A gente que perdeu o trem
LUIZ SUGIMOTO
Foi de medo, naturalmente, o primeiro sentimento da assistente social Maria José Eleutério diante do portão da Estação Guanabara, em fins de 2003, quando chegou para levantar o perfil da gente que vivia no meio daqueles escombros. Só Zezé teria cara e coragem para a tarefa, diziam na Unicamp, que precisava convencer os invasores a liberar o espaço onde planejou implantar um centro cultural e de inclusão social.
É verdade que Zezé não chegou desamparada. Estava com mais três assistentes sociais, Sonia Maria dos Santos, Beila Verinaldi e Kely Cristina Barbosa, as quatro sob as asas do Santão – Antonio Benedito dos Santos, vigilante popular no campus pela simpatia e pelos quatro metros quadrados de músculos. “Precisava de alguém de peso para impor limites”.
Os punks dominavam boa parte da gare metálica, enquanto os demais cubículos, inclusive do segundo prédio – o Armazém do Café –, eram ocupados por traficantes, prostitutas, viciados, andarilhos e outros de vida bandida, e também por famílias inteiras. “Exatamente aqui onde estamos [parte do armazém transformado em espaço administrativo] morava o chefe do tráfico local de drogas”.
Durante três meses, Zezé e as colegas levantaram o histórico das 70 pessoas que sobreviviam naquele ambiente degradado, abaixo da linha da miséria. “Era o fundo do poço. Contamos 27 famílias constituídas, em grande parte migrante de Minas Gerais, do Piauí e do Maranhão, que se deram mal na aventura por uma vida melhor”.
Universitários também se enfurnavam por lá para consumir drogas. Zezé, que fazia visitas domiciliares a famílias de alunos carentes ou problemáticos, reconheceu um deles logo que entrou. “Ele tentou se esconder, mas conhecendo seus pais, que estavam desesperados à sua procura, não ia deixar que se matasse. Vieram buscá-lo e hoje está recuperado, graças a Deus”.
Difícil vencer o medo. Se muitos tinham bons olhos para Zezé – a esperança de sair do buraco –, outros lhe dirigiam olhos tortos. “Os traficantes, obviamente, evitavam conversa, mas não impediam meu trabalho. Deixei claro que vinha para o bem e que o problema deles era com a polícia, não comigo. Não sofri ameaças e, no fim, acabamos por inibir o tráfico de drogas ao menos aqui dentro”.
Havia outro tipo de tráfico, no entanto, e Zezé atentou de pronto para as muitas crianças perambulando sem pai nem mãe. O raptor e sua amante, que as traziam de cidades do entorno para prostituí-las em Campinas, acabaram presos. “O casal tinha duas filhas naturais, depois enviadas para adoção. Elas brincavam catando pregos nas cinzas da fogueira da noite e, de tão sujas, pareciam sem cor. Na verdade, eram lindas, loiras de olhos azuis”.
Ainda hoje, quatro anos depois que todos tomaram outro rumo, Zezé é procurada para um cafezinho, um desabafo. “Uma senhora esteve aqui anteontem, diz que sou seu anjo da guarda. O marido, protestante, achava que Deus o colocou na estação para salvar os perdidos. Ela achava que o marido devia é trabalhar para que pudessem comer. Viviam nessa briga”.
Outro visitante assíduo é um catador de lixo reciclável, que foi atropelado junto com seu cavalo e ficou com um braço paralisado. Mas Zezé gostaria de saber da enfermeira padrão que se apaixonou por um paciente no hospital. “Ela largou filhos e casa própria para acompanhá-lo. Soube depois que o amante era traficante, passando também a se drogar e a beber. Largou as drogas, mas continuou alcoólatra. Perdi contato”.
Boa formação não livra ninguém da penumbra. Ali na Vila MacHardy, conjunto de casebres construídos para os antigos ferroviários, um ex-professor universitário procura refazer sua vida. “Por conta de desilusão amorosa, caiu na bebida e virou andarilho. Agora trabalha num escritório e admite que, não fossem as chapuletadas que demos, ainda estaria na sarjeta”.
A Estação Guanabara daria uma tese, diriam no jargão da academia. Zezé pensou nisso, mas não teria paciência para seguir as formalidades exigidas na pesquisa, buscando teorias que expliquem tudo o que tem visto na prática. “Penso, sim, em escrever essas histórias de vida. Os alunos do serviço social carecem de experiências reais, saem da faculdade imaginando um mundo cor-de-rosa”.
A reintegração
Feito o cadastramento, Zezé começou a negociar a saída dos invasores. O pedido de reintegração de posse já estava correndo, mas o juiz não a concederia sem que se desse um destino às famílias. “Várias preferiram retornar aos seus estados e conseguimos as passagens de ônibus com a Reitoria e a Prefeitura. Para outras, que tinham residência na periferia, asseguramos os caminhões para a mudança”.
Sobraram nove famílias, que receberam ajuda de custo da Unicamp para que se mantivessem em outro local enquanto era negociada a cessão de casas pela CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano) – este processo levou dois anos e era Zezé quem levava o dinheiro todo mês. “Os punks ainda resistiram, mas os três restantes no dia da reintegração, que foi pacífica, também se foram”.
Entretanto, muitas famílias também ocupavam o entorno da área assumida pela Unicamp – 9 mil do total de 113 mil metros quadrados do complexo da Estação Guanabara, onde ainda estão barracões bem maiores, a Vila MacHardy e terrenos baldios. Toda a área pertencia à Companhia Paulista de Obras e Serviços (CPOS), que depois a vendeu ao Instituto Paulista de Estudo e Pesquisa (Ipep).
Na época em que Zezé chegou, eram poucas as invasões. Até que um oportunista teve a idéia de vender lotes a meros dois mil reais, em plena área central da cidade. “Acossado, ele se mudou para a Bahia. Na negociação com a CDHU conseguimos 49 casas na periferia: nove para as famílias que restaram na nossa área e 40 para as do entorno”.
O problema estaria resolvido, mas muitos se acharam no direito de revender as casas e lotes. Sem o cercado que a CPOS prometera providenciar, o entorno foi de novo ocupado, agora por 80 famílias. “Ficou um impasse que já não cabia à Unicamp resolver. Fechamos a nossa área e colocamos vigilantes”.
Os escorpiões
Em meados de 2004, Zezé surpreendeu o pró-reitor e os colegas da Pró-Reitoria de Extensão e Assuntos Comunitários (Preac) ao anunciar que ia se instalar nos escombros da Estação Guanabara. “Pensei que, se não começássemos a ocupar o espaço, ele seria invadido novamente. Além disso, de nada adiantava ficar chorando sem olhar o defunto, tinha que ver para sentir. Éramos eu e os escorpiões”.
Numa sala remediada, onde está até hoje, Zezé acomodou-se com mesa, algumas cadeiras, telefone celular e materiais de escritório, e passou a receber as famílias invasoras do entorno. Novas histórias para escrever. Ali também eram feitas as reuniões do grupo de trabalho encarregado de definir projetos para a Guanabara.
Zezé torcia o nariz diante de idéias como da criação de um museu e de um teatro de mil lugares para apresentação inclusive de óperas. Defendia que o espaço abrigasse projetos para a comunidade. Foi na mudança de gestão na Preac que ficou decidida a criação do Centro Cultural de Inclusão e Integração Social, onde são oferecidas oficinas de capacitação profissional e atividades de cultura e lazer desde 2006.
O entorno
A área total da estação foi comprada em novembro de 2007 pelo Ipep, que pretende instalar duas escolas (de ensino fundamental e médio), uma faculdade e imóveis para moradia e comércio. Os barracões antigos e cerca de vinte casas da Vila MacHardy são tombados pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Artístico e Cultural de Campinas (Condepacc), assim como as construções assumidas pela Unicamp, que teve preservado o contrato de comodato feito com o governo estadual.
Não era sua responsabilidade, mas Zezé colaborou também na reintegração da área reinvadida do entorno. Depois de negociar prazos e caminhões com o Ipep, Zezé passou dias recebendo as famílias para agendar as mudanças, realizadas em forma de mutirão. “Quando da reintegração de fato, em janeiro desse ano, não havia mais ninguém”.
Por força do hábito, Zezé chegou a iniciar o cadastramento também dos moradores da Vila MacHardy, mas pensou melhor antes de cruzar novamente o caminho dos traficantes, que para lá se deslocaram. “Seria mexer em vespeiro. Na vila ainda vivem 36 famílias de ex-ferroviários, que em minha opinião têm direito a posse das casas ou a indenização. Ficaria feliz se o Ipep reurbanizasse o local e mantivesse esses moradores, que são a memória viva da Estação Guanabara”.