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‘Miséria e ideologia demarcam
território em guerrilha midiática
Pesquisa premiada revela embate entre as revistas Life e O Cruzeiro

MARIA ALICE DA CRUZ

Entre os documentos jornalísticos e fotojornalísticos que mais chocaram o mundo por revelar a situação de miséria de famílias brasileiras está a foto clássica de autoria de Gordon Parks, publicada na revista norte-americana Life Magazine em 1961. Na imagem, Flávio da Silva, um garoto de 12 anos, filho de um casal de retirantes nordestinos residentes na Favela da Catacumba, no Rio de Janeiro, aparece fragilizado por uma enfermidade e sem condições de tratamento. A foto, que encerra a matéria “Uma família das favelas do Rio – A miséria, inimiga da liberdade”, feriu o brio da revista O Cruzeiro, que, tomada pelas dores nacionais, lançou um embate com a Life, publicando na edição de 7 de outubro de 1961 uma matéria-resposta sobre uma família porto-riquenha moradora em um cortiço de Nova York. No título, O Cruzeiro já anunciava o embate: “Repórter Henri Ballot descobre em Nova York um novo recorde norte-americano: MISÉRIA” (exatamente em maiúsculas e em negrito). É desse embate engendrado pela O Cruzeiro que trata a pesquisa que rendeu, no final de 2010, o Prêmio Marc Ferrez de Fotografia, da Funarte, ao professor Fernando de Tacca, do Departamento de Multimeios, Mídia e Comunicação da Unicamp.

Um verdadeiro dossiê do choque entre O Cruzeiro e a Life, a pesquisa está publicada na última edição da revista eletrônica Studium da Unicamp. Nada passou despercebido por Tacca, desde as passagens de Parks pelo Brasil (uma para revelar a miséria tropical e a segunda para repercutir a ação “benevolente” da sociedade norte-americana para com a família de Flávio) até a intenção norte-americana de mostrar uma América Latina em pleno “avanço comunista”. Um olhar sobre o comportamento do fotógrafo Parks também foi importante para saber que, apesar do interesse pela situação de Flávio e do possível vínculo afetivo depois da reportagem, ele não foi vítima da ingenuidade, mas sim um enviado da Life, a qual retratava o pensamento oficial norte-americano.

A matéria publicada em diferentes versões da Life, incluindo a doméstica e a espanhola, sobre a família Silva termina com a foto clássica de Parks mostrando o garoto “moribundo”, recebendo uma luz barroca vinda de uma janela, com olhar desesperançoso, ao lado de uma mulher envolta de velas acesas. “O que dá para entender? Ele vai morrer. Parks criou um apelo dramático sobre a ideia da morte”, analisa Tacca. As imagens do garoto, que mesmo com a saúde debilitada cuidava de seus irmãos quando os pais saíam, suscitaram “compaixão” de parte da sociedade norte-americana, a ponto de a Life Magazine criar um fundo para ajudar o tratamento de saúde do garoto, segundo Tacca. Em seguida, em nova edição de Life, os editores publicam uma seção de cartas enviadas pela classe média leitora da revista Life. O “troco” de O Cruzeiro foi o encerramento da reportagem com a imagem de um menino com o corpo coberto de baratas.

A segunda passagem de Parks pelo Brasil é registrada desde sua chegada ao país, quando compra uma casa de alvenaria para a família Silva na região de Teodora, bairro hoje conhecido como Guadalupe, até o momento em que Flávio é levado para os Estados Unidos para receber tratamento. O fotógrafo, reenviado ao Brasil para cuidar do fundo destinado à família, passa então de profissional a personagem do processo para mostrar aos colaboradores como estava sendo empregado o recurso destinado à assistência ao garoto. “Ele tem autorização dos pais de Flávio para levá-lo a um hospital nos EUA, que se compromete a abrigá-lo”, revela Tacca.

Enriquecida com fotos de radiografias, a edição da Life intitulada “O resgate de Flávio” é a gota d’água para a revista brasileira. Incomodado com a má reputação do país por causa da publicação da Life, o editor enviou o fotógrafo Henry Ballot aos Estados Unidos para que fizesse com a família porto-riquenha a mesma trajetória feita por Parks com a família de Flávio no Brasil. A ideia era ir ao centro do capitalismo para mostrar que lá também existia miséria. Para Tacca, a capacidade de realizar o mesmo trajeto editorial reafirma a revista brasileira pautada pela imagem e pelo fotojornalismo moderno. “A direção da revista opta por um espelhamento em relação à reportagem da Life e uma fórmula para se aproximar de um determinado e consagrado conteúdo visual e narrativo como lugar de confirmação do próprio nascimento de O Cruzeiro, ou seja, olhando sempre para as revistas mais notáveis do cenário internacional como referências importantes para sua própria legitimação”, avalia Tacca.

Lixo e insetos
Dentro da proposta de nivelar as narrativas da Life, Ballot encerra a reportagem de página dupla de O Cruzeiro com uma foto do garoto Ely-Samuel, um dos filhos da família Gonzalez, citado como doente, frágil, atacado por insetos e ratos, brincando entre latas de lixo. Ao lado desta imagem, com o corpo virado na mesma direção que estava Flávio na foto de Parks, Ely aparece deitado em sua cama com o corpo com três grandes baratas. “A leitura entre o lixo e as baratas não indica a condição de morte próxima, mas de uma morte lenta e dolorosa, asquerosa e peçonhenta. O texto-legenda que acompanha a foto com uma legenda diz o seguinte: No ‘apartamento’ em que vive a família Gonzalez, em Nova York, as baratas passeiam, de noite, sobre o corpo subnutrido do menino Ely-Samuel. Na testa, um esparadrapo esconde a marca de uma mordida de rato. Seria o caso, talvez, de trazê-lo ao Brasil, para uma última tentativa de salvar esta criança condenada à morte por subnutrição. Não foi fácil conseguir esta foto”, relata Tacca.

Para Tacca, por não conseguir uma foto tão expressiva como a de Flávio, as baratas tornaram-se elemento de fácil impacto negativo sobre o leitor. Na sua busca para fechar a reportagem com força imagética, Ballot leva para a sensação brutal, e não para a criação de personagem, como fez Parks. “Não há um personagem efetivo na reportagem de Ballot, tudo parece um tanto mis-em-scène, para mais do que em Parks, que tentava se anular na neutralidade da máquina. Em Ballot, não tem como não encontrar o fotógrafo como participante da cena, de alguma forma interferindo, pela crueza e talvez pela insensibilidade. Os leitores de O Cruzeiro não se sensibilizaram e não enviaram donativos para a campanha proposta por Ballot, nem a revista brasileira fez uma valoração da proposta”, ressalta Tacca em sua pesquisa. Ao contrário, a foto suscitou polêmica sobre a ética do fotojornalismo. Segundo Tacca, a própria Life publicou sobre a possível falta de escrúpulos do fotógrafo em retratar, ou em manipular, uma criança para produzir uma foto sensacionalista.

Para ajudar, em seu diário publicado em O Cruzeiro, assim como fez Parks em Life, Ballot relata que visitou muitas famílias miseráveis antes de chegar à casa de Gonzalez, que teria sido indicado por Stanley Ross, gerente do jornal El Diario de Nueva York, um periódico editado em espanhol e que atinge uma população de quase 1 milhão de porto-riquenhos. Segundo Tacca, Ballot diz que Ross declarou: “Então, veio buscar um ‘Flávio’ em Nova York? Você teve uma boa ideia. Aqui encontrará coisas bem piores do que no Rio, em matéria de favela. É bom que estes fatos sejam conhecidos. Talvez ajude a resolvê-los”.

A atitude de O Cruzeiro, em plena Guerra Fria, e num momento difícil para o Brasil, em que Jânio renunciava e João Goulart assumia o governo, é considerada ousada pelo pesquisador Tacca. “Ela enfrenta uma posição ideológica norte-americana”, reforça Tacca, levando em consideração que a matéria envolvendo a família de Flávio fazia parte de um conjunto de reportagens nas quais se pretendia defender essa ideologia americana, que indicava para um possível movimento revolucionário cubano para a América Latina. “Eu pensava que era um embate localizado entre uma reportagem da revista Life com uma reportagem que a Cruzeiro respondeu, mas na procura das informações, encontrei a matéria do Parks envolvida num processo muito maior, que são três reportagens, de um total de cinco, produzidas pela Life sobre América Latina, publicadas no mês de junho de 1961”, explica o professor.

A edição da Life, aberta com uma imagem de Fidel Castro, preparava a vinda de Kennedy ao Uruguai, na opinião de Tacca. No meio da reportagem, ilustrada com outras imagens de Fidel, há uma espécie de demonização do avanço comunista na América Latina, que acontecia muito perto da Flórida e eles não sabiam bem como lidar com aquilo ainda. Neste contexto, a reportagem de Flávio é um caso emblemático, por mostrar uma família pobre, vivendo na favela da Catacumba, como um lugar próprio para que se alimente a ideologia comunista, segundo Tacca. Na visão norte-americana, a pobreza era o campo que alimentava esse avanço ideológico. “Diante disso, eles acreditavam que era preciso criar um desenvolvimento econômico para a América Latina, como forma de combater o avanço comunista”, acrescenta Tacca.

Fidel e Julião
Na opinião de Tacca, a primeira reportagem da série com fotos de Andrew St. George denuncia o envolvimento ideológico da revista Life com as ações do Departamento de Estado dos Estados Unidos. A capa da revista é uma foto de Fidel Castro com uma expressão raivosa e uniforme militar, com o título “A crise no nosso hemisfério: reportagem fotográfica exclusiva mostra como Castro e os comunistas estão trabalhando para agarrar a América Latina”.

Na mesma edição, eles mostram um movimento popular no Brasil, liderado por Francisco Julião, fundador de uma das ligas camponesas, também retratando a ideia da atuação dos comunistas nas camadas menos favorecidas da sociedade. As fotos, segundo Tacca, mostram Julião em meio aos pobres camponeses, andando na região da Galiléia, famosa por ser o lugar onde foram fundadas as Ligas Camponesas, e quando aparece discursando diante de um retrato seu ao fundo: “... o apaixonado Julião entrega uma mensagem de esperança a seus seguidores: ‘Em Cuba’, explica, ‘o problema das terras foi resolvido porque os camponeses foram colocados no poder”.

Mensageira do pensamento oficial norte-americano, a revista Life tratou o Uruguai, país democrático na época, como um lugar perigoso por divulgar informações sobre a revolução socialista na União Soviética por meio de histórias em quadrinhos. “Eles diziam que os quadrinhos poderiam alimentar as crianças a pensar sobre o comunismo”, ressalta Tacca. As imagens escolhidas para retratar o Uruguai revelam uma manifestação de trabalhadores uruguaios em greve e o texto sempre alude a uma presença dos “Vermelhos” e de hostilidade aos EUA, segundo Tacca. “O fotógrafo Andrew St. George age como um agente secreto a serviço de um olhar de espião e fotografa pessoas que seriam estrangeiros envolvidos com o processo revolucionário, assim, uma pessoa sentada em um café, fotografada por trás, está olhando para carteiras de identidades para reconhecer os ‘agentes de Castro’, o que demonstra a cumplicidade em posar para o fotógrafo”, ressalta Tacca.

Nesse “dossiê” sobre a América Latina, a Life aborda o processo democrático da Venezuela, tratando o deputado Fabricio Ojeda como “... um novo tipo do animal político da América Latina”, por ter recebido patente simbólica de capitão honorário do exército de Cuba. A edição também aborda a oposição das forças sindicais bolivianas ao processo de desenvolvimento capitalista apoiado pelo investimento norte-americano.

No cruzamento de tantos mísseis ideológicos, a explicação para o destemor de O Cruzeiro em provocar um embate em momento tão especial pode ser explicado pela necessidade de reafirmação da publicação no mercado editorial, já que se encontrava em crise financeira na época, segundo Tacca. Com o surgimento de novas revistas brasileiras, a publicação perde público, além de uma malsucedida tentativa de lançar uma versão espanhola. “A revista fica totalmente deslocada dessa discussão, da questão da Guerra Fria, por uma visão efetiva de Chateaubriand, que pensa: Eu tenho independência para fazer isso. Eu sou um jornalista independente e posso estar fora das questões da Guerra Fria”, relata Tacca.

De acordo com o professor, esta não foi a primeira vez que O Cruzeiro reagiu à publicação de uma reportagem estrangeira sobre o Brasil. O primeiro embate ocorreu com a francesa Paris Match, em 1951, depois da publicação de questões que envolviam a cultura religiosa afrobrasileira tendo como foco uma família de Salvador (Bahia). Segundo Tacca, a ideia de embate havia sido menos explícita em relação à revista francesa, talvez pelo fato de, diferentemente do caso Flávio, ser uma história de uma família negra narrada pelas lentes de um fotógrafo branco. Já no caso de Parks, era um repórter negro contando a história de uma família brasileira branca e pobre. Segundo Tacca, a intencionalidade da revista brasileira em lembrar ao leitor a existência da reportagem da Life é clara ao publicar no correr da matéria, em pequenos boxes, as reproduções das páginas da revista norte-americana. A reafirmação constante de que existem brancos miseráveis também na “América” (referindo-se aos EUA) aparece também no editorial, assinado como “A Direção”.

A resposta à Life foi encontrada no decorrer da pesquisa sobre a reportagem da Paris Match, que deu origem ao livro Imagens do Sagrado (Editora da Unicamp, 2009), no qual Tacca esclarece o primeiro embate de O Cruzeiro com a Paris Match e mostra a história da família. O curioso, na opinião de Tacca, é que a brasileira teria se indisposto com publicações importantes na sua própria formação. “A Cruzeiro inspirou-se em revistas como a Life e Paris Match”, declara Tacca. A pesquisa, em sua opinião, traz informações importantes sobre a história do jornalismo e do fotojornalismo brasileiro.

Gordon Parks esteve outras vezes no Brasil, quando visitou a família de Flávio. Em uma das visitas, ele consultou seus pais sobre a possibilidade de levar Flávio para viver nos Estados Unidos, mas o pedido foi negado. A história do garoto foi recontada pelo fotógrafo em seu livro intitulado Flávio. O texto contém detalhes sobre seu encontro e também seu envolvimento com o menino e a família, abrangendo todas as etapas de sua estada na Favela da Catacumba, bem como a estada de Flávio nos Estados Unidos. Park também relata seu contato com o jornalista José Gallo, responsável pela produção do texto publicado na Life. As fotos da matéria de 1961 também são republicadas no livro de Parks.

Anos depois, Flávio, já curado, casou-se e teve filhos, mas quando Tacca procurou a família para dar continuidade à pesquisa, não houve qualquer sinal de sua existência. Até mesmo um e-mail de um dos irmãos não tinha mais destino. “A ideia, caso os encontre, é dar continuidade à pesquisa”, declara Tacca.

Mas, por enquanto, o foco do professor, pesquisador e fotógrafo Fernando de Tacca é a produção fotográfica na Espanha e sua relação com cinema, literatura e as artes visuais, tema de sua pesquisa de pós-doutorado que será iniciada em abril na Faculdade de Belas Artes da Universidade Complutense de Madrid, com bolsa Fapesp.

Prêmio
Ao ser contemplado com o Prêmio Marc Ferrez, depois de 20 anos de interrupção da premiação, Tacca relembra a primeira edição em 1984, quando também foi um dos ganhadores. A pesquisa premiada na época resultou em seu mestrado defendido na Unicamp.

O concurso foi criado em 1984 pela Funarte depois da implantação do Instituto Nacional de Fotografia, mas na gestão do ex-presidente Fernando Collor de Mello a fundação foi extinta. Tacca acrescenta que a área da fotografia não conseguiu se reestruturar durante muitos anos, mas ao final do governo Lula houve uma grande movimentação que resultou em um grande encontro da área em Brasília e a criação da Rede de Produtores Culturais da Fotografia do Brasil (RPCFB). Nesse contexto, o prêmio Marc Ferrer foi retomado, com esta edição de 2010, em que Tacca foi premiado.

 




 
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