão memorável das Nações Unidas de exarar, em nome dos países que a compõem, uma Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Mais assustador, talvez, do que perceber a ocorrência insistente desses ataques aos direitos que, supomos, teria ficado claro todos os seres humanos possuírem, é perceber a indiferença para com o próprio tema dos direitos humanos por parte de pessoas que, até por razões de lógica e de formação civilizacional, deveriam defender esse ideário. De repente, tornou-se aceitável manifestar, nesse ambiente líquido e plurifacetado das redes sociais, gestos de intolerância, crenças que excluem e desumanizam seres humanos, agendas que, em nome de uma pretensa “segurança”, defendem o raciocínio torto e infeliz de que “direitos humanos” deveriam ser estendidos apenas a “humanos direitos” – e com isso, na superficialidade e ignorância que caracteriza boa parte dos discursos disseminados por essas novíssimas mídias, as pessoas não percebem que operam uma distinção totalmente infundada e arbitrária entre aqueles que são, apenas, seres humanos e cujos direitos são-lhes inalienáveis apenas e tão somente por causa de sua humanidade. Será demais lembrar, nesse contexto, que na base da barbárie nazista – esse símbolo que permanece, e deverá permanecer enquanto mantivermos memória, como ícone do quão criminoso o ser humano pode se tornar na intolerância para com seu próximo – estava a ideia de que, ao fim e ao cabo, aqueles judeus que eram presos e deportados eram “menos do que humanos”? Será difícil perceber que, para aqueles vizinhos que denunciavam às autoridades nazistas os judeus porventura escondidos na casa ao lado, tal atitude justificava-se porque esses não seriam “humanos direitos”?

Parece-me que, em termos globais, estamos numa encruzilhada decisiva. Numerosos fatores têm produzido em diferentes partes do mundo a relativização desse patrimônio que tão arduamente construímos; esse patrimônio que supõe a igualdade plena de todos os seres humanos e que defende, para o conjunto da humanidade, uma pletora de direitos cuja supressão e cancelamento pode conduzir a níveis impensáveis de violência e de barbárie. Está posta, portanto, para todos nós, a necessidade de lutarmos pela aplicação de políticas que garantam, das formas mais amplas possíveis, o usufruto desses direitos por todos os seres humanos.
 

– II –

A razão pela qual se considerou necessário assegurar, na Declaração, esse direito à liberdade religiosa é relativamente óbvia: em poucas áreas que não o campo religioso se manifestaram tão consistentemente, ao longo da história, a intransigência e a intolerância. Lidando sempre com as convicções mais profundas dos seres humanos, as religiões foram, por demais vezes, fonte de discriminação e de violência. Isso explica por que, na própria Declaração Universal dos Direitos Humanos, a expressão “religião” aparece diversas vezes em contextos que chamarei “negativos”, ou seja, onde a menção não tem como finalidade a referência à liberdade religiosa, mas aos entraves que a religião pode gerar à plena vivência dos direitos humanos. Assim, o Artigo 2º. da Declaração estabelece que ninguém pode ser excluído de quaisquer direitos e liberdades por força de alguma distinção em matéria religiosa; o Artigo 16º. insiste que, considerada a expressa anuência dos nubentes, nenhuma barreira ao direito humano de casar-se pode advir de questões de fundo religioso; e o Artigo 26º. declara que a educação deve ter, entre suas finalidades, o fomento da compreensão, tolerância e amizade entre nações e grupos raciais ou religiosos. Para os idealizadores da Declaração estava claro que as convicções religiosas podiam se tornar, com muita facilidade, motivos para a segregação, a discriminação e, no limite, a violência.

Mas esse risco, de cuja plausibilidade a história presta tanto testemunho, não excluía, para os autores e signatários desse documento, a importância dessa liberdade específica. É em função dessa importância que se julgou necessário assegurar esse direito como um dos direitos fundamentais dos seres humanos.

O tema “religião” é tão complexo quanto o vocábulo que usamos para defini-lo. “Religião” é um conceito cuja construção cultural deve muito às sociedades ocidentais, desde as origens dessas sociedades na cultura latina. O termo romano religio, que nomeava a precisão e escrupulosidade em relação às práticas de culto e à memória dos ancestrais, passou a ser usado para a caracterização de diferentes sistemas de crença e de interpretação do mundo. [1] Não nos cabe, aqui, discutir a pertinência ou não desse conceito para cosmologias desenvolvidas fora desse Ocidente onde o termo acabou formatado. Basta-nos considerar que, de uma forma ou de outra, a palavra serve para fazer referência a um fato incontornável: em toda parte os seres humanos desenvolveram formas de interpretar o mundo e de compreender seu próprio lugar nele; em toda parte os seres humanos depositaram, nesses sistemas de crença, de preservação da herança dos seus antepassados ou de filosofias de existência, suas convicções mais íntimas e mais candentes. Nesse sentido, talvez proceda a definição de “religião” surgida numa das vertentes do cristianismo ocidental: para o luterano Paul Tillich, a fé religiosa seria aquilo que expressa a “preocupação suprema” do ser humano, aquilo que o move mais profundamente. [2] Não se trata de encontrar uma dimensão “essencial” que daria forma e sentido a todas as religiões (essa foi a ambição da antiga fenomenologia das religiões; uma perspectiva que conserva valor para os estudos teológicos, mas de pouca utilidade para a história ou a antropologia); [3] a questão é simplesmente reconhecer que uma ação básica dos seres humanos, a de interpretar a si mesmo e ao mundo, não poucas vezes tem assumido formas que podemos chamar de religiosas.
 

– III –

Se as religiões lidam com as convicções mais profundas dos seres humanos, mobilizando o que nos é mais caro (tradições ancestrais, heranças afetivas, expectativas para o presente e para o futuro); se elas desempenham, para um grande número de pessoas, um papel fundamental na compreensão do mundo e na própria aventura, individual, mas também comunitária, de autocompreensão, é de se crer que sua importância – e seu caráter inalienável enquanto direito – estejam estabelecidos. Na expressão religiosa o ser humano encontra condições para se autotranscender, para ir além de si mesmo. Essa transcendência que a religião torna possível não está condicionada à crença num Outro transcendente, sugerida por diversas religiões; mesmo naquelas que não estão ligadas à noção de um sagrado transcendente a possibilidade de transcendência persiste, porque continua sendo possível que o ser humano se mova para além de si, na direção das outras pessoas. Nesse sentido a atitude religiosa ensina algo, mesmo àqueles que não professam qualquer religião: a identificação de uma “preocupação suprema” mostra que não conseguimos viver apenas no círculo restrito de nosso self; precisamos aprender os caminhos que nos conduzam para fora de nós e facilitem nossas ligações com a comunidade humana.

A liberdade religiosa é, portanto, um direito à transcendência. Dado o enraizamento profundo dessa experiência humana, a supressão dessa liberdade tem consequências funestas. Vedar o exercício da liberdade religiosa na forma de práticas de devoção, experiências de culto ou rememoração e perpetuação de tradições constitui aquilo que já foi denominado espoliação antropológica. “A pobreza africana é uma pobreza antropológica”, escreveu o teólogo camaronês Engelbert Mveng, querendo significar com isso que a exploração ocidental na África privou os africanos não apenas de melhores condições socioeconômicas pela redução à pobreza material, mas espoliou-os também de suas tradições ancestrais e de suas cosmovisões específicas ao forçar seu enquadramento em sistemas religiosos alienígenas; essa violência, dirigida contra a própria “ipseidade” desses povos, se reproduz cada vez que a liberdade fundamental de se cultivar as ligações com nossas próprias fontes de compreensão do mundo é cerceada. [4]

Alguns exemplos contemporâneos deveriam nos encher os olhos de lágrimas. Em páginas repletas de depoimentos tocantes, o jornalista francês Sébastien de Courtois narra o que ele chama de “o crepúsculo dos cristãos do Oriente”: como o avanço do radicalismo islâmico tem, nos últimos anos, extirpado violentamente da Síria, da Turquia, do Líbano e do Iraque as tradições de comunidades cristãs bi-milenares. [5] Nem a oposição de líderes islâmicos esclarecidos de todo o mundo, nem os belos e significativos diálogos mantidos há décadas entre muçulmanos e cristãos de diferentes confissões têm sido suficientes para impedir essa violência, conduzida por pessoas que, infelizmente, amparam suas convicções religiosas em fuzis e, assim empoderadas, dão azo à sua intolerância. [6]

Em nosso próprio país, nos últimos anos, foram documentadas numerosas ocorrências de discriminação e violência contra praticantes de religiões de matriz africana. Somente no Rio de Janeiro, em 2016, mais de 70% dos 1.014 casos documentados pela Comissão Estadual de Combate à Intolerância Religiosa eram casos de violência contra fiéis de religiões como Candomblé e Umbanda e incluíam depredação de locais sagrados e de objetos de culto; em sua grande maioria, esses atos foram perpetrados por pessoas ligadas a confissões cristãs-evangélicas. [7] Também aqui, como no caso das relações entre cristãos e muçulmanos, houve vozes sensatas que se levantaram contra esse abuso: a direção nacional do Conic (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, que congrega em sua maioria denominações protestantes brasileiras chamadas “tradicionais”, ou seja, que não pertencem às tradições pentecostais e carismáticas) criou um Fundo de Solidariedade para o Enfrentamento de Violências Religiosas; e uma comunidade luterana da cidade do Rio de Janeiro chegou a coletar doze mil reais para a reconstrução de um terreiro de candomblé que sofreu oito tentativas de destruição que incluíram, em 2014, um incêndio que destruiu parcialmente as instalações. [8]

Mas as religiões de matriz africana não sofrem somente esses ataques. Outras formas de violência são mais persistentes, mais insidiosas e frequentemente menos percebidas. Há que considerar, por exemplo, a violência simbólica – efetiva espoliação antropológica – a que são submetidas crianças de famílias candomblecistas em escolas pretensamente laicas, mas onde se ministra, muitas vezes sub-repticiamente, um ensino religioso de caráter cristão. Numa tese de doutorado defendida em 2016 no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, o professor e antropólogo Milton Silva dos Santos realizou uma brilhante análise da inferiorização a que são submetidas as religiões de matriz africana nos materiais didáticos de ensino religioso eventualmente empregados nas escolas públicas. Noutras palavras, mesmo quando consideradas como expressões válidas, essas religiões sofrem intensamente com processos inadequados de tradução simbólica e cultural. [9]

Em tempos como os que vivemos atualmente, dentro e fora do Brasil, nos quais a intolerância parece assumir novo ímpeto, ousando até mesmo vestir-se de roupagens velhas e odiosas como os trapos fedorentos do fascismo, defender os direitos humanos e seu caráter amplo e radical tornou-se item obrigatório na agenda de quem ainda preza os valores da liberdade e da democracia. O direito à livre expressão das crenças religiosas, numa atmosfera de consideração e respeito pelos que portam convicções diferentes, é um dos sinais de uma sociedade que se deixa moldar por esses valores tão fundamentais.

 


 

[1] Silva, Eliane Moura da. “História das Religiões: Algumas Questões Teóricas e Metodológicas”. In Moura, Carlos André S. et al (orgs.). Religião, Cultura e Política no Brasil: Perspectivas Históricas. (Coleção “Ideias”, 10). Campinas/SP: Unicamp/IFCH, 2011, pp. 11-24; Agnolin, Adone. História das Religiões: Perspectiva histórico-comparativa. São Paulo: Paulus, 2013.

[2] Tillich, Paul. A Era Protestante. Tradução. São Paulo: Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, 1992, pp. 16-8, 115-6, 119, 262, 280-2.

[3] Para essa perspectiva específica, ver Otto, Rudolf. O Sagrado: Os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. Tradução. São Leopoldo/Petrópolis: Sinodal-Escola Superior de Teologia (EST)/Vozes, 2007 (edição original alemã, 1917); Eliade, Mircea. História das crenças e ideias religiosas. Tradução. Rio de Janeiro: Zahar, 1983; Idem, O sagrado e o profano – A essência da religião. Tradução. São Paulo: Martins Fontes, 1999; Maçaneiro, Marcial. O labirinto sagrado: Ensaios sobre religião, psique e cultura. São Paulo: Paulus, 2011, especialmente parte I, “Coordenadas globais” (pp. 7-111). Para uma síntese crítica dessa postura, ver Agnolin, op. cit., pp. 43-9, 177-90; Silva, op. cit., pp. 11-5.

[4] Mveng, Engelbert. L’Afrique dans l’Église: paroles d’um croyant. Paris: L’Harmattan, 1985, pp. 209-10.

id="8"[5] Courtois, Sébastien de. Sur les fleuves de Babylone, nous pleurions. Le crépuscule des chrétiens d’Orient. Paris: Éditions Stock, 2015.

[6] Para o campo fértil dos diálogos entre cristãos e muçulmanos, ver em especial Salenson, Christian. Christian de Chergé: Une théologie de l’espérance. Tibhirine, 1996-2016. Montrouge: Bayard, 2016.

[7] D’Ângelo, Helô. “As origens da violência contra religiões afro-brasileiras”. Revista Cult, 21 de setembro de 2017. (último acesso em 11 de outubro de 2018).

[8] “‘Se em nome de Cristo destroem, em nome de Cristo vamos reconstruir’: evangélicos ajudam a reerguer terreiro queimado”. BBC News Brasil. (último acesso em 11 de outubro de 2018).

[9] Santos, Milton Silva dos. Religião e demanda: O fenômeno religioso em escolas públicas. Tese de Doutoramento em Antropologia Social. Campinas/SP: IFCH/Unicamp, 2016.

 

 

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