Jornal da Unicamp – Quais as diferenças desta edição de
Bons Dias! das anteriores?
John Gledson
– Quando primeiro fiz uma edição de Bons Dias!, nos anos
80, havia uma edição já no mercado, do grande pesquisador
machadiano Raymundo Magalhães Júnior. Ele deu o título
Diálogos e reflexões de um relojoeiro ao volume, que também
continha a curta série, de sete crônicas dialogadas, chamada
A+B. Foi através dessa edição que conheci Bons Dias!,
que dá um texto legível, mas não inteiramente confiável,
das crônicas. Fui percebendo que o que lhe faltava, além
do aprimoramento do texto, eram notas mais elucidativas.
Magalhães, em geral, explica o que quer explicar, isto
é, o que já sabe, e não explica as (muitas) coisas que
não lhe interessam, ou que ignora. Compreendi que a chave
das notas necessárias estava nos jornais, dos quais as
crônicas são parasitárias – isto é, comentam os acontecimentos
do período (normalmente a semana) anterior ou pinçam alguma
notícia aparentemente (ou realmente) menor, e executam
seus arabescos em torno dela. Nesse processo que empreendi,
há um fator importantíssimo – a microfilmagem dos jornais
do período pelo projeto Pró-Memória. Sem os microfilmes,
que facilitam demais – podemos dizer que possibilitam
– o trabalho do investigador, essas edições não existiriam.
Quando comecei a me interessar pelas crônicas de Bons
Dias!, mais ou menos em 1982-83, não pensava em fazer
edição – escrevi o capítulo de Machado de Assis: Ficção
e História, que trata da série. Daí, se bem me lembro,
veio o convite da Editora Hucitec, em 1988, para fazer
uma edição completa de Bons Dias!, para uma série Literatura
Brasileira, dirigida por Alfredo Bosi e Davi Arrigucci.
A Hucitec, devo dizer, foi outra sorte grande, porque
levaram muito a sério o processo, com índice bom, ilustrações
e tudo. Sempre fiquei agradecido aos diretores da série,
e mais ainda a Flávio Aderaldo George, o dono da editora,
por essa seriedade e perfeccionismo. Houve uma segunda
edição do livro em 1997, idêntica à primeira, quando foi
adotado pelo Ministério da Educação para distribuição
nas Salas de Leitura e Bibliotecas Escolares.
Esta nova, terceira edição,
para a Editora da Unicamp, traz mudanças importantes,
porém. Primeiro, escrevi uma introdução nova – na primeira
edição, não queria me repetir, e excluí praticamente tudo
que se referisse à política, que já constava de Ficção
e História. Também tinha havido comentários interessantes
sobre o que tinha escrito, os quais queria levar em conta
– o resultado foi uma introdução completamente reformulada,
que espero seja definitiva – pelo menos, eu não vou voltar
ao assunto! Também, sobretudo com a ajuda da internet,
foi possível solucionar algumas das referências literárias,
que algumas vezes desafiam o leitor – é o Machado que
“se deliciava em ser incompreendido” – e corrigi alguns
errinhos. Espero que esta seja, finalmente, uma edição
definitiva, na (estrita) medida do possível.
JU – Na introdução
da obra e nas notas das crônicas, o senhor esmiúça todas
as peças, oferecendo ao leitor um amplo painel do momento
histórico em que elas foram escritas, rigor de resto presente
em todas as suas obras. O senhor escreve, por exemplo,
que “...vamos acompanhá-las em ordem cronológica e construir,
a partir das evidências internas e externas, uma hipotética
‘história’ da série”. Como foram essas e outras prospecções
e quais foram as maiores dificuldades encontradas no percurso?
Gledson – Quando fui olhando de novo as crônicas,
e sobretudo à luz de algumas críticas ao que tinha feito,
me dei conta de que era possível construir uma “história”
hipotética da série e da sua escrita. Bons Dias! é diferente,
não sei se único, por não ter sido uma crônica regular,
que saísse, como é a regra do gênero, num certo dia da
semana – a partir de junho de 1888, Machado parece que
escrevia sobretudo quando tinha vontade ou motivo de dizer
algo. No capítulo de Ficção e História, eu tinha focalizado
sobretudo os assuntos políticos, que de fato dominam a
série, mas para explicar, dar um mapa das opiniões políticas
de Machado, que afloram aqui mais do que em qualquer outra
série, ia dizer qualquer obra dele. Na nova introdução,
vi que, com esse trabalho já feito, era possível, olhando
com um pouco de cuidado para a retórica das crônicas,
vendo as datas da publicação e sua relação com as notícias
que usam, construir essa hipotética “carreira” da série
– e acompanhar, por exemplo, o processo que levou Machado
a desistir da série no fim, em agosto de 1889, e que tem
a ver com a inevitável queda do Império, coisa que Machado
não queria, porque tinha medo (justificado) do que viesse
depois. Resumindo, o diálogo tenso que vinha tendo com
seus leitores não era mais possível – e de fato só recomeçou
a escrever crônica em 1892, quando o pior do vendaval
tinha passado, com o fim do “Encilhamento”, o escandaloso
boom and bust financeiro de 1890-91. Creio que a nova
introdução ficou mais interessante e informativa do que
o capítulo de Ficção e História. Também, esmiúça um pouco
mais as opiniões de Machado sobre a escravidão, à luz
de algumas críticas feitas por Sidney Chalhoub em Visões
da liberdade.
Central ao argumento dessa
introdução é a análise da situação básica das crônicas,
esse “diálogo tenso” de que falei, do cronista com os
leitores, que já começa no próprio título, Bons Dias!,
um começo de conversa que a todo momento parece que está
ameaçado de romper. Esta situação tem uma realidade histórica
– tanto é assim que é a principal razão do fim da série.
Não existia – argumento eu – mais a base da conversa.
JU
– Com base em seus achados, como o senhor vê o fato de
muitas das facetas de Machado terem sido praticamente
ignoradas – e não raro embaralhadas e confundidas – pelo
conjunto da crítica ao longo de décadas? Como pode o escritor
ter sido durante tanto tempo visto como apolítico e infenso
às coisas que o cercavam?
Gledson – Confesso que é um pouco misterioso para
mim; talvez pelo fato de o interesse de Machado em assuntos
sociais e políticos, revelado por Roberto Schwarz em Ao
vencedor as batatas e pela minha leitura de Casa velha,
ter estado às origens do meu interesse pelo autor. Também
não devemos exagerar – alguns autores importantes, Magalhães
Júnior, Astrojildo Pereira, Raymundo Faoro, Jean-Michel
Massa e outros, já falavam das opiniões políticas do Machado.
Mas posso me aventurar a duas ou três explicações – primeiro,
o próprio Machado disfarçava as suas opiniões, sempre
numa ironia sem a qual ele praticamente não sabe escrever,
e às vezes em alegorias complexas que pedem um tipo de
leitura à qual a crítica não estava acostumada – por isso,
literalmente, não as via (o que é freqüente em literatura).
Segundo, Machado fazia o jogo da oligarquia – com narradores
como Brás Cubas e Dom Casmurro, ele se exprime por sua
boca, de um jeito tão convincente que o leitor pode não
ver que o autor os vê de fora também. E finalmente, pelo
fato de que se lêem sobretudo os romances, e as obras
“menores”, crônicas, contos etc., são, ou eram, pouco
levadas em consideração.
JU – O senhor acha que o leitor contemporâneo compreenderia as crônicas sem a adição de notas e a devida contextualização?
Gledson – Depende – algumas crônicas sim entendem-se sem essa contextualização – O punhal de Martinha, O autor de si mesmo (a crônica de Abílio), por exemplo. Em certo sentido, auto-explicam-se, se posso falar assim, porque o autor fornece o próprio contexto, citando ou resumindo o item que glosam. Algumas – poucas – até têm pouco ou nada a ver com o contexto imediato: a crônica de Bons Dias! que satiriza o uso excessivo do verbo “salientar”, por exemplo. Mas essas, que na verdade poderiam ter sido escritas a qualquer momento, geralmente não são as mais interessantes ou até divertidas – tem-se a impressão de que Machado tinha uma reserva delas para uso eventual quando não lhe ocorria algo melhor. Há também as que se entendem praticamente inteiras, mas que contudo se entendem melhor citando o jornal, ou identificando a origem de uma citação literária qualquer. Às vezes a língua do jornal, por exemplo, por trazer implícito algum preconceito que verossimilmente irritou Machado, ilumina a crônica e o cronista; às vezes o que pode ser, ou parecer claro, aparece a uma nova luz quando somos informados de algum fato que o leitor contemporâneo saberia de sobra, mas que ignoraríamos se não fosse explicitado nas notas.
E há as muitas que realmente não se entendem, ou se entendem só em parte, sem as notas. Não devemos achar – cheguei a essa conclusão ao longo de muitos anos de pesquisa – que são as menos interessantes ou as piores. De um ponto de vista literário, Machado até podia ter razão ao escolher umas poucas para republicação em livro (e mesmo assim, cortando o que lhe parecia mais “efêmero”). Mas podemos ter outros critérios, e essa ligação umbilical entre o jornal e a crônica, nessa época sobretudo (no século XX, ou depois de 1920, tenho a impressão que a situação é outra), faz parte do interesse, da vida das crônicas. Pode até parecer que esteja dizendo que as notas permitem a leitura da crônica até fazer parte do “texto”. Claro que não iria tão longe, ni mucho menos, mas o fato é que o trabalho (duro às vezes, mas com muitas compensações) de identificar citações tão diferentes (a Ilíada ou La Fontaine num momento, no próximo um “A pedido” ridículo, um anúncio desonesto, um telegrama meio ou mais que meio mentiroso) é gostoso, só porque estamos “acompanhando” o homem, sondando suas opiniões, seus gostos, seu gênio. E entendendo um pouco de história, brasileira e mundial, também.
JU – Fica claro,
por meio de sua análise, que Machado, à sua maneira, dava
nas crônicas seu recado no calor da hora, não raro dialogando
com o seu leitor. Nesse contexto, quais eram as diferenças
do Machado cronista do romancista?
Gledson – É uma simples diferença de gênero – um
romance visa ter uma vida mais independente do seu contexto,
e sobretudo opera como um todo, ao longo de suas 200 ou
300 páginas. As crônicas tinham uma referência imediata.
Há ligações entre romance
e crônica, porém. N’A Semana, há muitos casos, imagens,
argumentos, hábitos de pensamento, que iluminam sobremaneira
os dois romances que foram escritos durante e depois dos
anos 90, Dom Casmurro e Esaú e Jacó. Um exemplo entre
muitos – na primeira crônica de 1894, importante em parte
por ser a primeira escrita quando a Gazeta de Notícias reapareceu, depois de ser banida por um mês pelo governo
de Floriano, durante a Revolta da Armada – não só há uma
citação, de Xenofonte, que usa novamente (de uma maneira
sutilmente diferente) em Esaú e Jacó, há uma proliferação
de “parelhas”, digamos, de pares, e até de grupos de quatro,
até certo ponto simétricos e diferentes, e que lembram
muito os gêmeos desse mesmo romance. Quatro velhos famosos,
por exemplo – Moltke e Gladstone, Saldanha Marinho e Tamandaré;
são dois brasileiros e dois europeus, ou vistos sob outros
critérios, dois políticos e dois militares. Dois poetas
franceses (Barbier e Chénier) com íntimas relações com
o terror de 1793. Dois poetas (Hugo e Heine, um francês,
um alemão francófilo) com pretensões de ter nascido no
comecinho do século XIX. Etc etc. Tudo levando à oposição
(e paralelo) entre o absolutismo e o anarquismo, “Carlos
X [o último rei absolutista da França] e o nada” – serão
gêmeos? Como diz Machado, numa dessas frases que ecoam
no cérebro: “Vir do legitimismo ao anarquismo, parando
aqui e ali na liberdade, eis aí uma viagem interessante
de dizer e de ouvir.” Outra viagem interessante de seguir
é a destas idéias – ia dizer hábitos mentais – da crônica
para o romance.
JU – Como o senhor
definiria o perfil, digamos, ideológico de Machado? Que
avaliação o senhor faz das posições adotadas por ele,
não só no caso de Bons Dias! – cujas crônicas estão praticamente
circunscritas ao período compreendido entre a Abolição
e o fim do Império – mas ao longo da vida?
Gledson – Bem, algo sem dúvida está resumido nessa
frase que acabei de citar. Machado gostava muito da liberdade.
Nesse sentido era um liberal. Nada de excepcional nisso
– talvez o que caracteriza Machado mais do que nada no
sentido ideológico é a consciência aguda que tinha das
ameaças que rondavam a liberdade. A começar pelo seu oposto
absoluto, a escravidão. Não duvidemos nunca que ele odiava
– isto sempre, ao longo da carreira toda – a instituição,
e fez o que pôde para lutar contra ela. Isso, entre outros,
Sidney Chalhoub mostrou no seu longo ensaio em Machado
de Assis, historiador, onde rastreia a atuação de Machado
no Ministério de Agricultura, onde fez o que pôde para
interpretar a Lei do Ventre Livre a favor do escravo (ou
o liberto) em casos concretos. Machado não foi animal
político – também não devemos esquecer que havia sempre
a ameaça de ataques epiléticos – mas não é verdade dizer
que não “fez” nada no sentido de acabar com a escravidão.
Leiam Pai contra mãe, escrito anos após a Abolição, e
saboreiem o tom, se quiserem apreciar esse ódio.
No sentido político, esse
gosto pela liberdade se traduziu num monarquismo liberal
que, com matizes diferentes, manteve durante a vida toda.
Na juventude, como foi mostrado com riqueza de detalhes
por Jean-Michel Massa e Raymundo Magalhães Júnior, era
até liberal militante, e trabalhava para jornais que apoiavam
o partido, eram do partido. O momento crucial talvez seja
1870, quando um grupo de liberais, entre os quais amigos
de Machado, separou-se do Partido Liberal para fundar
o Partido Republicano. Machado não se juntou a eles –
com outros amigos, continuou sendo liberal. Pode até ter
sido uma decisão “política” no pior sentido – acabava
de ser mantido no seu posto burocrático, apesar da mudança
de governo, em 1868 (o “golpe” que resultou na subida
dos conservadores ao poder), e era bom ficar quieto. Mas
não era: a coerência ideológica já se vê em crônicas dos
anos 70 – uma, por exemplo, da série Notas semanais, de
1878, série que eu e a Lúcia Granja vamos publicar daqui
a pouco, que conta uma parábola divertida cujo alvo é
obviamente o republicanismo, que Machado tachava de simplista,
ótimo na teoria, péssimo na prática. Onde a questão aparece
com todos os seus aspectos, e até os seus conflitos interiores,
é em Bons Dias!, quando a ameaça do fim do regime monarquista
é muito grande – e continua na república, quando quase
foi denunciado como criptomonarquista (que em certo sentido
era).
JU – Nesse âmbito, a chamada “identidade nacional” foi – e ainda é – um tema caro ao ambiente acadêmico brasileiro. Em que medida, na sua opinião, Machado foi premonitório e preocupou-se em retratá-la em seus textos?
Gledson – Num ensaio publicado em Por um novo Machado de Assis, ensaiei um argumento um pouco ousado a esse respeito, mas que continuo achando válido. No famoso conto O espelho, o próprio espelho em que o alferes Jacobina se vê, e que mais ou menos convence-o que está ainda vivo, é suposto ter vindo para o Brasil com a corte de D. João VI. Ora, não custa muito pensar que o detalhe seria alegórico até certo ponto – a vinda da corte foi o momento em que o Brasil se olhou no espelho (do mundo, digamos), e se deu conta da sua existência... precária, como a do alferes. Mas daí, concluir que para Machado, o Brasil não existe, é loucura, obviamente. Muito pelo contrário, Machado, em várias obras, romances, contos, crônicas, acompanha o processo (difícil) de construir uma identidade, através da literatura entre outras coisas – vêm-se os primeiros passos no conto que segue O espelho em Papéis avulsos, Verba testamentária. Na verdade, o que ele queria estabelecer era uma cultura nacional – a própria fundação da Academia Brasileira de Letras faz parte desse empenho. Mas é um processo sempre ameaçado, como se vê, por exemplo, na história do teatro brasileiro, o gênero literário popular por excelência no século XIX. Nas mesmas crônicas mencionadas na resposta anterior, de 1878, Machado se queixa (com a ironia do costume, é claro) da invasão de divertimentos importados – touradas, patinação, o boxe, as corridas de cavalos, até a ópera, aonde se vai para ser visto – vários entretenimentos que “dispensam o cérebro”, como ele diz. Com sarcasmo, diz que O Jesuíta, a peça de Alencar, ganhou uma fortuna para seu autor, quando todo mundo sabia que foi um fracasso total.
Noutras palavras, Machado estava empenhado em construir a cultura e a identidade brasileiras, mas também bastante cético em relação a essas questões – o caso é perfeitamente paralelo às suas opiniões políticas. Quando comenta o famigerado “caráter nacional brasileiro”, há coisas bastante interessantes também, e que prefiguram Raízes do Brasil, com seu homem cordial. Em A Semana, por exemplo, como também mostrei noutro capítulo de Por um novo Machado, ele comenta a aversão brasileira a se submeter a regras. Diz: “O que não podemos tolerar é a obrigação. Obrigação é eufemismo de cativeiro; tanto que os antigos escravos diziam sempre que iam à sua obrigação, para significar que iam para casa de seus senhores.” Essa explicação histórico-sociológica tem seu interesse ainda hoje, e muito do que Machado diz vale a pena de se ouvir, mesmo se discordamos dele.
JU – E no que
diz respeito a temas considerados tabus à época, como
a condição da mulher e a sexualidade?
Gledson – Esse é um assunto que aparece relativamente
pouco nas crônicas, que tratam preferentemente de assuntos
públicos – só em alguns momentos há exceções aparentes,
como no caso seguinte, de Bons Dias!, do 7 de agosto de
1888: um marido corno matara a tiros seu comborço, em
plena Rua da Uruguaiana, no centro do Rio, à luz do dia.
Quando lemos as notícias e os comentários ao evento, nos
damos conta da vigência de alguns estereótipos e preconceitos,
como são os direitos do marido enganado, e a mulher sedutora,
a cobra venenosa, a culpada de tudo, etc. O que Machado
mostra aqui é tédio – não quer saber dessas coisas, e
ameaça matar, ele mesmo, a tiros (“trago aqui uma pistola”!),
qualquer pessoa que menciona o acontecimento, e passa
a considerar outro assassinato, desta vez no interior,
e que tem a ver com a Guarda Nacional, instituição que
sempre satirizava, mas que revela detalhes muito mais
interessantes da vida brasileira na roça, e da sua violência
endêmica.
Onde transparece o feminismo
machadiano sobretudo é nos contos e nos romances. Não
se apreciou esse aspecto da obra, porque, autor realista
que era, Machado tinha que retratar a mulher como era
na realidade, com todas as limitações com as quais lidava,
sociais, legais, sexuais etc., e isso pode fazer, e normalmente
faz com que nos apresente mulheres reprimidas, e até que
colaboram, ou parecem colaborar, com a própria repressão.
Vejamos um conto entre muitos – Capítulo dos chapéus,
um dos mais engraçados do autor. A Mariana do conto é
uma mulher que adora a monotonia, não tem filhos apesar
de estar casada há cinco ou seis anos, não tem o que fazer,
fica o dia inteiro na casa, com os servos ou escravos
que naturalmente teria (o conto passa em 1879). Mesmo
quando, irritado com o marido “autoritário e voluntarioso”,
ela faz uma passeio pela Rua do Ouvidor com a sua amiga
Sofia, ela volta para casa com alívio, resolvida a ficar
para sempre nos braços da “santa monotonia”. Mas, se lermos
com cuidado, vemos, espalhados pelo conto, indícios de
um outro mundo muito mais ousado, onde há, por exemplo,
“uma porção de histórias de chapéus masculinos e femininos,
coisa mais grave do que uma simples briga de casados”.
O livro que ela leu nada menos que onze vezes é um romance
católico sobre o adultério (um adultério que, nesse romance,
não acontece, mas que tem todas as justificações possíveis).
Ou seja, Machado nos mostra, não só a mulher reprimida
(se é que essa é a palavra, a coitada da Mariana está
feliz à sua maneira), mas o contexto total, social, religioso,
ideológico – os mecanismos, sutis e fortes, que a mantêm
nessa situação. O que é verdade nesse conto também vale
para Dom Casmurro, por exemplo.
Apenas mais um comentariozinho,
já que fala de sexualidade. Uma das presenças surpreendentes
na sua ficção é o homossexualismo, assunto bastante tabu
na época, se bem que abordado de outro jeito por Adolfo
Caminha em Bom-Crioulo. Há um passo que me deixou estarrecido
quando me dei conta das suas implicações, há bem mais
de vinte anos (e me deixa ainda um pouco surpreso) em
Casa velha, em que menciona “de passagem”, o estupro de
um bispo pelo filho de um papa (episódio histórico, do
século XVI). E fico cada vez mais convencido que o curiosíssimo
conto Pilades e Orestes, de 1903, é um retrato sutil,
engraçado e amargo de um homossexual num mundo em que
o homossexualismo “inexiste”.
JU – Sua
obra é reconhecida, entre outras coisas, por colocar as
crônicas de Machado num patamar nem sempre levado em conta
pela crítica. A que o senhor atribui o fato desse aspecto
ter sido negligenciado por tanto tempo?
Gledson – Achava-se, não sem justificação, que
eram obras menores, que, com poucas exceções, não mereciam
a consagração da publicação em livro; essa era a opinião
do próprio Machado. À medida que íamos nos distanciando
do tempo dele, começou a surgir um interesse cada vez
maior em tudo que se referisse a ele, um interesse literário,
biográfico e histórico. Publicaram-se edições, a da Jackson
nos anos 30, as de Magalhães nos anos 50. Estou longe
de desprezar essas edições, por mais que deixem a desejar
em alguns aspectos; deram a conhecer este Machado diferente,
um Machado dia a dia, ou semana a semana, digamos. O que
surpreende é que depois de, digamos, 1970, o interesse
diminuiu até praticamente desaparecer. Só posso atribuir
esse fato às modas críticas que davam importância sobretudo
ao texto, como uma entidade mais ou menos fechada em si.
Como lidar com textos que, para se entender, precisavam
apelar para outros textos, principalmente o jornal? Agora,
a crônica não é tão excepcional nesse sentido – também
nos romances há referências históricas, literárias etc.,
que é útil reconhecer. Só que os críticos passavam de
lado, concentrando-se em outras coisas – a narração, as
imagens etc. Ficção e História é em parte uma tentativa
de combater esses… preconceitos.
JU – Em
mais de uma ocasião, o senhor disse ser tributário da
obra de Roberto Schwarz [Ao vencedor as batatas e Um mestre
na periferia do capitalismo: Machado de Assis]. Contudo,
muitos críticos apontam que o senhor não apenas avançou,
dentro de sua área de interesse, em relação ao temário
de especialistas brasileiros, como também trouxe à luz
inúmeros elementos que tornaram mais compreensível a obra
machadiana. Quais seriam eles? O “olhar estrangeiro” tem
algum peso nisto?
Gledson
– As várias referências à obra de Roberto nas minhas
coisas são apenas uma mostra do que lhe devo. A leitura
de Ao vencedor as batatas, no fim dos anos 70, mudou minha
carreira, mostrou-me um jeito de juntar o interesse pelo
Brasil com a paixão pela literatura – a tradução de Um
mestre e de outros ensaios dele são outras mostras do
meu entusiasmo duradouro. Não sei se “avancei” em relação
a ele ou a outros críticos. Sou talvez um pouco idealista
nesse sentido (embora nada infenso a todas as emoções
menos respeitáveis!), e acho que estamos empenhados numa
empresa coletiva de “avançar”, isso sim, o conhecimento
do autor – esse é o objetivo, por exemplo, das minhas
edições das crônicas e dos contos. Trata-se não só disso,
mas de fazer com que Machado seja lido – nesse contexto,
fiquei muito feliz com as vendas das minhas duas antologias
dos contos, editadas pela Companhia das Letras. Talvez
minha contribuição maior seja também a mais notória, a
de argumentar que há sentidos históricos ocultos, alegóricos,
nos romances da maturidade, e em alguns contos. Sei que
continua havendo muitas pessoas que acham que meus argumentos
são “reducionistas”, mas o fato é que nunca vi uma refutação
que me convencesse – praticamente, nunca vi uma tentativa
elaborada, argumentada, de refutar meus argumentos. Claro
que há o perigo de exagerar nesse campo – de achar que
todo barbudo é Pedro II – mas elaboradas com cuidado,
com sensibilidade, com senso histórico, essas descobertas
iluminam muito a obra machadiana.
O assunto do olhar estrangeiro
é difícil. Fiquei muito feliz recentemente, ao ler uma
entrevista de Roberto Schwarz n’O Globo, onde diz que
eu e Jean-Michel Massa fazemos parte da crítica nacional.
Sem dúvida corta um nó górdio em vez de desintrincá-lo,
por assim dizer, mas nunca me considerei, ou quis me considerar,
uma figura à parte. Esse negócio de nacionalidade é mais
relativa do que se pode achar. Há várias maneiras de se
aproximar ao Brasil. Ia dizer que cada caso é diferente,
e claro que estou muito consciente de não ter crescido
no Brasil, de não viver no Brasil, de não ter tido uma
educação literária brasileira, etc etc. Talvez seja uma
questão de ir aprendendo e de assumir as próprias limitações.
O caso de Machado, porém,
tem aspectos curiosos – o caso mais óbvio é a possível
“inocência” de Capitu, que uma estrangeira, Helen Caldwell,
foi a primeira a ver. Não de deve esquecer que Lúcia Miguel-Pereira,
infelizmente no mesmo ano em que morreu tragicamente em
desastre de avião, afirmou uma coisa bem semelhante –
vê como há vários fatores nisto tudo, como tudo é relativo,
porque desconfio que o fato de ser mulher teve muito a
ver no insight dela. Ora, Machado não era mulher nem estrangeiro,
mas, sem dúvida, por ter visto como ninguém a sociedade
brasileira de baixo e de cima, era capaz de incorporar
uma outra visão, de ver de dentro e de fora (é isso que
faz com os seus narradores mais notórios, Brás Cubas e
Dom Casmurro). Talvez, nessa medida, seja uma vantagem
nascer, por assim dizer, com uma visão dupla, mas que
seja essencial, seria muito ousado afirmar, e nunca diria
tanto.
JU – Por
que, em sua opinião, a obra machadiana é pouco difundida
fora dos limites do Brasil? Tem peso a nossa condição
“periférica”? E as traduções, sobretudo para o inglês,
estão à altura?
Gledson – Por várias razões, incluindo as óbvias
– a língua portuguesa não tem o poder no mercado que têm
o espanhol, o russo, etc. Mas há outras, mais sutis talvez.
Machado é único – ele não faz parte de uma constelação
de autores que irrompem no mundo literário, como os russos
no século XIX, ou os hispano-americanos nos anos 60 e
70 do século XX. Num livro recente, Luís Augusto Fischer
argumenta que a Machado faltou – o que não faltou a Poe
e a Borges, dois autores que sim tiveram sucesso considerável
por aí fora, a experiência da moderna cidade européia
– o Rio de Janeiro do século XIX, por crucial que seja
na obra machadiana, era uma cidade de compleição bastante
diferente de Londres ou Paris. A frustração que eu tenho
é que, ao traduzir Machado, me dou conta cada vez mais
que isto é grande literatura, mas que boa parte da grandeza
encontra-se em detalhes (como disse Roberto Schwarz, Machado
é “detalhista ao extremo”), tons de ironia etc, que –
não é que não sejam traduzíveis – mas não saltam aos olhos.
Não devemos desesperar – vai ser publicada agora na Inglaterra
uma antologia de vinte contos, de minha lavra, intitulada
A Chapter of Hats and other stories, que é mais um tijolo
no edifício que estamos, espero, construindo.
A história da tradução
de Machado para o inglês tem episódios tristes e escandalosos,
e é bom que se saiba disso. Num caso de uma tradução de
Dom Casmurro, omitiram-se nove capítulos! Menos conhecido,
mas tão escandaloso quanto, é a tradução de Memórias póstumas
de Brás Cubas pelo famoso tradutor de Cien años de soledad,
Gregory Rabassa, e publicada pela Oxford University Press.
A tradução está plagada de erros e infelicidades, e muito
pior do que a primeira tradução, Epitaph of a Small Winner,
feita por William Grossman. Quem quiser verificar, basta
ler e comparar. Escrevi um ensaio sobre o assunto, Traduzindo
Machado de Assis, publicado em A obra de Machado de Assis,
livro que reúne os ensaios premiados do 1o Concurso Internacional
Machado de Assis, do Ministério de Assuntos Exteriores.
Fora essas traduções realmente imperdoáveis, diria que
a situação é bastante melhor.