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A abolição em crônicas

Sidney Chalhoub

Rio de Janeiro, 5 de abril de 1888. Imagine um rapagão catita, a flanar pela rua do Ouvidor. Postura empertigada, olhar à direita, à esquerda, a cumprimentar outros que tais, conhecidos de vista e de chapéu. Mais adiante, um garoto anuncia aos gritos a Gazeta de Notícias, 40 réis, com as últimas novidades sobre o projeto do governo a respeito da abolição da escravidão, assunto do momento. O guapo apalpa os bolsos do paletó, resgata dois vinténs, compra o jornal e enfia Confeitaria Paschoal adentro, não sem antes lançar um olhar furtivo aos pezinhos da dama que descia do carro logo à sua frente. Se preferir, figure um trabalhador negro em mangas de camisa, a começar a caminhada no Campo de Santana, depois rua Visconde do Rio Branco em direção à Praça da Constituição, para quebrar à direita na rua do Lavradio, em meio ao ir e vir de carregadores, caixeiros, marinheiros, meganhas. Veja-o entrar no botequim quase à esquina, sentar, pedir ao caixeiro português uma branquinha, porque depois de um dia a cavoucar é preciso relaxar, para então soletrar em voz alta a Gazeta de Notícias, ouvidos espichados todos à volta, escravidão, abolição, liberdade, indenização, fuga em massa de escravos das fazendas...

Acima, vendedoras no mercado, no Rio, em foto de 1875; abaixo, charges da Revista Ilustrada sobre a Abolição (à esq.) e Ferreira de Araújo, o dono da Gazeta de Notícias (Fotos: Marc Ferrez/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles)

À segunda página, nossos dois leitores imaginários encontrariam o “Bons Dias!”, primeira crônica de uma série de Machado de Assis, mas não saberiam que era dele o texto, mesmo que se importassem com isso, pois a peça vinha sem assinatura, cortês na saída como na entrada, “Boas Noites”. Seu autor fictício apresentava-se como um ex-relojoeiro, que abandonara o ofício “cansado de ver que os relógios deste mundo não marcam a mesma hora”. Se o relógio atrasa, não adianta, dizia-se jocosamente àquele tempo. Anunciava a intenção de aparecer “uma vez por semana, com o meu chapéu na mão, e os bons dias na boca”. Chamava-se Policarpo, descobrir-se-ia algumas crônicas depois, era um tanto brincalhão, dizendo-se às vezes distraído, mas sempre empenhado em arrancar “aos fatos uma significação, e, depois, uma opinião”. Estão aí, em síntese, os elementos que permitiriam a Machado de Assis acompanhar em detalhe, nas semanas seguintes, por meio de textos de crítica social densa e humor cortante, a crise terminal da instituição da escravidão, assim como refletir sobre as suas possíveis conseqüências quanto ao futuro da sociedade brasileira. Policarpo dialogava com os leitores e, ao fazê-lo, mostrava compartilhar com eles as incertezas do tempo.

O relojoeiro tornado cronista esforçava-se para entender os diferentes pontos de vista à baila sobre o problema da abolição. Relógios não podiam discrepar, pois a “única explicação dos relógios era serem iguaizinhos”. Quanto aos assuntos políticos, ao contrário, se parecia natural que houvesse opiniões divergentes, tinha de existir uma explicação razoável para cada perspectiva. Policarpo esforçava-se por mostrar identidade com os modos de ver dos senhores de escravos, pois deviam ser também os seus. Numa crônica em que se gabava de sua boa educação em “terra de malcriados”, dizia ter sido criado por Florinda, “uma ama, escrava”, e “apesar de escrava e ama, nunca lhe pus a boca no seio para mamar, que não pedisse licença”. Pedia com “um gesto dos olhos”. Em suma, o hábito da polidez lhe era natural, assim como o era a existência de uma ama escrava para lhe servir. Além disso, Policarpo possuía um escravo, o “molecote” Pancrácio, de “seus dezoito anos, mais ou menos”.

Foto: Editora da UnicampTodavia, não parecia fácil dar sentido aos acontecimentos em meio ao turbilhão daqueles dias. Se os escravos lutavam pela liberdade, os senhores de escravos defendiam a sua propriedade, ou ao menos queriam ser indenizados caso a perdessem. Policarpo matutava: “Lá que eu gosto da liberdade, é certo; mas o princípio da propriedade não é menos legítimo. Qual deles escolheria? Vivia assim, como uma peteca (salvo seja), entre as duas opiniões”. Lera no próprio jornal sobre uma reunião de acionistas do Banco Predial para tratar do problema dos escravos hipotecados. Em meio aos discursos proferidos, houve um tal Vilela que considerou a discussão toda sem sentido, “porque já não existem mais escravos”. Policarpo nem tivera tempo de ficar alegre com a notícia, pois recebera em seguida uma mensagem assinada por cerca de 600 mil pessoas, que solicitavam a correção do que dissera o tal acionista: “Há escravos, eles próprios o são”. Os cativos signatários da carta observavam que “As palavras do Sr. Fernando Vilela podem ser entendidas de dois modos, conforme o ouvinte ou o leitor trouxer uma enxada às costas, ou um guarda-chuva debaixo do braço. Vendo as coisas, de guarda-chuva, fica-se com uma impressão; de enxada, a impressão é diferente”. Por cima dos ombros de Policarpo, numa tirada de humor cáustico, Machado de Assis lembrava que o que estava em jogo naqueles dias era o destino de centenas de milhares de pessoas que permaneciam escravizadas e que tinham a sua própria maneira de interpretar os debates políticos em curso sobre o assunto.

Quiçá o principal tema de Machado de Assis nesses textos tenha sido a continuação da resistência escravocrata na undécima hora, além da dificuldade de amplos setores daquela sociedade em imaginar o mundo sem escravidão. A luta de escravos e abolicionistas trouxera balbúrdia completa às hostes escravocratas, nas quais passara a predominar o mote do salve-se quem puder. Na crônica de 11 de maio de 1888, Policarpo mostra-se perplexo com as notícias de que em Campos e Ouro Preto havia fazendeiros dispostos a contratar escravos fugidos de outros proprietários, pagando-lhes salário, “e parece que bom salário”. Ora, “desde que os interessados rompiam assim a solidariedade do direito comum, é que a questão passava a ser de simples luta pela vida, e eu, em todas as lutas, estou sempre do lado do vencedor”. Mas como ser um vencedor, numa hora dessas, sendo também proprietário de escravos?

Os jornais daqueles dias estavam cheios de notícias de “alforrias incondicionais, que vêm cair como estrelas no meio da discussão da lei da abolição”, reparava Policarpo. Com a abolição cousa decidida, aguardando-se apenas a lei que viria dias depois, tais alforrias consistiam em esforço desesperado e patético de alguns proprietários de escravos para deter a fuga em massa de seus cativos, já que não podiam mais controlá-los. A esperança era que os escravos libertados pela iniciativa senhorial aceitassem ficar nas fazendas para trabalhar na colheita daquele ano, agradecidos aos proprietários por sua generosidade.

Foto: Editora da UnicampÉ este momento de desorganização das relações entre senhores e escravos, descrito por Ferreira de Araújo, o dono da Gazeta de Notícias, como caracterizado pelo fato de os senhores já pensarem mais em “libertar-se dos escravos, do que em libertar escravos”, o assunto da crônica hilariante de 19 de maio de 1888. Nela, Policarpo conta que, antecipando-se à lei de abolição de 13 de maio, concedera liberdade ao seu “molecote” Pancrácio já no dia 7, pois que “os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu”. Policarpo, assim como os fazendeiros dos quais tanto se falava naqueles dias, tinha a esperança de que, agradecido, Pancrácio continuasse a trabalhar para ele em troca de um pequeno ordenado. A crônica inteira é escrita no mote da auto-ilusão senhorial, que imaginava ainda poder influir no rumo dos acontecimentos no momento em que mais estava ao reboque deles.

Impressiona também, no modo sarcástico como Machado de Assis representa o ponto de vista escravocrata, a ênfase dos senhores na defesa do direito de propriedade. Como Machado sabia tão bem, até pelo motivo de ter lidado com isto ano após ano, em sua condição de chefe de repartição no ministério da Agricultura, o liberalismo era a última trincheira de defesa da escravidão na sociedade brasileira oitocentista. Para muita gente graúda no século XIX brasileiro, escravidão e liberalismo eram as duas faces da mesma moeda, doutrina que manteve os escravocratas aguerridos mesmo após o 13 de maio, pois insistiam em seu direito constitucional de indenização pela propriedade perdida.

Na expectativa de que a indenização fosse afinal aprovada pelo governo, Policarpo expõe uma idéia originalíssima na crônica de 26 de junho de 1888. Ele se propunha a comprar quinhentos libertos. O truque era simples. Aproximar-se-ia de fazendeiros que tivessem ex-escravos contratados. Acordaria com eles a obtenção de escrituras de compra dos trabalhadores datadas de 29 de abril de 1888, portanto antes da lei de abolição. O preço que constaria da escritura seria o vigente desde a lei de 1885. O preço real pago por cada trabalhador seria bem inferior, dez mil-réis cada. Depois, “ficava esperando”. “Esperando o quê? Esperando a indenização, com todos os diabos! Quinhentos libertos, a trezentos mil-réis, termo médio, eram cento e cinqüenta contos”. Bastaria apresentar as escrituras ao poder público, tudo sem o inconveniente de lidar com os trabalhadores, transformados em papéis a resgatar junto ao Tesouro Nacional. Ao ridicularizar a pretensão de indenizar proprietários de escravos, Machado de Assis buscava intervir nas lutas políticas do seu tempo, deixando ver também que a luta contra as injustiças do legado escravocrata jaziam à frente, quiçá continuem à nossa frente.

A principal fonte para a elaboração deste artigo foi Bons Dias! Machado de Assis, introdução e notas de John Gledson, Campinas, Editora da Unicamp, 2008 (3a. edição).

 

Quem é


Sidney Chalhoub


Sidney Chalhoubé professor titular no departamento de história da Unicamp, onde leciona desde 1985. Suas publicações mais relevantes para o tema deste artigo são: Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte (Companhia das Letras, 1990); Machado de Assis, historiador (Companhia das Letras, 2003) e, em colaboração com Leonardo Pereira e Margarida Neves, a coletânea intitulada História em cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil (Editora da Unicamp, 2005).

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