Gilberto Alexandre Sobrinho é professor de estudos de TV, vídeo e cinema do Instituto de Artes (IA) da Unicamp. Tem se dedicado aos temas da autoria e das relações entre arte e política, com publicações diversas. É também cineasta, com atuação no campo do documentário.
Artigo VII - “Todos são iguais perante a lei e, sem distinção, têm direito a igual proteção da lei. Todos têm direito a proteção igual contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.”
(Declaração Universal dos Direitos Humanos)
Abdias Nascimento (1914-2011) foi um intelectual brasileiro, cuja bandeira principal era o antirracismo e a libertação total do povo negro no Brasil. Pretendo apresentar, de forma introdutória, o seu período de formação e as linhas mestras de seu pensamento. Contador e economista de formação secundária e superior, teve participação no Exército e se notabilizou como escritor, poeta, dramaturgo, ator, pintor, ensaísta, teórico, professor e político. Sob seu nome, destinam-se vários fazeres, sejam nos circuitos artísticos, acadêmicos (norte-americanos), políticos e de militância. Abdias incansavelmente amalgamou luta, pensamento e criação artística.
Embora tenha uma obra vasta e influente para o conjunto de ações junto à população negra, seu nome ainda não figura entre as leituras de referência do campo das artes e das humanidades na academia brasileira e seu legado, atualíssimo, é importante ancoragem para as várias questões que ainda estão na pauta para a plena cidadania da população negra. As frentes de atuação de Abdias foram várias. E isso se deu, principalmente, por uma formação singular, a participação em movimentos sociais e pelo desenvolvimento multivocacional. Em sua trajetória, destacou-se, em primeiro lugar, seu berço familiar que lhe garantiu uma autoestima e o preparou para o enfrentamento das agruras de uma sociedade racista sem baixar a cabeça, ao mesmo tempo que lhe deu suporte para protagonizar, a sua maneira, sem o culto ao personalismo, o que pode ser concebido como o braço brasileiro do projeto transnacional da negritude.
Assim, podemos, primeiramente, recuperar uma referência primordial na constituição da visão de mundo desse sujeito. Refiro-me aos seus pais, José Ferreira do Nascimento e Georgina Ferreira do Nascimento (dona Josina) e às vivências de uma família negra, em Franca, interior de São Paulo, poucas décadas depois de 1888. O pai era sapateiro e sua mãe cozinheira, doceira, costureira, tinha profundo conhecimento das ervas, era conselheira de vários segmentos sociais em Franca e também ama-de-leite contratada por famílias abastadas de fazendeiros brancos, imagem forte que reverberaria no intelectual que, desde cedo, compreendeu as questões ligadas à mulher negra, no conjunto das lutas antirracistas. Eram em sete irmãos.
A herança da mãe pode ser melhor compreendida por meio da reprodução de um trecho de suas memórias, Abdias Nascimento: o griot e as muralhas: “Eu tinha um companheiro chamado Filisbino, que era muito pobre e, além disso, órfão de pai e mãe. Ninguém sabia ao certo como ele sobrevivia, pois andava todo esmolambado, tinha bicho-de-pé, e o coitado fazia o maior sacrifício para frequentar as aulas, pois não tinha a mínima condição. Havia também a mãe de um outro colega de escola, uma mulher que era o próprio espírito de porco, que, não sei por que cargas-d´ água, um certo dia encrencou com o Filisbino e, em pleno meio da rua, começou a bater no menino, aplicando-lhe uma surra tremenda, enquanto as pessoas olhavam aquilo com a maior passividade e indiferença. Mas a minha mãe, quando viu aquela situação de violência e covardia, interveio em socorro do Filisbino. Foi a primeira vez em que eu vi a minha mãe entrar em luta corporal com alguém, e ela estava uma fera. O envolvimento da minha mãe naquela situação conflituosa serviu, sobretudo, como uma lição para mim, pois ela estava ensinando para a gente que nós nunca poderíamos ficar de braços cruzados vendo uma cena daquelas, de uma criança apanhando de um adulto, uma estranha, ainda mais sendo branca, que, além da pancadaria, procurava humilhar o menino pela sua origem e pela cor da sua pele. Aquela atitude de minha mãe foi, de fato, uma lição formidável de que eu jamais esquecerei.” (Éle Semog e Abdias Nascimento, 2016)
Ainda em Franca, outro acontecimento iria marcar sua vida, algo profundamente ligado à maneira como funciona a opressão social em relação aos negros, subjugando-os como cidadão de segunda categoria. Já contador, ainda adolescente, e pronto para assumir um emprego numa fazenda, recusou-se a subir na carroceria, entre galinhas e rações, quando vieram buscá-lo, pois certamente sua chegada ao local de trabalho, todo estropeado lhe garantiria uma situação totalmente humilhante. Trata-se de uma imagem forte e que deve ser compreendida em sua espessura histórica. Pois, como o mesmo Abdias reiteradamente dizia, essa cena se repetiria em outras circunstâncias, nas quais sua cor de pele indicava um lugar de subalternidade em vários lugares. A imagem de sua mãe defendendo uma criança negra desprotegida da violência praticada por uma mulher adulta branca e a recusa à subserviência para uma acontecimento que seria o primeiro emprego importante, marcam sua formação. São cenas que levam a pensar sobre os significados da interpelação aos sujeitos de corpos racializados e suas consequências. No caso de Abdias, era um forte sentimento de segurança sobre sua condição na sociedade, mesmo com pouca idade, e uma vontade de intervir sobre a injustiça praticada contra os seus que marcaram os primeiros tempos. Portanto, ali trava-se a compreensão sobre a potência da identidade, enquanto ferramenta de defesa e libertação, pois desde cedo, o que acompanhamos na trajetória de Abdias é que é preciso ter consciência sobre as formas de opressão, justamente, para lutar contra as mesmas.
Se tais acontecimentos despertaram essa consciência que iria se canalizar para uma das biografias mais intensas em relação à defesa do negro no Brasil, suas contínuas leituras, pesquisas e projetos também iriam corroborar com o trabalho de visibilidade e compreensão de figuras histórias que o antecederam e que agregam ao espírito de sua empresa, tais como Zumbi dos Palmares, Luisa Mahin, Luis Gama, Lima Barreto, Machado de Assis entre outros. Da mesma forma, outros acontecimentos e heróis da diáspora dialogariam com seu repertório como a Revolução do Haiti ou mesmo a tríade de pensadores/ativistas norte-americanos Frederick Douglass, Booker T. Washington e W.E.B. Du Bois. Este último e sua influente publicação As almas das gente negra (1903), conjuntamente com as publicações já na idade adulta de Abdias Nascimento, coadunam sobre a integração entre vivência, educação e o pensamento sobre a identidade para a defesa da negritude.
Do ponto de vista, ainda, de uma formação que conjuga pensamento e ativismo político, os anos 1930, em São Paulo, capital, foram fundamentais para Abdias do Nascimento. Ali, ele integra o Exército, tem uma tumultuada vida que inclui prisões e milita na maior organização política da causa negra já existente: Frente Negra Brasileira. A FNB foi um grande movimento político de massas, organizado e liderado por ativistas negros, surgida e sediada em São Paulo, espalhando-se para outros estados. Sua atuação incluía educação formal, instrução musical, atividades esportivas, assistência médica e odontológica, oficinas de artes e ofícios em marcenaria, pintura, corte e costura entre outros, grupo teatral, assistência jurídica, doutrinação para os seus sócios e atividade imprensa por meio da publicação, pertencente à chamada “imprensa negra”, do jornal A voz da raça. Tem-se, assim constituída, em solo brasileiro, uma associação política, com um projeto de empoderamento e também de poder, com foco e atuação junto à população negra, visando constituir, integralmente, seus participantes, dos aparatos de cidadania, as quais negros e negras eram segregados. Foi a partir dessa vivência e conhecimento, que anos mais, tarde, em 1938, na cidade de Campinas, Abdias Nascimento, juntamente com Geraldo Campos, Augusto Sampaio, João Gualberto e Aguinaldo Camargo, organizariam o Congresso Afro-campineiro. Momento histórico de protagonismo e de alianças que definiriam seus rumos futuros.