Amanda Lima é cientista política e mestra em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.
Artigo VII - “Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual proteção da lei. Todos têm direito a proteção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.”
(Declaração Universal dos Direitos Humanos)
Há muito tempo que se reconhece, no âmbito internacional, a relação entre os direitos humanos e o meio ambiente. Apesar da Declaração Universal dos Direitos Humanos não mencionar especificamente questões ambientais, em todas as declarações das Nações Unidas sobre o meio ambiente, desde a Conferência de Estocolmo em 1972, sua relação com direitos humanos é indicada. De forma recíproca, em 1989, a Comissão da ONU sobre Direitos Humanos adotou pela primeira vez uma resolução chamada “Direitos Humanos e Meio Ambiente” e, atualmente, essas resoluções são referenciadas como elementos do desenvolvimento sustentável. [1]
O conceito de desenvolvimento sustentável foi apresentado no Relatório Brundtland, “Nosso Futuro em Comum”, em 1987: o desenvolvimento capaz de atender as necessidades da geração atual, sem comprometer a capacidade das futuras gerações em atender as suas próprias necessidades. [2] Algumas gerações depois, em 2012, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, reconhecia que o progresso na promoção de desenvolvimento sustentável havia sido desigual e insuficiente para impedir, por exemplo, os riscos advindos da mudança global do clima. Decidiu-se, portanto, que seria necessário tomar medidas urgentes para acelerar a resolução das lacunas de desenvolvimento nos próximos anos, reforçando uma visão integrada das dimensões econômica, ambiental e social.
A Declaração final da Rio+20, “O Futuro Que Queremos”, [3] apresentou um caminho possível para acelerar os esforços globais. Inspirada na bem-sucedida implementação dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), que desde 2000 havia auxiliado os países em desenvolvimento a focalizar suas políticas públicas em áreas cruciais para a redução significativa da pobreza, e atenta a proximidade do último ano de vigência dos ODMs, a Declaração iniciou o processo de discussão e construção da agenda pós-2015. Após três anos de ampla consulta global e negociações multilaterais, a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável foi adotada por todos os Estados-membros das Nações Unidas às vésperas da 70ª Assembleia Geral, em setembro de 2015.
A Agenda 2030 é um plano de ação global para a realização do desenvolvimento sustentável até 2030 que interliga os direitos humanos em todos os seus componentes. Seja na sua declaração, nos meios de implementação, nos instrumentos de monitoramento ou no seu quadro de resultados, mais conhecido como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), a relação entre direitos humanos e sustentabilidade é evidente. Ao afirmar que os ODS “buscam assegurar os direitos humanos de todos”, a Agenda 2030 reforça essas interligações e traz novas oportunidades práticas para a realização de abordagens integradas com as resoluções de direitos humanos. [4]
Mas, afinal, quais são essas novas oportunidades práticas para abordagens integradas de Direitos Humanos e Sustentabilidade que a Agenda 2030 e os ODS apontam? AS novas oportunidades aparecem, principalmente, no que concerne aos meios de implementação e ao arcabouço de acompanhamento dos ODS. Nesses quesitos, a relação entre direitos humanos e sustentabilidade vai além de referências mútuas e costura uma relação intrínseca de reforço mútuo.
Uma relação de reforço mútuo é imprescindível em uma conjuntura global ameaçada pela mudança do clima. O relatório mais recente do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, em inglês) informou que já em 2030 será ultrapassada a primeira barreira estabelecida pelos países no Acordo de Paris, o aumento de 1,5 ºC na temperatura média global acima dos níveis pré-industriais. [5] Os efeitos adversos dessa mudança comprometem a capacidade de todos os países de alcançarem o desenvolvimento sustentável, mas em especial das populações marginalizadas em superarem suas vulnerabilidades. Uma perspectiva incompatível com o imperativo maior da Agenda 2030, “não deixar ninguém para trás”.
Ao reafirmar que a mudança do clima é um dos maiores desafios do nosso tempo, a Agenda 2030 indica que somente em um contexto de desenvolvimento sustentável o exercício dos direitos humanos será factível no futuro próximo. Para construir esse futuro, é preciso implementar todos os 17 ODS. E implementar todos os 17 ODS, exige encarar não apenas as muitas sinergias entre os ODS, mas também os seus trade-offs. A complexidade é tamanha que muitas vezes chega a intimidar. Afinal, a Agenda 2030 e os ODS admitem que não existem soluções prontas para os desafios complexos de hoje e clama por soluções práticas inovadoras e novas abordagens integradas – com rapidez.
O esforço internacional para fornecer recursos adequados à implementação é notável. O texto da Agenda 2030 dedica um ODS específico para o tema, o “ODS 17 – Parceria e Meios de Implementação”, que tem suas 19 metas subdividas em temáticas: Finanças, Tecnologia, Desenvolvimento de Capacidades, Comércio e Questões Sistêmicas. Além disso, cada um dos outros 16 ODS contém metas que incluem meios de implementação. Há, ainda, as ações apontadas na Agenda de Ação de Adis Abeba, [6] que é reconhecidamente a base para os países financiarem a agenda de desenvolvimento sustentável até 2030.
Os meios de implementação ofertados aos países é bastante abrangente. Um tema central nesse debate é a desagregação de dados, que enfatiza as especificidades de diferentes grupos, permitindo que políticas e intervenções focalizem melhor a população vulnerável. “Não deixar ninguém para trás” significa pôr em prática os princípios de direitos humanos de igualdade e não-discriminação. Nesse contexto, os direitos humanos tornam-se fundamentais para a própria realização da sustentabilidade até 2030.
De acordo com o “Human Rights Guide to the SDGs”, [7] 92% das 169 metas dos ODS refletem os principais instrumentos internacionais de direitos humanos. Assim sendo, as normas e os mecanismos de direitos humanos funcionam como guias orientadores dos ODS, como o baluarte contra medidas incoerentes, podendo até assegurar a responsabilização dos respectivos atores no processo de implementação dos ODS. Os mecanismos de direitos humanos, como as Revisões Periódicas Universais (UPR), podem contribuir para a identificação dessas lacunas de implementação, específicas e sistêmicas, e fornecer recomendações e orientações para superá-las. Logo, há uma oportunidade clara para abordagens integradas de Direitos Humanos e Sustentabilidade.
Em acordo com o princípio da soberania dos países, os governos nacionais são os principais responsáveis pelo acompanhamento e revisão do progresso na implementação dos ODS. No entanto, existe uma governança global para apoiar essa prestação de contas, o Fórum Político de Alto Nível (HLPF, em inglês). Sob os auspícios da Assembleia Geral e do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC, em inglês), o HLPF acontece anualmente e convida diferentes países a apresentarem seus Relatórios Nacionais Voluntários (VNR, em inglês) [8] sobre os ODS. Enquanto ainda se discutem o desenvolvimento e implementação de um quadro de indicadores globais, [9] os Relatórios são apresentados em diferentes formatos pelos países.
A prestação de contas pode ser significativamente incrementada a partir da perspectiva de direitos humanos. A falta de padronização pode ser superada na reciclagem dos relatórios nacionais de direitos humanos em VNR, visto que há ligações intrínsecas entre a maioria das metas dos ODS. Os mecanismos de acompanhamento e revisão da Agenda 2030 e dos ODS são orientados pelos princípios de responsabilização, participação e não discriminação. A ampla participação e transparência, o foco nos grupos vulneráveis e a preocupação em gerar dados de alta qualidade, acessíveis, oportunos, confiáveis e desagregados, são cruciais para a avaliação sistemática do estado e situação dos grupos em risco de serem deixados para trás.
Os ODS podem e devem aprender com os instrumentos de direitos humanos, uma vez que existe uma governança mais robusta e reativa quanto às violações de direitos humanos ocorridas no âmbito dos países. O que não significa desrespeitar o princípio da soberania dos países no cumprimento das metas dos ODS; significa sim maior responsabilização, eficiência e coerência.
[1] CORAZZA, Rosana. Direitos Humanos e meio ambiente no sistema das Nações Unidas: quais princípios para uma justiça climática? Jornal da Unicamp, 2017. Acesso em 19 mar. 2019.
[2] UN General Assembly. Report of the World Commission on Environment and Development. 1987. Acesso em 20 mar. 2019.
[3] United Nations Conference on Sustainable Development, Rio+20. The Future We Want. Acesso em 19 mar. 2019.
[4] The Danish Institute for Human Rights. Human rights and the 2030 agenda for sustainable development - lessons learned and next steps. 2018. Acesso em 19 mar. 2019.
[5] IPCC. Global warming of 1.5°C: An IPCC Special Report on the impacts of global warming of 1.5°C above pre-industrial levels and related global greenhouse gas emission pathways, in the context of strengthening the global response to the threat of climate change, sustainable development, and efforts to eradicate poverty. 2018. Acesso em 20 mar. 2019.
[6] Third International Conference on Financing for Development. Addis Ababa Action Agenda. 2015. Disponível em Acesso em 20 mar. 2019.
[7] The Danish Institute for Human Rights. Human Rights Guide to the SDGs. Acesso em 20 mar. 2019.
[8] Volunteer National Reports. Acesso em 20 mar. 2019.
[9] UNSTATS. IAEG-SDG. SDG Database. Acesso em 20 mar. 2019.