Nascidos na beira da linha
LUIZ SUGIMOTO
“Tenho minha infância vivida paralelamente aos trilhos da Mogiana, pois engatinhei e dei os primeiros passos na plataforma de Mato Seco, onde meu pai era o chefe da estação. Menino ainda, já conhecia o telégrafo e sabia trocar o bastão elétrico que controla a circulação de trens”. É um trecho do depoimento do ex-ferroviário José Geraldo Rocha Mattoso, quando se aposentou em 1º de fevereiro de 1973, escrito para um jornal dos ferroviários e que traz também um pouco da história da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro.
Assim como Mattoso, que hoje tem 81 anos, Laerte Aparecido Rigoletto, 82, e Odair Lucas Valente, 65, construíram suas vidas à beira da linha de trem. Em comum, os três lembram o início como praticantes de telégrafo, sem remuneração. Depois, como todo telegrafista, acabariam por aprender sobre circulação de trens, despacho de encomendas, manobras, e por vezes cobririam o descanso do chefe da estação, reunindo conhecimento para galgar outros postos na hierarquia da ferrovia.
“Sou de uma terceira geração de ferroviários, depois do meu avô e do meu pai. Minha esposa era telegrafista e nos conhecemos na estação de Campinas. Minha filha também entrou por concurso na ferrovia, mas foi dispensada quando a Fepasa incorporou a Mogiana. Aposentei-me na Barra Funda, em São Paulo, como chefe de divisão administrativa”, complementa Mattoso.
Também neto e filho de ferroviários, Laerte Rigoletto entrou para a Mogiana em 1943. Reclama de percalços no início da carreira por falta de apadrinhamento. “Quem tinha pais em cargos de chefia, já entrava ganhando salário, mesmo sem saber telegrafar. A morte do meu pai, na época, deve ter pesado na consciência de alguém e decidiram me remunerar, mas como mensageiro”.
Quando reivindicou a promoção como telegrafista, Rigoletto teve de se submeter a uma prova, que consistia em transcrever mensagens enviadas de um aparelho da sala vizinha. “Colocaram do outro lado três dos bons, que transmitiam em ritmo acelerado. Não errei uma palavra. A Mogiana tinha 64 telegrafistas em Campinas; não digo que fui o melhor, mas estava entre os dez”.
O ferroviário elege o telégrafo como marco do desenvolvimento do Estado de São Paulo, enquanto único meio de comunicação confiável para governo, indústria e agropecuária. “Havia o telefone, mas para falar com São Paulo, em tempo seco, levava-se três horas; chovendo, não se falava naquele dia, com lugar algum. Recebíamos maços de mensagens do correio para enviar às cidades que a Mogiana cruzava”.
Odair Valente faz parte de uma família com tradição na Mogiana. O avô foi chefe de estação nos anos 1920, fiscal de telégrafo em Campinas e tinha quatro ou cinco irmãos ferroviários. “Os filhos do meu avô, na grande maioria, abraçaram a carreira de telegrafistas, mas dos dezessete netos, apenas o mais velho e eu nos mantivemos na linha. Somos a última geração da família dentro da ferrovia”.
O auge
Valente aprendeu todos os serviços de linha na Estação Guanabara e ocupou postos administrativos na Mogiana e depois na Fepasa – que se formou com a fusão das cinco ferrovias paulistas em 1971: Paulista, Mogiana, Sorocabana, Araraquarense e São Paulo e Minas. “O único estado brasileiro que possuía estrada de ferro era São Paulo, todas as demais integravam a Rede Ferroviária Federal [RFFSA]”.
Quando a própria Fepasa foi encampada pela RFFSA, em 1998, Odair Valente já estava havia alguns anos na diretoria do Sindicato Mogiana, onde continua cuidando das relações públicas. “Apenas a Mogiana, em seu auge, tinha 24 mil funcionários. Ainda éramos 16 mil ferroviários no Estado durante o governo Mario Covas, mas hoje estamos reduzidos a três mil. Na região da Mogiana, se formos mil, é muito”.
O sindicalista recorda que a Fepasa, então rebatizada de Malha Paulista, foi a última ferrovia a ser privatizada, sendo arrematada da RFFSA pela Ferroban. “Implantou-se então um sistema perverso, com transferência e demissão de pessoal. O lema da Ferroban era esquecer o passado, pois se iniciava uma nova era. Estamos esperando a anunciada nova política de transporte ferroviário até hoje”.
O processo de privatização, segundo Valente, prosseguiu intrincado, com trechos de ferrovias passando ao controle de outras redes, de tal modo que a antiga linha da Mogiana, agora, é controlada em parte pela Ferrovia Centro-Atlântica e em parte pela América Latina Logística (ALL). “Fecharam quase todas as estações da Mogiana: Poços de Caldas, Gaxupé, Passos, Amparo, Monte Alegre do Sul e por aí afora”.
Um crime – Laerte Rigoletto considera o sucateamento das ferrovias pelo governo “um dos grandes crimes do século 20”, lembrando que a Mogiana, por exemplo, era uma das linhas mais lucrativas do país. “Chegavam até três trens de gado por semana, cada um com mil cabeças – imagine quantas carretas seriam necessárias para transportá-las. O trem de bauxita tinha 80 vagões. Havia mais de 30 vagões de petróleo. Diariamente, eram descarregados vinte vagões de milho na Maizena, em Mogi Guaçu”.
A Mogiana, lembra Rigoletto, estava eletrificando a linha e já tinha colocado postes de Mato Seco a Casa Branca. A velocidade máxima de um trem da Mogiana era de 60 a 65 km por hora. No traçado novo, de Mato Seco a Tambau, corria até a 110 km/h. “Trinta anos se passaram e tenho certeza absoluta de que nossos trens já estariam transportando cargas a 150 por hora”.
Certo dia, Rigoletto foi chamado ao gabinete do chefe de transportes da Fepasa, Rocha Leão, que queria saber o porquê da folga no horário do trem noturno que vinha de Araguari. A resposta: embora a Centro-Oeste entregasse o trem com até hora e meia de atraso, os maquinistas da Mogiana, que faziam a baldeação até São Paulo, aproveitavam o traçado bom para correr a 110 km/h, chegando no horário ou mesmo se adiantando.
“Por causa dessa explicação, o doutor me chamou de moleque e me expulsou da sala. Não acreditava que trem de bitola métrica corria a mais de cem, quando a velocidade máxima na Paulista era de noventa”, conta o ferroviário. Foi então que levou ao chefe a fita de velocímetro da locomotiva, marcando o pico de 114 km/h. “Ele não só me pediu desculpas, como negociou com a presidência as condições da minha aposentadoria”.
Histórias
Laerte Rigoletto gosta de contar histórias. Uma, particularmente trágica, foi o latrocínio que vitimou o diretor Azevedo Marques ao desembarcar na Estação da Luz. “Ele voltava de Campinas com a carta na qual se comprometia a equiparar meu salário ao do pessoal da Sorocabana, compensando minha transferência para São Paulo. Sua pasta sumiu e acabei transferido sem qualquer benefício”.
Na Capital, Rigoletto era subordinado a um funcionário que vinha pesar vagões de bauxita na Estação Guanabara para ganhar diária e viagem. Certa feita, ele acusou 30 toneladas por vagão, quando estavam faturadas 24. “O chefe, bravo, me perguntou se meus colegas da Mogiana eram burros. Respondi que o limite daquele vagão era de 24 toneladas, mas que devia estar pesando bem mais, pois tinha chovido a noite inteira – e bauxita é terra”.
Episódio pitoresco ocorreu na época dos milagres do padre Donizetti, em Tambau, quando a Mogiana se viu obrigada a oferecer até cinco viagens noturnas para dar conta dos passageiros. “Numa noite, com tanta gente que parecia aeroporto em dia de crise, o chefe da estação subiu no banco e gritou que o único jeito era viajar em gaiolas de gado. Os passageiros toparam”.
Histórias de uma vila de ferroviários
Pedro Ismael Nogueira mora há 26 anos em uma das primeiras casas da rua de acesso à Vila MacHardy – o conjunto de moradias que a Mogiana construiu para seus funcionários, do lado oposto ao da Estação Guanabara. As casinhas, que antes formavam uma paisagem lúdica, hoje estão deterioradas e cerca de trinta famílias de ex-ferroviários, que ali permanecem, tiveram também de aprender a conviver com traficantes e outros marginais. “Consegui essa casa em 1982 e ninguém mexeu com a gente até agora”.
Depois de trabalhar por um ano na Mogiana, em 1964, na estação de Poços de Ressaca, Pedro Nogueira saiu e voltou em 1976, já pela Fepasa, até se aposentar em 1996. “Antes, a vila só tinha ferroviários. A preferência para morar aqui era de quem trabalhava na emergência, cuidando da conservação da linha. Mesmo em dia de folga, quando saía de casa, precisava avisar o mestre de linha. Se houvesse um acidente e não me encontrassem, podia ser punido”.
Pedro vivia de trocar dormentes, antes de passar a ajudante geral de linha e operador de máquinas furadoras, aposentando-se como supervisor. Da equipe de emergência também fazia parte o truqueiro, que operava o guincho para desvirar vagões. “Aconteceu de eu trabalhar 44 horas sem descanso, cochilando em pé no barranco, como um elefante. Foi para desimpedir a linha de Boa Vista a Viracopos, onde um trem descarrilou arrastando dormentes e trilhos”.
Quando se aposentou, Pedro Nogueira pagava 20 reais de energia elétrica e 1 centavo de aluguel. Hoje, nem isso paga por sua casa na vila, mas vive a expectativa do destino que o Ipep dará à área. “Ninguém informa nada. Sou casado e tenho um filho maquinista, que foi demitido há um ano. Nem sei como vamos ficar”.
Elogios
Do outro lado da linha, em frente à restaurada Estação Guanabara, Nelson Garcia da Cunha mantém sua tapeçaria de veículos há 36 anos e se diz gratificado com as melhorias feitas no local. “Os moradores daqui não cansa de elogiar o esforço da Unicamp para recuperar esses prédios onde se infiltraram bandidos e andarilhos, numa imundície insuportável. Não tínhamos mais a quem recorrer”.
Nelson da Cunha afirma que deu a sua contribuição, ao manter trancado e evitar a invasão do Armazém do Café. “Quando os trens pararam, ainda mantiveram um vigia por dez anos, mas depois a estação ficou totalmente abandonada. Quando a Unicamp assumiu a área, tive autorização para guardar equipamentos no barracão. Consertei o telhado e mantive o lugar limpo. Fiquei aliviado quando devolvi o prédio. Só tenho medo da vinda do comércio ilegal, que estragaria a beleza do que foi reconstruído”.
Dos escombros surge feira de
decoração e paisagismo
Em 2005, Maria José Eleutério já contava com a colaboração do professor Marcos Tognon, assessor da Preac, e dos funcionários Dário Crispim, Clara Eli e Iara Regina. Esta equipe elaborou o projeto do Centro Cultural de Inclusão e Integração Social, que quando apresentado à Petrobras, deu a certeza de que a companhia financiaria o restauro do Armazém do Café e da gare. “Chegamos a programar a cerimônia de assinatura do convênio e realizamos a nossa primeira ação integrada com a comunidade, que foi a pintura dos tapumes por grafiteiros”, recorda Zezé.
O convênio com a Petrobras, porém, não se concretizou. Foi com verbas da Reitoria que a Coordenadora de Infra-Estrutura (Cinfra), da Prefeitura da Unicamp, ajeitou o telhado, as divisões do armazém para oficinas e atividades culturais, e construiu os banheiros públicos, com planta elaborada pela Coordenadoria de Projetos (Cproj) da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo.
Abriram-se cursos de capoeira, crochê, bordado, vendas e textos literários, entre outros, todos dirigidos prioritariamente a pessoas de baixa renda, desempregadas ou com pouca qualificação. “Recebemos 650 inscrições. Mães chegavam com filhos empencados e pedi socorro ao professor Tognon para dar conta das entrevistas e do cadastramento”, conta Zezé.
O sucesso se repetiu em 2006 e, no ano passado, computadores cedidos pela IBM viabilizaram cursos de informática e de desenho digital. “Já planejamos mais de vinte cursos profissionalizantes para este segundo semestre, como de hidráulica, elétrica, pintura, culinária, cabeleireiro, pedicure e manicure. Um banco de oportunidades disponibilizará currículos dos alunos para as empresas”.
As aulas são dadas por profissionais voluntários e por funcionários e professores da Unicamp. “Um empresário, que ministra o curso de vendas, já contratou três alunos e os demais que receberam certificado também estão empregados. Outra microempresária, que terceiriza serviços de recepcionista e de portaria, também contratou alunos e conseguiu colocação para vários outros”.
Campinas Decor
O panorama mudou bastante, mas a Estação permanecia simplesmente cercada por tapumes, servindo como abrigo de pombos. Até que, em outubro de 2007, Zezé recebeu a visita de duas elegantes senhoras pedindo para conhecer o espaço da gare. Eram Stella Tozo e Sueli Cardoso, organizadoras da Campinas Decor, bem-sucedida mostra de decoração, arquitetura e paisagismo.
“Estava incrédula. Quem exporia produtos requintados em ambiente tão deteriorado? Mas, dois dias depois, elas voltaram trazendo sua proposta para realizar ali a nova edição da feira”, lembra Zezé. Diante da promessa de um telhado novo e da reforma total da parte hidráulica e elétrica, a Preac concordou com o evento realizado de 1º de maio a 15 de junho.
A organização da feira investiu R$ 4 milhões no restauro, que obedeceu às recomendações do Condepacc para preservar as características do prédio tombado. Dos 54 ambientes criados para a mostra, muitos já foram pensados para cursos do Centro Cultural, como o salão de beleza, a cozinha, a sala multiuso, a biblioteca e a livraria, além do espaço da memória da Estação Guanabara. “Vários equipamentos e os banheiros públicos foram deixados aos alunos e visitantes”.
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