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O comediógrafo

Fachada do Teatro S. Pedro de Alcântara (foto de 1900), cuja hegemonia começou a ser ameaçada pelo Teatro Ginásio Dramático em meados do século XIX (Foto: Fundação Casa de Rui Barbosa)

João Roberto Faria

O interesse de Machado pelo teatro data da adolescência. Em crônicas escritas na maturidade ele rememora o fascínio que tinha pelo teatro de bonecos e que “regalou-se” quando menino com o Antônio José ou O Poeta e a Inquisição, de Gonçalves de Magalhães, representado pelo grande ator romântico João Caetano. É certo que freqüentava não só o teatro dramático, mas igualmente o teatro lírico, pois um dos poemas que publicou aos dezesseis anos, no Diário do Rio de Janeiro de 7 fevereiro de 1856, era dedicado à cantora lírica Arsène Charton. O interesse precoce pelo teatro explica também por que um dos seus primeiros textos críticos, “Idéias vagas”, escrito aos dezessete anos e publicado na Marmota Fluminense, em 31 de julho de 1856, tenha versado justamente sobre “a comédia moderna”. Nos três anos seguintes, o envolvimento de Machado com o teatro cresce bastante: ele colabora com a Imperial Academia de Música e Ópera Nacional, traduzindo os libretos A ópera das janelas e Pipelé; aborda a situação do teatro brasileiro com bom conhecimento do assunto, no artigo “O Passado, o Presente e o Futuro da Literatura”; e finalmente, no segundo semestre de 1859, torna-se crítico teatral do jornal O Espelho, para o qual escreve um folhetim dramático por semana, analisando peças e espetáculos, bem como os desempenhos dos artistas.

Nessa altura, Machado acompanhou a estimulante rivalidade entre dois teatros que dividiam as preferências do público e dos escritores e intelectuais que atuavam na imprensa. O Teatro S. Pedro de Alcântara, o maior e principal da cidade, subsidiado pelo governo imperial, era administrado pelo ator e empresário João Caetano, que tinha atrás de si um passado de glórias. O repertório de tragédias neoclássicas, melodramas e dramas românticos que ofereceu ao público ao longo da carreira projetou-o como gênio da cena, intérprete inigualável e sem rivais em território brasileiro. Em 1855, porém, a hegemonia do Teatro S. Pedro de Alcântara começou a ser ameaçada pelo Teatro Ginásio Dramático, que passou a representar peças francesas de autores como Alexandre Dumas Filho e Émile Augier, entre outros. Como traziam à cena alguns aspectos da vida cotidiana do presente, esses autores constituíram o que na época chamou-se “escola realista”. De um modo geral, a comédia realista francesa é uma peça séria, que não procura provocar o riso, pois visa antes de tudo à descrição positiva dos costumes e valores da vida burguesa. Os diálogos e as cenas são construídos com o máximo de naturalidade, mas ao realismo pretendido soma-se uma preocupação com a finalidade moral que o teatro pode alcançar. Ou seja: à descrição dos costumes justapõe-se a prescrição de valores como o trabalho, a honestidade, o casamento e a família, no interior de um enredo que contrapõe bons e maus burgueses.

Ao assumir o posto de crítico teatral em O Espelho, Machado apoiou abertamente o repertório do Ginásio Dramático e chegou a afirmar que “pertencia” à escola realista por considerar importantes sua naturalidade e preocupação moralizadora. Tinha em alta conta a idéia de que o teatro, mais que entretenimento ou mero passatempo das massas, podia ser uma forma de arte útil para a sociedade. Era de se crer que ao escrever suas próprias peças, seguisse o modelo que tanto apreciava. No entanto, ao estrear como comediógrafo, em 1861, com a pequena comédia Desencantos, buscou outro caminho, o da comédia curta e elegante, reforçado no ano seguinte com O Caminho da Porta e O Protocolo.

O que surpreende o leitor dessas comédias em um ato é que elas não correspondem à visão que o crítico teatral Machado tinha da arte dramática quando as escreveu. Como explicar que não tenha aproveitado o modelo de Dumas Filho e Augier ou seguido o exemplo de seu amigo Quintino Bocaiúva e de Alencar, que se lançaram no teatro como autores de comédias realistas?

É provável que, muito jovem, Machado não se achasse ainda com fôlego para escrever a comédia longa, em três atos, com reflexões sobre o homem e a sociedade e com lições edificantes. Numa carta que enviou a Quintino Bocaiúva, pedindo-lhe o julgamento de O Caminho da Porta e O Protocolo, que ia publicar num mesmo volume, em 1863, confessou que seu desejo era futuramente escrever peças mais alentadas, mas que não se achava ainda com forças suficientes. É bastante conhecido o julgamento severo que as pequenas comédias mereceram de Quintino Bocaiúva, que as viu apenas como “esboços” frios e sem alma, mais para serem lidas do que representadas. Não se conhece a reação de Machado a essas críticas. O que se sabe é que, não seguindo o modelo das peças de Dumas Filho, inspirou-se nos provérbios dramáticos de Alfred de Musset e de Octave Feuillet para escrever suas primeiras comédias.

O provérbio dramático surgiu no final do século XVII, nos salões aristocráticos franceses, e inicialmente era quase um jogo, uma charada: os espectadores tinham que adivinhar qual era o provérbio oculto na ação de pequenas cenas e comédias. Com Carmontelle, no século seguinte, o gênero permaneceu como “teatro de salão”, feito por amadores da aristocracia e da alta burguesia, mas adquiriu características definidoras de sua forma. Tornou-se uma comédia curta, centrada na linguagem chistosa e no refinamento dos personagens, com a ação ilustrando um provérbio, cujo significado vai sendo, aos poucos, percebido pelos espectadores. Numa época em que a linguagem teatral era extremamente elaborada, em que o padrão eram as tragédias neoclássicas de Voltaire, Carmontelle buscou reproduzir o tom das conversas de salão, imprimindo em suas peças certa naturalidade: não as “belas frases” ou “estilo”, dizia ele, mas um grande desejo de conseguir o tom da verdade. Com personagens colhidos nas classes altas, com assuntos leves e sem grandes conflitos dramáticos, seus provérbios se popularizaram e serviram de modelo a vários outros dramaturgos, entre eles Alfred de Musset, já no século XIX, em pleno Romantismo.

Ilustração de 1861 da Semana Ilustrada mostra o público aclamando Pinheiro Guimarães, autor de História de uma moça rica, peça  comentada por Machado de Assis (Ilustração: Editora da Unicamp)Com regras mais frouxas que as do drama ou da tragédia, ou mesmo da comédia, o provérbio dispensa os enredos complicados e se articula em torno das conversas entre personagens, buscando trazer a poesia e o estudo de caracteres para o interior dos textos. Se a ação dramática parece prejudicada, porque há pouca movimentação em cena, ganha-se em literatura e alcance psicológico nessa forma teatral que aposta tudo na linguagem bem elaborada dos diálogos. A leitura de peças como Un Caprice ou On ne Badine pas avec l’Amour mostram o quanto Musset foi um mestre do gênero.

Machado procurou guiar-se pelo conhecimento que tinha dos provérbios dramáticos e também pôs em cena personagens refinados, que dialogam com inteligência e brilho, lançando mão da linguagem cifrada e dos ditos espirituosos. Em Desencantos já se esboça o universo que estará presente na maioria das suas comédias: o da alta sociedade brasileira de seu tempo, constituída pela burguesia emergente. Aí ele vai colher sugestões para os enredos e tipos como as viúvas ainda em idade de se casar, homens ricos que veraneiam em Petrópolis, negociantes, diplomatas, políticos, advogados, rapazes e mocinhas bem educados, inteligentes e espirituosos.

Ao reproduzir com algum realismo o ambiente elegante do Rio de Janeiro, Machado talvez acreditasse que não se distanciava tanto das comédias realistas. Ainda que não enfatizasse as lições morais em suas peças, os personagens que criou poderiam protagonizar qualquer comédia de Alencar ou Quintino Bocaiúva: pertenciam à mesma classe social e se exprimiam com naturalidade. Além disso, seus provérbios dramáticos, construídos predominantemente com recursos do alto cômico, eram aliados na luta pelo bom gosto e pela vitória do novo repertório que se contrapunha ao teatro concebido como pura diversão das massas. Não podemos esquecer que, como crítico, Machado sempre atacou as comédias construídas com recursos do baixo cômico e elementos burlescos. Como comediógrafo, não procedeu de modo diferente. Basta ler as comédias Desencantos, O Caminho da Porta e O Protocolo, ou as que escreveu na maturidade, Não Consultes Médico e Lição de Botânica, para percebermos que a comicidade está centrada nos diálogos em que predominam os chistes, a ironia, o humor, as réplicas inteligentes, o brilho do raciocínio rápido. Os personagens revelam-se pelo que falam e pelo pouco que fazem, pois estamos diante de comédias de ação rarefeita, nas quais os enredos não apresentam grandes conflitos. As situações criadas por Machado são pontos de partida para uma observação por vezes sutil, por vezes brincalhona da natureza humana, apreendida em suas virtudes e defeitos, quase sempre pelo ângulo do sentimento amoroso. Evidentemente, são comédias que não têm o mesmo alcance crítico ou a mesma densidade dos melhores romances e contos do escritor. Para ele, o teatro foi, na juventude e na maturidade, um gênero em que praticou a leveza, a concisão, a vivacidade do estilo e a poesia dos sentimentos.

Quem é

João Roberto Faria

João Roberto Faria
é professor titular de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo, onde concluiu o mestrado, o doutorado e a livre-docência. Entre 1991 e 1993, fez pós-doutorado no Centre de Recherches sur le Brésil Contemporain, em Paris. No primeiro semestre de 2000 foi Tinker Visiting Professor na Universidade do Wisconsin, em Madison, Estados Unidos. É pesquisador do CNPq e coordenador da coleção “Dramaturgos do Brasil”, da editora Martins Fontes, para a qual preparou os volumes Teatro de Álvares de Azevedo (2002), Teatro de Aluísio Azevedo e Emílio Rouède (2002), Teatro de Machado de Assis (2003), José de Alencar: Dramas (2005) e Antologia do Teatro Realista (2006). É autor dos seguintes livros: José de Alencar e o Teatro (São Paulo, Perspectiva/Edusp, 1987); O Teatro Realista no Brasil: 1855-1865 (São Paulo, Perspectiva/Edusp, 1993); O Teatro na Estante (São Paulo, Ateliê Editorial, 1998) e Idéias Teatrais: o Século XIX no Brasil (São Paulo, Perspectiva/Fapesp, 2001 - “Prêmio Especial” no setor TEATRO “Os Melhores de 2001”, atribuído pela Associação Paulista de Críticos de Arte). Em colaboração com Flávio Aguiar e Vilma Arêas, publicou Décio de Almeida Prado: um Homem de Teatro (São Paulo, Edusp/Fapesp, 1997; e junto com J. Guinsburg e Mariângela Alves de Lima, coordenou o Dicionário do Teatro Brasileiro: Temas, Formas e Conceitos (São Paulo, Perspectiva/SESC, 2006). Tem no prelo, pela Editora Perspectiva, a sair no segundo semestre deste ano, o volume Do Teatro: Textos Críticos e Escritos Diversos, no qual reuniu a produção crítica de Machado de Assis sobre teatro.

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