Sidney Chalhoub
Rio de Janeiro, 5 de abril
de 1888. Imagine um rapagão catita, a flanar pela rua
do Ouvidor. Postura empertigada, olhar à direita, à esquerda,
a cumprimentar outros que tais, conhecidos de vista e
de chapéu. Mais adiante, um garoto anuncia aos gritos
a Gazeta de Notícias, 40 réis, com as últimas novidades
sobre o projeto do governo a respeito da abolição da escravidão,
assunto do momento. O guapo apalpa os bolsos do paletó,
resgata dois vinténs, compra o jornal e enfia Confeitaria
Paschoal adentro, não sem antes lançar um olhar furtivo
aos pezinhos da dama que descia do carro logo à sua frente.
Se preferir, figure um trabalhador negro em mangas de
camisa, a começar a caminhada no Campo de Santana, depois
rua Visconde do Rio Branco em direção à Praça da Constituição,
para quebrar à direita na rua do Lavradio, em meio ao
ir e vir de carregadores, caixeiros, marinheiros, meganhas.
Veja-o entrar no botequim quase à esquina, sentar, pedir
ao caixeiro português uma branquinha, porque depois de
um dia a cavoucar é preciso relaxar, para então soletrar
em voz alta a Gazeta de Notícias, ouvidos espichados todos
à volta, escravidão, abolição, liberdade, indenização,
fuga em massa de escravos das fazendas...
À segunda página, nossos
dois leitores imaginários encontrariam o “Bons Dias!”,
primeira crônica de uma série de Machado de Assis, mas
não saberiam que era dele o texto, mesmo que se importassem
com isso, pois a peça vinha sem assinatura, cortês na
saída como na entrada, “Boas Noites”. Seu autor fictício
apresentava-se como um ex-relojoeiro, que abandonara o
ofício “cansado de ver que os relógios deste mundo não
marcam a mesma hora”. Se o relógio atrasa, não adianta,
dizia-se jocosamente àquele tempo. Anunciava a intenção
de aparecer “uma vez por semana, com o meu chapéu na mão,
e os bons dias na boca”. Chamava-se Policarpo, descobrir-se-ia
algumas crônicas depois, era um tanto brincalhão, dizendo-se
às vezes distraído, mas sempre empenhado em arrancar “aos
fatos uma significação, e, depois, uma opinião”. Estão
aí, em síntese, os elementos que permitiriam a Machado
de Assis acompanhar em detalhe, nas semanas seguintes,
por meio de textos de crítica social densa e humor cortante,
a crise terminal da instituição da escravidão, assim como
refletir sobre as suas possíveis conseqüências quanto
ao futuro da sociedade brasileira. Policarpo dialogava
com os leitores e, ao fazê-lo, mostrava compartilhar com
eles as incertezas do tempo.
O relojoeiro tornado cronista
esforçava-se para entender os diferentes pontos de vista
à baila sobre o problema da abolição. Relógios não podiam
discrepar, pois a “única explicação dos relógios era serem
iguaizinhos”. Quanto aos assuntos políticos, ao contrário,
se parecia natural que houvesse opiniões divergentes,
tinha de existir uma explicação razoável para cada perspectiva.
Policarpo esforçava-se por mostrar identidade com os modos
de ver dos senhores de escravos, pois deviam ser também
os seus. Numa crônica em que se gabava de sua boa educação
em “terra de malcriados”, dizia ter sido criado por Florinda,
“uma ama, escrava”, e “apesar de escrava e ama, nunca
lhe pus a boca no seio para mamar, que não pedisse licença”.
Pedia com “um gesto dos olhos”. Em suma, o hábito da polidez
lhe era natural, assim como o era a existência de uma
ama escrava para lhe servir. Além disso, Policarpo possuía
um escravo, o “molecote” Pancrácio, de “seus dezoito anos,
mais ou menos”.
Todavia,
não parecia fácil dar sentido aos acontecimentos em meio
ao turbilhão daqueles dias. Se os escravos lutavam pela
liberdade, os senhores de escravos defendiam a sua propriedade,
ou ao menos queriam ser indenizados caso a perdessem.
Policarpo matutava: “Lá que eu gosto da liberdade, é certo;
mas o princípio da propriedade não é menos legítimo. Qual
deles escolheria? Vivia assim, como uma peteca (salvo
seja), entre as duas opiniões”. Lera no próprio jornal
sobre uma reunião de acionistas do Banco Predial para
tratar do problema dos escravos hipotecados. Em meio aos
discursos proferidos, houve um tal Vilela que considerou
a discussão toda sem sentido, “porque já não existem mais
escravos”. Policarpo nem tivera tempo de ficar alegre
com a notícia, pois recebera em seguida uma mensagem assinada
por cerca de 600 mil pessoas, que solicitavam a correção
do que dissera o tal acionista: “Há escravos, eles próprios
o são”. Os cativos signatários da carta observavam que
“As palavras do Sr. Fernando Vilela podem ser entendidas
de dois modos, conforme o ouvinte ou o leitor trouxer
uma enxada às costas, ou um guarda-chuva debaixo do braço.
Vendo as coisas, de guarda-chuva, fica-se com uma impressão;
de enxada, a impressão é diferente”. Por cima dos ombros
de Policarpo, numa tirada de humor cáustico, Machado de
Assis lembrava que o que estava em jogo naqueles dias
era o destino de centenas de milhares de pessoas que permaneciam
escravizadas e que tinham a sua própria maneira de interpretar
os debates políticos em curso sobre o assunto.
Quiçá o principal tema
de Machado de Assis nesses textos tenha sido a continuação
da resistência escravocrata na undécima hora, além da
dificuldade de amplos setores daquela sociedade em imaginar
o mundo sem escravidão. A luta de escravos e abolicionistas
trouxera balbúrdia completa às hostes escravocratas, nas
quais passara a predominar o mote do salve-se quem puder.
Na crônica de 11 de maio de 1888, Policarpo mostra-se
perplexo com as notícias de que em Campos e Ouro Preto
havia fazendeiros dispostos a contratar escravos fugidos
de outros proprietários, pagando-lhes salário, “e parece
que bom salário”. Ora, “desde que os interessados rompiam
assim a solidariedade do direito comum, é que a questão
passava a ser de simples luta pela vida, e eu, em todas
as lutas, estou sempre do lado do vencedor”. Mas como
ser um vencedor, numa hora dessas, sendo também proprietário
de escravos?
Os jornais daqueles dias
estavam cheios de notícias de “alforrias incondicionais,
que vêm cair como estrelas no meio da discussão da lei
da abolição”, reparava Policarpo. Com a abolição cousa
decidida, aguardando-se apenas a lei que viria dias depois,
tais alforrias consistiam em esforço desesperado e patético
de alguns proprietários de escravos para deter a fuga
em massa de seus cativos, já que não podiam mais controlá-los.
A esperança era que os escravos libertados pela iniciativa
senhorial aceitassem ficar nas fazendas para trabalhar
na colheita daquele ano, agradecidos aos proprietários
por sua generosidade.
É
este momento de desorganização das relações entre senhores
e escravos, descrito por Ferreira de Araújo, o dono da
Gazeta de Notícias, como caracterizado pelo fato de os
senhores já pensarem mais em “libertar-se dos escravos,
do que em libertar escravos”, o assunto da crônica hilariante
de 19 de maio de 1888. Nela, Policarpo conta que, antecipando-se
à lei de abolição de 13 de maio, concedera liberdade ao
seu “molecote” Pancrácio já no dia 7, pois que “os homens
puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os
que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo
ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos,
sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar
a justiça na terra, para satisfação do céu”. Policarpo,
assim como os fazendeiros dos quais tanto se falava naqueles
dias, tinha a esperança de que, agradecido, Pancrácio
continuasse a trabalhar para ele em troca de um pequeno
ordenado. A crônica inteira é escrita no mote da auto-ilusão
senhorial, que imaginava ainda poder influir no rumo dos
acontecimentos no momento em que mais estava ao reboque
deles.
Impressiona também, no
modo sarcástico como Machado de Assis representa o ponto
de vista escravocrata, a ênfase dos senhores na defesa
do direito de propriedade. Como Machado sabia tão bem,
até pelo motivo de ter lidado com isto ano após ano, em
sua condição de chefe de repartição no ministério da Agricultura,
o liberalismo era a última trincheira de defesa da escravidão
na sociedade brasileira oitocentista. Para muita gente
graúda no século XIX brasileiro, escravidão e liberalismo
eram as duas faces da mesma moeda, doutrina que manteve
os escravocratas aguerridos mesmo após o 13 de maio, pois
insistiam em seu direito constitucional de indenização
pela propriedade perdida.
Na expectativa de que
a indenização fosse afinal aprovada pelo governo, Policarpo
expõe uma idéia originalíssima na crônica de 26 de junho
de 1888. Ele se propunha a comprar quinhentos libertos.
O truque era simples. Aproximar-se-ia de fazendeiros que
tivessem ex-escravos contratados. Acordaria com eles a
obtenção de escrituras de compra dos trabalhadores datadas
de 29 de abril de 1888, portanto antes da lei de abolição.
O preço que constaria da escritura seria o vigente desde
a lei de 1885. O preço real pago por cada trabalhador
seria bem inferior, dez mil-réis cada. Depois, “ficava
esperando”. “Esperando o quê? Esperando a indenização,
com todos os diabos! Quinhentos libertos, a trezentos
mil-réis, termo médio, eram cento e cinqüenta contos”.
Bastaria apresentar as escrituras ao poder público, tudo
sem o inconveniente de lidar com os trabalhadores, transformados
em papéis a resgatar junto ao Tesouro Nacional. Ao ridicularizar
a pretensão de indenizar proprietários de escravos, Machado
de Assis buscava intervir nas lutas políticas do seu tempo,
deixando ver também que a luta contra as injustiças do
legado escravocrata jaziam à frente, quiçá continuem à
nossa frente.