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Mas este capítulo não é sério

Abel Barros Baptista

A história do casamento de Maria Benedita é curta; e, posto Sofia a ache vulgar, vale a pena dizê-la. Fique desde já admitido que, se não fosse a epidemia das Alagoas, talvez não chegasse a haver casamento; donde se conclui que as catástrofes são úteis, e até necessárias. Sobejam exemplos; mas basta um contozinho que ouvi em criança, e que aqui lhes dou em duas linhas. Era uma vez uma choupana que ardia na estrada; a dona — um triste molambo de mulher — chorava o seu desastre, a poucos passos, sentada no chão. Senão quando, indo a passar um homem ébrio, viu o incêndio, viu a mulher, perguntou-lhe se a casa era dela.

— É minha, sim, meu senhor; é tudo o que eu possuía neste mundo.

— Dá-me então licença que acenda ali o meu charuto?

O padre que me contou isto certamente emendou o texto original, não é preciso estar embriagado para acender um charuto nas misérias alheias. Bom Padre Chagas! — chamava-se Chagas. Padre mais que bom, que assim me incutiste por muitos anos essa idéia consoladora, de que ninguém, em seu juízo, faz render o mal dos outros; não contando o respeito que aquele bêbado tinha ao princípio da propriedade — a ponto de não acender o charuto sem pedir licença à dona das ruínas. Tudo idéias consoladoras. Bom Padre Chagas!”

Machado de Assis em 1896, cinco anos depois do lançamento de Quincas Borba (Reprodução: Academia Brasileira de Letras)Eis o capítulo XCVII — todo ele! — de Quincas Borba (1891), o romance de longa elaboração que Machado de Assis publicou depois de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Presta-se fácil a exemplificar o ceticismo ou o pessimismo que décadas de tradição imputaram à obra machadiana; entretanto, algum candidato a integrar a ortodoxia atual, em lhe calhando o passo no exame de admissão, pegaria do charuto e discorreria sobre o comportamento impiedoso das elites brasileiras e a não menos impiedosa, posto obscura, crítica machadiana. É a desgraça da fortuna crítica de Machado de Assis: quando os críticos não estão ocupados a demonstrar-lhe a genuína “brasilidade”, julgam valorizá-lo como mestre no desmascaramento da mesquinhez e da maldade humana. A ironia reina, mas é vulgar: para uns, ironia moralista, que castiga o vício na dobra de uma oração subordinada; para outros, ironia ideológica, que finge agradar à classe dominante para melhor a denunciar. Mas o que se obscurece é o súbito da interrupção através da qual o “contozinho” e respectivo comentário irrompem num curso já orientado para outra finalidade. Ironicamente, com a ironia, figura fácil, obscurece-se o principal, que é o cômico.

O cômico é coisa que se apresenta e de apresentar: vive do aparecimento, súbito e inesperado, característica que partilha com os fantasmas e os sismos. Daí que, nos livros de Machado, seja antes do mais uma peripécia de composição: o capítulo que acaba de repente ou nem chega a começar, o capítulo vazio ou que sem propósito legível, o capítulo que integra a seqüência do passo que a interrompe. Brás Cubas dizia de um dos seus capítulos de meia dúzia de linhas e aliás na última delas: “Mas este capítulo não é sério.” Nenhum capítulo é sério quando o movimento da composição permite e até produz o enxerto de histórias como aquela do incêndio e do charuto. Ali, o efeito da interrupção não depende da inteligibilidade da seqüência que integra nem da inteligibilidade da história nela inserida: depende do inesperado e do despropósito. Trata-se de perceber a piada, no preciso momento do seu aparecimento, sem recordar o que ficou e sobretudo sem querer saber do que está para vir. O inesperado da interrupção torna-se cômico quando não precisa de nenhum propósito. Há, aliás, outra passagem do romance que esclarece isto. Sofia vê cair o carteiro que lhe trouxera uma carta e desata a rir. O narrador concede que o riso era inoportuno e contrastava com a noite mal dormida, o desassossego, o medo de ser difamada; mas afirma que, se leitora o não entende, é porque, “senhora minha, com certeza nunca viu cair um carteiro”. E remata: “Às vezes, nem é preciso que ele caia; outras vezes nem é sequer preciso que exista. Basta imaginá-lo ou recordá-lo. A sombra da sombra de uma lembrança grotesca projeta-se no meio da paixão mais aborrecível, e o sorriso vem às vezes à tona da cara, leve que seja — um nada.” É uma das melhores descrições do modo cômico do capítulo na estrutura dos livros de Machado.

O cômico machadiano é decerto irônico: o que através dele se diz não é alguma coisa que é necessário dizer, é o exemplo de alguma coisa que é possível dizer. E por isso também é filosófico: qualquer coisa se pode dizer, mas é sempre certa coisa em vez de outra, contra outra ou excluindo outra, estando na própria escolha do que se exclui o cerne singularizador da ficção. Voltemos ao “contozinho”. Contado para ilustrar a utilidade e a necessidade das catástrofes, o narrador retira dele outra exemplaridade, a do propósito com que o padre Chagas a contou, duplicando a piada da história com a piada do comentário. A brincadeira consiste em presumir um texto original e sugerir que o padre o redescreveu com o fito de veicular a ideia consoladora de que “ninguém, em seu juízo, faz render o mal dos outros”. Ora o padre pode ter determinado a causa da situação, mas não extirpou dela o escárnio. A bem dizer, tornou-o até mais cruel, sendo mais improvável, mais inesperado, porque alheio aos cálculos de algum sujeito. A inconsciência do bêbado acaba mais aterradora do que a suposta crueldade do sóbrio… Dir-se-ia então haver uma oposição entre o escárnio original — ou natural: “a natureza é às vezes um imenso escárnio”, escreve Brás Cubas a respeito da sua Vénus coxa — e o propósito, afinal baldado, de o redescrever de acordo com alguma explicação consoladora.

Ora o cômico machadiano abunda em explicações, porém subtrai-lhes o propósito consolador. Pelo contrário: detecta e realça discrepâncias e incongruências, acasos e acidentes, e deixa a nu a falta de finalidade. Não formam, essas explicações, uma filosofia — são genuínos despropósitos, a valorizar nessa mesma qualidade. O mais conhecido deles, a Pandora que aparece no delírio de Brás Cubas, é a paródia negra de todas as figuras providencialistas, incluindo o intelligent design: mãe e inimiga, causa o sofrimento e o desejo de viver. Os romances de Machado não se ocupam do homem brasileiro nem da “natureza humana”: são inquirições da modernidade. Inquirições dum espírito antimoderno, no sentido em que o definiu o americano Marshall Berman, num livro luminoso, All That Is Solid Melts into Air (1982): “Dir-se-ia que para ser inteiramente moderno é preciso ser antimoderno: desde os tempos de Marx e Dostoievsky até ao nosso próprio tempo, tem sido impossível agarrar e envolver as potencialidades do mundo moderno sem abominação e luta contra algumas das suas realidades mais palpáveis. Não surpreende, pois, que, como afirmou Kierkegaard, esse grande modernista antimodernista, a mais profunda seriedade moderna deva expressar-se através da ironia.” Partilhando, então, a desconfiança em relação ao progresso, ao sentido, à ciência, Machado percebe a liberdade de redescrever a vida em novas condições, mas recusa radicalmente a consolação da inteligibilidade.

O cômico é essa recusa: além de antimoderno, o cômico machadiano é antitrágico, no preciso sentido em que denuncia a presunção persistente de que o modelo trágico é o modelo adequado à inteligibilidade da vida e do mundo. A recusa do trágico é rigorosamente antimoderna — quer dizer, modernamente antimoderna — porque conduzida à opção pelo cômico: o tédio e a melancolia, o desconcerto e o absurdo, são e não podem ser senão matéria de comédia, e comédia filosófica, porque são e não podem ser senão matéria da inquirição filosófica que desfigura a face eufórica e providencialista dum mundo ordenado para o progresso.

O maior conseguimento dessa recusa é o extraordinário Dom Casmurro, o romance em que Bento Santiago, autor ficcional e autobiógrafo, procura ordenar os capítulos da sua vida. Ninguém além desse Casmurro ali fala, voz única e poderosa que ordena e decide o livro de ponta a ponta. Mas a proeza está em que, ao passo que Bento Santiago acaba por repudiar o cômico, substituindo-o por uma amarga e negra ironia do destino, o livro torna-se palco sutil que destrói a tragédia que nele livremente se encena. O próprio movimento da escrita e da composição do livro, tão cômico como o de Brás Cubas, derrota Bento Santiago: o erro dele não foi o ciúme, mas a fraqueza que não lhe deixou resistir ao trágico e, a mais de meio do livro, o leva a escrever como se, no repertório das histórias, não houvesse para ele senão uma história possível, a trágica. O resultado é idêntico ao do padre Chagas: sozinho, sem autoridade que lhe confirme a história que elaborou, por essa via tornada mero exemplo de história que é possível contar, acaba com um simulacro de tragédia, para sempre incapaz de saber o que se passou na própria vida. Fica o livro, claro: que se apresenta — e escarnece, o brejeiro!

Quem é


Abel Barros Baptista


Abel Barros Baptista É professor da Universidade Nova de Lisboa, onde ensina Literatura Brasileira. É autor de vários livros, principalmente ensaios sobre literatura portuguesa e brasileira. Publicou no Brasil, pela Editora da Unicamp, os dois livros que escreveu sobre Machado: A formação do nome. Duas interrogações sobre Machado de Assis e Autobibliografias (2003). Dirigiu, nas Edições Cotovia, de Lisboa, um “Curso Breve de Literatura Brasileira”, coleção em 14 volumes de apresentação dos maiores autores brasileiros, de Gonçalves Dias a Clarice Lispector. O seu último livro, que estuda, entre outros, Graciliano Ramos e João Cabral, é O Livro agreste (2005).

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