Lírica do desterro
MARIA
ALICE DA CRUZ
Ah, minha cidade
suja / de muita dor em voz baixa / de vergonhas que a família
abafa /em suas gavetas mais fundas...”. Assim
Ferreira Gullar exprime a dor do exílio em seu Poema Sujo.
O sofrimento em terras estrangeiras remeteu o poeta para
uma nova linguagem poética, distante do concretismo, do
neoconcretismo e dos poemas vinculados ao Centro Popular
de Cultura (CPC), presente nas produções anteriores ao desterro,
segundo a pesquisadora Rosane Pires Batista. Durante pesquisa
para sua tese, a socióloga pôde observar que a experiência
do exílio trouxe marcas profundas para sua construção poética.
Os itinerários pessoal e político permitiram uma transformação
tanto do ser humano José Ribamar Ferreira quanto da sua
forma poética, segundo Rosane. Para ela, a tese mostra que
é possível descortinar por meio da produção literária de
Ferreira Gullar uma memória do exílio cuja experiência evidencia
um evento-limite que foi a ditadura militar brasileira.
“Gullar passou do lirismo
ao concretismo, dos cordéis e novamente ao lirismo até chegar
à poesia construída no exílio”, acentua a pesquisadora ao
explicar que toda a busca poética também é resultado do
próprio contexto social, cultural e político vivido por
ele. A poesia, a partir dos anos 1960, passa a ser um instrumento
de conscientização política das massas, por meio da linguagem
dos cordéis, roubando o lugar do poeta de vanguarda.
Segundo a pesquisadora,
a poesia desse período está muito próxima do que Alfredo
Bosi entende como poesia social, voltada para as tensões
sociais. Esse estilo, vinculado às demandas do CPC, visava
à conscientização da classe operária – a poesia se afastou
de um rigor estético, de acordo com Rosane. “A proposta
era falar a língua do povo que ele pretendia conscientizar”,
reforça.
O rigor estético retorna
como uma preocupação para o poeta entre os anos 1964 e 1969,
durante sua participação no Grupo Opinião. A estética e
as indagações políticas se entrelaçam, por exemplo, no livro
Dentro na noite Veloz. De acordo com Rosane, os poemas contidos
no livro trazem também os impactos da experiência do exílio.
Ela observa que a poesia social participante, após o momento
em que o poeta se coloca na condição de exilado, cedeu lugar
para outro tipo de poesia, construída diante do desenraizamento
e das peculiaridades que constituem a experiência do exílio.
“Diante da derrota política e convivendo com as agruras
do desterro, a poesia de Gullar passou a ser um lugar de
refúgio e de resistência política. E, nesse momento, em
que os traumas e as dores dessa experiência parecem quase
insuportáveis, é também o momento no qual ele recupera a
lírica e amadurece sua linguagem poética, que pode ser percebido
na leitura de Poema Sujo”, reflete Rosane.
Para
a pesquisadora, o livro foi escrito num contexto em que
o poeta teme o futuro, que seria prenúncio da morte. Na
sua opinião, a poesia feita no exílio pode ser lida como
um registro rigoroso e relevante para que o leitor se lembre
da necessidade de uma reconstrução da memória da ditadura
militar brasileira com suas ações violentas e anticonstitucionais.
O Poema Sujo, segundo Rosane,
é o marco do amadurecimento poético de Gullar. “Ele foi
escrito no momento de maior terror”. Durante análise do
poema, ela constatou que a ideia frequente da presentificação
da morte e os traumas oriundos da má experiência colocam
Gullar no limite da própria vida, fazendo-o buscar na escrita
seu maior refúgio, sua casa. Em Poema Sujo, o passado vai
sendo rememorado e interpretado por meio da elaboração poética
feita no presente de forma crítica.
As obras escolhidas como
objeto de estudo por Rosane revelam as características políticas
e pessoais de Gullar. Antes de debruçar sobre os poemas
escritos durante o exílio e posteriormente sobre o exílio
(Dentro da noite veloz, Poema Sujo, Na vertigem do dia e
a autobiografia Rabo de foguete), ela analisou desde uma
obra que não consta na ontologia poética do autor, intitulada
Um pouco acima do chão, até os livros A Luta corporal, Vil
metal, Poemas concretos e neoconcretos, Romances de Cordel
para conhecer sua trajetória pessoal, política e poética.
“Sua memória pessoal implica uma história individual que
se entrelaça à história social e política de um passado
recente do Brasil e da América Latina”, enfatiza.
O contexto histórico é uma
faceta importante para a análise da obra e do itinerário
poético de Gullar. Na sua opinião, a autobiografia Rabo
de foguete pode ser lida no registro de um testemunho dos
acontecimentos vividos durante a ditadura na América Latina
e, de maneira mais específica, sobre a que se instaurou
no Brasil. “Ela evidencia os aspectos dessa violência sob
o ponto de vista, psicológico, cultural e político daqueles
que viveram esse evento. Ela é um testemunho de um sujeito
que reflete o caráter histórico, político e social do Brasil
na época de sua ditadura militar”, acrescenta.
Volta ao Brasil
O Poema Sujo também marcou a volta de Gullar a sua pátria.
De acordo com Rosane, ainda vivendo no exílio, na cidade
de Buenos Aires, Gullar leu o poema para Vinicius de Moraes,
aproveitando sua presença na capital portenha em razão de
um show. O compositor ficou muito comovido e pediu-lhe que
o gravasse em fita cassete para mostrar aos amigos no Brasil.
Em 1976, Vinicius trouxe para o Brasil a gravação de Poema
Sujo na voz de Gullar. No Rio de Janeiro, Vinicius realizou
uma sessão para um grupo de intelectuais e jornalistas.
A partir daí, muitas cópias foram feitas e as pessoas se
reuniam para ouvir o poema. “Quando ele foi publicado no
Brasil, em 1976, muitos já o conheciam”, ressalta Rosane.
O livro foi lançado no Brasil
sem a presença do poeta e vários artistas e intelectuais
se mobilizaram na tentativa de conseguir dos militares garantias
para que o Gullar voltasse ao seu país. Antes de seu retorno,
ele decidiu anunciar à imprensa, aos militares e a outros
órgãos internacionais sua volta. “Espalhar a notícia de
seu retorno tanto no Brasil como em vários outros países
era uma tentativa de conseguir manter-se vivo, entretanto,
depois de desembarcar no Rio de Janeiro, demorou apenas
um dia para que ele fosse preso e ficasse sendo interrogado
durante 72 horas”, revela. Após a prisão e o interrogatório,
o poeta conseguiu ser libertado devido à mobilização de
vários amigos.