Eis
o capítulo XCVII — todo ele! — de Quincas Borba (1891),
o romance de longa elaboração que Machado de Assis publicou
depois de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Presta-se
fácil a exemplificar o ceticismo ou o pessimismo que décadas
de tradição imputaram à obra machadiana; entretanto, algum
candidato a integrar a ortodoxia atual, em lhe calhando
o passo no exame de admissão, pegaria do charuto e discorreria
sobre o comportamento impiedoso das elites brasileiras e
a não menos impiedosa, posto obscura, crítica machadiana.
É a desgraça da fortuna crítica de Machado de Assis: quando
os críticos não estão ocupados a demonstrar-lhe a genuína
“brasilidade”, julgam valorizá-lo como mestre no desmascaramento
da mesquinhez e da maldade humana. A ironia reina, mas é
vulgar: para uns, ironia moralista, que castiga o vício
na dobra de uma oração subordinada; para outros, ironia
ideológica, que finge agradar à classe dominante para melhor
a denunciar. Mas o que se obscurece é o súbito da interrupção
através da qual o “contozinho” e respectivo comentário irrompem
num curso já orientado para outra finalidade. Ironicamente,
com a ironia, figura fácil, obscurece-se o principal, que
é o cômico.
O cômico é coisa que se apresenta e de apresentar: vive
do aparecimento, súbito e inesperado, característica que
partilha com os fantasmas e os sismos. Daí que, nos livros
de Machado, seja antes do mais uma peripécia de composição:
o capítulo que acaba de repente ou nem chega a começar,
o capítulo vazio ou que sem propósito legível, o capítulo
que integra a seqüência do passo que a interrompe. Brás
Cubas dizia de um dos seus capítulos de meia dúzia de linhas
e aliás na última delas: “Mas este capítulo não é sério.”
Nenhum capítulo é sério quando o movimento da composição
permite e até produz o enxerto de histórias como aquela
do incêndio e do charuto. Ali, o efeito da interrupção não
depende da inteligibilidade da seqüência que integra nem
da inteligibilidade da história nela inserida: depende do
inesperado e do despropósito. Trata-se de perceber a piada,
no preciso momento do seu aparecimento, sem recordar o que
ficou e sobretudo sem querer saber do que está para vir.
O inesperado da interrupção torna-se cômico quando não precisa
de nenhum propósito. Há, aliás, outra passagem do romance
que esclarece isto. Sofia vê cair o carteiro que lhe trouxera
uma carta e desata a rir. O narrador concede que o riso
era inoportuno e contrastava com a noite mal dormida, o
desassossego, o medo de ser difamada; mas afirma que, se
leitora o não entende, é porque, “senhora minha, com certeza
nunca viu cair um carteiro”. E remata: “Às vezes, nem é
preciso que ele caia; outras vezes nem é sequer preciso
que exista. Basta imaginá-lo ou recordá-lo. A sombra da
sombra de uma lembrança grotesca projeta-se no meio da paixão
mais aborrecível, e o sorriso vem às vezes à tona da cara,
leve que seja — um nada.” É uma das melhores descrições do modo cômico
do capítulo na estrutura dos livros de Machado.
O cômico machadiano é decerto irônico: o que através dele
se diz não é alguma coisa que é necessário dizer, é o exemplo
de alguma coisa que é possível dizer. E por isso também
é filosófico: qualquer coisa se pode dizer, mas é sempre
certa coisa em vez de outra, contra outra ou excluindo outra,
estando na própria escolha do que se exclui o cerne singularizador
da ficção. Voltemos ao “contozinho”. Contado para ilustrar
a utilidade e a necessidade das catástrofes, o narrador
retira dele outra exemplaridade, a do propósito com que
o padre Chagas a contou, duplicando a piada da história
com a piada do comentário. A brincadeira consiste em presumir
um texto original e sugerir que o padre o redescreveu com
o fito de veicular a ideia consoladora de que “ninguém,
em seu juízo, faz render o mal dos outros”. Ora o padre
pode ter determinado a causa da situação, mas não extirpou
dela o escárnio. A bem dizer, tornou-o até mais cruel, sendo
mais improvável, mais inesperado, porque alheio aos cálculos
de algum sujeito. A inconsciência do bêbado acaba mais aterradora
do que a suposta crueldade do sóbrio… Dir-se-ia então haver
uma oposição entre o escárnio original — ou natural: “a
natureza é às vezes um imenso escárnio”, escreve Brás Cubas
a respeito da sua Vénus coxa — e o propósito, afinal baldado,
de o redescrever de acordo com alguma explicação consoladora.
Ora o cômico machadiano abunda em explicações, porém subtrai-lhes
o propósito consolador. Pelo contrário: detecta e realça
discrepâncias e incongruências, acasos e acidentes, e deixa
a nu a falta de finalidade. Não formam, essas explicações,
uma filosofia — são genuínos despropósitos, a valorizar
nessa mesma qualidade. O mais conhecido deles, a Pandora
que aparece no delírio de Brás Cubas, é a paródia negra
de todas as figuras providencialistas, incluindo o intelligent
design: mãe e inimiga, causa o sofrimento e o desejo de
viver. Os romances de Machado não se ocupam do homem brasileiro
nem da “natureza humana”: são inquirições da modernidade.
Inquirições dum espírito antimoderno, no sentido em que
o definiu o americano Marshall Berman, num livro luminoso,
All That Is Solid Melts into Air (1982): “Dir-se-ia que
para ser inteiramente moderno é preciso ser antimoderno:
desde os tempos de Marx e Dostoievsky até ao nosso próprio
tempo, tem sido impossível agarrar e envolver as potencialidades
do mundo moderno sem abominação e luta contra algumas das
suas realidades mais palpáveis. Não surpreende, pois, que,
como afirmou Kierkegaard, esse grande modernista antimodernista,
a mais profunda seriedade moderna deva expressar-se através
da ironia.” Partilhando, então, a desconfiança em relação
ao progresso, ao sentido, à ciência, Machado percebe a liberdade
de redescrever a vida em novas condições, mas recusa radicalmente
a consolação da inteligibilidade.
O cômico é essa recusa: além de antimoderno, o cômico machadiano
é antitrágico, no preciso sentido em que denuncia a presunção
persistente de que o modelo trágico é o modelo adequado
à inteligibilidade da vida e do mundo. A recusa do trágico
é rigorosamente antimoderna — quer dizer, modernamente antimoderna
— porque conduzida à opção pelo cômico: o tédio e a melancolia,
o desconcerto e o absurdo, são e não podem ser senão matéria
de comédia, e comédia filosófica, porque são e não podem
ser senão matéria da inquirição filosófica que desfigura
a face eufórica e providencialista dum mundo ordenado para
o progresso.
O maior conseguimento dessa recusa é o extraordinário Dom
Casmurro, o romance em que Bento Santiago, autor ficcional
e autobiógrafo, procura ordenar os capítulos da sua vida.
Ninguém além desse Casmurro ali fala, voz única e poderosa
que ordena e decide o livro de ponta a ponta. Mas a proeza
está em que, ao passo que Bento Santiago acaba por repudiar
o cômico, substituindo-o por uma amarga e negra ironia do
destino, o livro torna-se palco sutil que destrói a tragédia
que nele livremente se encena. O próprio movimento da escrita
e da composição do livro, tão cômico como o de Brás Cubas,
derrota Bento Santiago: o erro dele não foi o ciúme, mas
a fraqueza que não lhe deixou resistir ao trágico e, a mais
de meio do livro, o leva a escrever como se, no repertório
das histórias, não houvesse para ele senão uma história
possível, a trágica. O resultado é idêntico ao do padre
Chagas: sozinho, sem autoridade que lhe confirme a história
que elaborou, por essa via tornada mero exemplo de história
que é possível contar, acaba com um simulacro de tragédia,
para sempre incapaz de saber o que se passou na própria
vida. Fica o livro, claro: que se apresenta — e escarnece,
o brejeiro!
Abel Barros Baptista
É
professor da Universidade Nova de Lisboa, onde
ensina Literatura Brasileira. É autor de vários
livros, principalmente ensaios sobre literatura
portuguesa e brasileira. Publicou no Brasil,
pela Editora da Unicamp, os dois livros que
escreveu sobre Machado: A formação do nome.
Duas interrogações sobre Machado de Assis e
Autobibliografias (2003). Dirigiu, nas Edições
Cotovia, de Lisboa, um “Curso Breve de Literatura
Brasileira”, coleção em 14 volumes de apresentação
dos maiores autores brasileiros, de Gonçalves
Dias a Clarice Lispector. O seu último livro,
que estuda, entre outros, Graciliano Ramos e
João Cabral, é O Livro agreste (2005).
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