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Livro revela papel de doenças
(e curas) na formação do país
Fruto de tese, obra lança luz sobre
práticas medicinais nos séculos XVI e XVII
No
crepúsculo do Renascimento, após inúmeras tentativas frustradas,
os europeus lograram atravessar os oceanos. Em aventuras até
então inimagináveis, acabaram por encontrar um continente.
Diferentes paisagens, plantas e animais passaram a povoar
o imaginário das mentes de além-mar. O que mais os intrigou
foram aqueles estranhos seres humanos em terras até então
desconhecidas.
Quando
os europeus aportaram nas Américas, encontraram povos como
os incas, tupis-guaranis e astecas, entre inúmeros outros,
que viviam no continente em um interessante – e intrigante
– caldeirão cultural. A construção das ideias pioneiras sobre
as Américas foi elaborada entre os limites do real e do imaginário,
do singelo e do suntuoso, além de permeada por uma visão ilusória
que influenciou historiadores, filósofos e romancistas até
séculos mais tarde.
Assim,
viajantes e cronistas pioneiros, imbuídos de uma concepção
humanista idealizada e onírica, enxergavam uma inocência natural
nos indígenas que, além de livres de problemas do corpo e
da alma, teriam o privilégio de viver, robustos e sem enfermidades
ou preocupações, em meio a uma natureza pródiga. Mas não foi
bem assim que tudo aconteceu.
Debruçada
sobre livros em várias bibliotecas do país, a médica e pesquisadora
Cristina Brandt Friedrich Martin Gurgel descobriu a grande
mortalidade indígena que se deu após a colonização do Brasil
e aventurou-se em escrever o livro Doenças e curas: o Brasil
nos primeiros séculos, publicado recentemente pela editora
Contexto. A obra é fruto de sua tese de doutorado “Índios,
Jesuítas e Bandeirantes. Medicinas e doenças no Brasil dos
séculos XVI e XVII”, defendida em 2009 na Faculdade de Ciências
Médicas (FCM) da Unicamp, sob orientação de Rachel Lewinsohn,
professora aposentada do Núcleo de Cirurgia e Medicina Experimental
da FCM, e de Eros Antonio de Almeida, professor do Departamento
de Clínica Médica da unidade.
O livro
consumiu três anos de pesquisa, revelando achados curiosos
sobre as grandes navegações, a medicina indígena e europeia,
o tráfico negreiro, além da atuação de jesuítas, curandeiros,
barbeiros, benzedeiras e boticários que trabalhavam no lugar
dos médicos, cujo número era muito reduzido na época.
Cristina
leva o leitor a conhecer um Brasil onde a doença teve papel
fundamental na formação do país, influenciando inclusive sua
economia. Em suas descobertas, o livro reforça a tese de que
não foi a pólvora, mas sim as doenças trazidas nos navios
europeus que venceram a guerra contra os índios.
“A ideia
de transformar a tese em um livro para que pudesse ser lido
também pelo público leigo foi da professora Rachel [Lewinsohn],
que ministrou cursos de História da Medicina por vários anos”,
esclareceu Cristina.
Segundo
alguns historiadores, o contato que se seguiu ao homem branco
teria dizimado cerca 95% da população indígena brasileira.
Isolados durante milhares de anos, os indígenas não desenvolveram
imunidade diante de vírus e bactérias originários de outros
continentes. No contato com o colonizador, a deficiência de
resposta imune Th2 para micro-organismos causou verdadeiras
tragédias entre os brasilíndios, que sucumbiam por gripes,
sarampo, disenterias e, principalmente, varíola, doença que
chegou à Europa trazida pelos sarracenos, deixando um rastro
de morte por onde passou na Idade Média.
O nome
varíola vem do latim “varius”, indicativo de doença com lesões
pontuais na pele, popularmente denominadas “bexigas”. Uma
moléstia que podia ser confundida com a varíola era a varicela.
O atual designativo popular brasileiro para varicela é catapora,
palavra tupi que significa “fogo que salta”. Este sugestivo
termo, possivelmente originado durante as grandes epidemias
coloniais, traduz o sintoma apresentado pelos brasilíndios.
Entre 1563 e 1564, os nativos morreram aos milhares da doença
– 30 mil em três meses, segundo relatos pesquisados por Cristina.
Esta epidemia não poupou nem sequer os mais fortes guerreiros.
Por outro
lado, de acordo com Cristina, os colonizadores morriam por
escorbuto, tifo e, principalmente, pela malária durante as
navegações.O escorbuto ou falta de vitamina C ocorria devido
à péssima alimentação dos marinheiros. A eles eram dados biscoitos.
A água estragava nos toneis dos navios. As roupas apodreciam
em seus corpos. Fungos, bactérias, vírus, protozoários e toda
sorte de parasitas encontraram nas embarcações meios propícios
de disseminação. Muitas vezes, a tripulação já estava adoentada
ao embarcar. Segundo Cristina, a morte dos tripulantes nos
navios, provavelmente, fez nascer a lenda dos navios fantasmas.
A
malária originou-se possivelmente na África. Para espanto
dos europeus do século XVI, os indígenas portadores de febre
jogavam-se na água na tentativa de diminuírem a temperatura
corporal. O pajé, por sua vez, tentava debelar o incômodo
sintoma por meio de uma arma poderosa, uma sabedoria milenar
transmitida por seus ancestrais – o uso de uma flora de incrível
diversidade.
Como
todos os povos nativos dos trópicos, os índios brasileiros
souberam beneficiar-se da enorme diversidade da flora e fauna
das suas terras, relata Cristina no livro. Os seus vastos
conhecimentos da vida vegetal oriundos da sua familiaridade
com as plantas capacitaram-nos a usar aquelas que possuíam
propriedades medicinais.
“Os índios
tinham suas doenças próprias, como o pian, a leishmaniose
cutânea, a doença de Chagas e a malária na forma mais branda,
combatendo-as por meio de ritos e plantas da flora local.
Eles tinham um conhecimento milenar dessa flora medicinal
e isto acabou sendo passado para os colonizadores, em especial
os jesuítas, que deixaram por escrito uma coleção de receitas
elegantemente referendadas na qual eles diziam que ‘foram
os indígenas que nos ensinaram a usar tal planta’”, explicou
Cristina.
Antídoto
A planta medicinal que mais interessou os europeus, entretanto,
foi a ipecacuanha, também conhecida como poaia, que significa
“planta de doente de estrada” – usada como purgativo e antídoto
para qualquer veneno. Contavam os anciãos que o uso da planta
havia lhes sido ensinada pela irara, animal que tinha por
hábito alimentar-se das raízes e folhas da ipecacuanha, sempre
que tivesse bebido água malsã de um pântano ou alguma água
impura. Deste modo, tomaram para si a lição e passaram a fazer
uso da planta sempre que necessário. A ipecacuanha foi uma
das primeiras plantas a ser submetida a uma pesquisa científica.
“Atualmente, sabe-se que a
emetina e a cefalina, dois alcaloides contidos na raiz da
ipecacuanha, têm grande valor farmacológico. Estes componentes
são particularmente eficazes como antidiarreicos, amebicidas,
expectorantes e antiinflamatórios. Mas, infelizmente, a planta
está ameaçada de extinção”, explicou Cristina.
Em sua pesquisa, Cristina
descobriu semelhanças entre a medicina europeia e a indígena.
Ambos os povos tinham a concepção da doença como invasora,
entretanto, se por um lado a medicina europeia da época tinha
uma inegável riqueza filosófica assentada sobre a teoria grega
das doenças, ela era mais violenta que a medicina indígena.
Para uma dor de barriga, por exemplo, os europeus usavam,
além de plantas medicinais, sangrias, purgas e vomitório.
Valiam-se também de urina e outros excrementos para suas formulações
terapêuticas.
“As
duas medicinas entendiam a doença como uma invasão. Para os
europeus, poderia ser uma praga divina. Para os indígenas,
poderia ser um demônio da floresta. A doença tinha que sair
do corpo. Mas como fazer? Tinha que vomitar, suar ou urinar
bastante para a doença sair e eles se utilizavam dessa mesma
terapêutica, só que os indígenas eram muito mais tranquilos”,
explicou Cristina.
Assim, quando por força das
circunstâncias as medicinas – europeia e indígena – se uniram,
no sentido prático não houve um choque cultural extraordinário,
mas uma complementação. Desta forma, surgiu a autêntica medicina
popular brasileira – cujos ingredientes, por terem sido difundidos
pelos bandeirantes, eram conhecidos até meados do século XIX
como “remédios de paulistas”. Esta medicina empregava não
apenas plantas medicinais nativas e as recém-adaptadas de
além-mar, mas também amuletos indígenas e rezas para os santos
católicos.
“A medicina erudita era cara
e estava longe do alcance da maioria da população. Estas práticas
curativas, híbridas da medicina popular europeia, indígena
e mais tarde africana, foram as virtuais responsáveis pelos
cuidados da saúde no Brasil não apenas dos séculos XVI e XVII,
mas até boa parte do XIX”, disse Cristina.
Voltando-se ao Brasil colonial,
a autora diz que, se de um lado os europeus foram beneficiados
pelos conhecimentos indígenas, o mesmo não se pode dizer no
sentido inverso. A vida brasilíndia estava muito longe da
aura paradisíaca a ela conferida inicialmente pelos viajantes.
Eram recorrentes saques, assassinatos, escravizações e a imposição
da fé cristã – uma mudança total de seu estilo de vida constituiu
em um ataque frontal à alma indígena, à perda de identidade.
A relação Brasil-Europa-África
alargou mais ainda o contágio e a transmissão de doenças.
A morte indígena estimulou o tráfico negreiro. Ao europeu,
a malária africana impedia a colonização da África. Não havia
nada que a medicina da época pudesse fazer, indígena, europeia
ou africana, erudita ou popular. Esta medicina foi igualmente
ineficaz para os indígenas diante da violência das doenças
infecciosas, muitas das quais trazidas pelos africanos, em
um circuito cruel e contínuo de causa e efeito. Nele, a varíola
reinou absoluta.
Os combates para a defesa
territorial aconteceram, foram violentos, alguns se estenderam
por décadas, mas todos fracassaram. As tribos aimorés, vistas
com verdadeiro horror pelos portugueses, eram uma “praga”
impedida de estabelecer-se nas terras concedidas pela Coroa.
Apesar de todo o arsenal militar, que incluía arcabuzes e
pesados canhões, invariavelmente os lusitanos precisavam partir
às pressas para não serem aniquilados sem perdão. A situação
apenas foi revertida quando a varíola grassou entre as aldeias
aimorés, deixando atrás de si um imenso vazio populacional.
“A morte, seja nos campos
de batalha ou por doenças infectocontagiosas trazidas pelos
colonizadores, destruía, de forma atroz e gradativa, povos,
tradições, línguas, costumes. As reais dimensões da mortalidade
nativa após o descobrimento talvez jamais sejam conhecidas,
já que a literatura especializada discute índices diferentes,
que variam em milhões. Foi a varíola que aniquilou os nativos,
e não o poder das armas de fogo trazidas pelos colonizadores”,
disse Cristina, cuja obra preenche uma lacuna na história
do Brasil.
Livro: Doenças
e curas: o Brasil nos primeiros séculos
Autora: Cristina Gurgel
Editora: Contexto
Preço: R$ 33,00
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