Jefferson Cano
É
ponto mais que pacífico, para a historiografia literária,
a divisão da produção ficcional de Machado de Assis em
duas fases, uma dita romântica e outra realista. O próprio
Machado, ao escrever, em 1905, uma advertência à reedição
de Ressurreição, havia se referido a esse romance como
pertencente à “primeira fase da minha vida literária”.
Não era, porém, do próprio Machado os qualificativos de
romântico ou realista que lhe seriam atribuídos pela crítica
posterior.
Na verdade, se é inegável
o sentido de ruptura com o romantismo que Memórias Póstumas
de Brás Cubas assume no conjunto da obra de Machado, também
é – ou devia ser – igualmente conhecida a sua recusa ao
realismo, explicitada em 1878 (dois anos antes de Brás
Cubas), numa resenha sobre O Primo Basílio, de Eça de
Queiroz, que acabava de ser publicado. “Voltemos os olhos
para a realidade, mas excluamos o realismo, assim não
sacrificaremos a verdade estética” – diria Machado naquela
ocasião, exortando aos jovens que não se deixassem “seduzir
por uma doutrina caduca, embora no verdor dos anos”. Mais
tarde, a notória virada nos rumos da produção machadiana
faria com que ele acabasse identificado a tudo que tão
violentamente condenara.
Não é, porém, o nosso
objetivo nesse momento discutir a relação de Machado com
o realismo, mas chamar a atenção para o fato de que, ainda
antes de refutar a estética realista, Machado também já
podia olhar com certo distanciamento para sua herança
romântica, à qual seria assimilada toda a produção de
sua chamada primeira fase. Embora espalhasse seus escritos
pela imprensa desde o final da década de 1850, Machado
estrearia em livro com uma coletânea de contos publicada
em 1870, os Contos Fluminenses. Em 1872, seria a vez da
estréia em romances, com Ressurreição, e no ano seguinte
sairia uma segunda coletânea de contos, Histórias da Meia-Noite,
publicada ao mesmo tempo em que Machado preparava seu
segundo romance, A mão e a luva, que sairia em 1874. Ao
publicar as Histórias da Meia-Noite, Machado já possuía
todo o distanciamento necessário em relação à estética
romântica para fazer a sua crítica, como de fato fazia.
E os seus leitores contemporâneos já percebiam que o alcance
dessa crítica ia além dos estilos literários em voga na
época, como se lia numa resenha anônima publicada no jornal
A Reforma, em 18 de novembro de 1873: “Não perde o Sr.
Machado de Assis a ocasião que se lhe apresenta de censurar
o lado ridículo da sociedade”.
Livro dos mais intrigantes
quanto ao seu lugar e significado no conjunto da produção
machadiana, Histórias da Meia-Noite coloca o leitor diante
de um dilema desde seu primeiro conto, “A parasita azul”.
A narrativa começa com o regresso ao Brasil do protagonista
Camilo, filho de um abastado fazendeiro que volta ao país
após oito anos de estudos e vadiagens pela Europa. A cena
de abertura, retratando a melancolia e o tédio do protagonista
ao reencontrar a pátria, reúne todos os elementos opostos
aos que já haviam sido consagrados na produção romântica
— por exemplo, nas diferentes versões da “Canção do Exílio”.
Na inversão da tópica nacionalista, a terra de exílio
passava a ser justamente a terra natal, para a qual voltava
o filho estrangeirado, sentindo saudades da Europa, onde
vivera uma vida “solta e dispendiosa”. No contato com
a terra natal, tudo se torna motivo para chocar o gosto
parisiense do rapaz: a cantiga entoada à viola por um
tropeiro o faz lembrar com tristeza as volatas da ópera;
os sons noturnos de feras, aves, grilos e rãs forma uma
“ópera do sertão”, “à qual preferia indubitavelmente a
ópera cômica”; e até uma festa do Espírito Santo serve
ao espanto de Camilo, que “tendo vivido oito anos no meio
de uma civilização diversa, não imaginava que ainda existissem
costumes que ele julgava enterrados”.
Uma a uma vão se frustrando,
assim, todas as expectativas que o leitor possa alimentar
em relação a um herói romântico: seu patriotismo é no
fundo traição, pois a pátria da qual sente saudades é
a terra estrangeira; sua identificação não é com a natureza
do torrão natal, mas com a civilização e seus artifícios;
em vez de um sentimento puro e autêntico, seus amores
são vividos entre prostitutas. E quando ele finalmente
se apaixona por uma bela provinciana, Isabel, o sentimento
é tão violento que temos até uma tentativa de suicídio,
mas como pura simulação, na tentativa de vencer as resistências
da donzela.
Mas é na explicação dos
motivos dessa resistência que se encontrará mais uma ironia
– e talvez a maior – da narrativa: Isabel guardava seu
amor para alguém que, na infância, colhera e lhe dera
uma parasita azul, que ela guardava desde então; esse
alguém, na verdade, era o próprio Camilo, o qual por sua
vez tentava conquistar o amor de Isabel tendo já esquecido
o episódio da infância. Esse episódio era afinal o único
obstáculo à felicidade do casal, pois que Isabel, apegada
à imagem idealizada de seu primeiro amor, não podia contentar-se
com a paixão real de Camilo, muito mais recente que a
sua. No final, superados os desencontros e reconciliados
os precoces amantes, ambos poderão enfim chegar ao casamento.
É claro que esse desfecho da história evocava diretamente
o desfecho de A Moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo,
publicado em 1844. Na verdade, se lida em chave séria,
a narrativa de Machado poderia ser entendida não apenas
como uma história romântica – tanto por seus lances folhetinescos
como por seu final feliz, por exemplo – mas como um exemplo
do delicado equilíbrio entre uma mediocridade disfarçada
e um pastiche descarado. O dilema que se coloca à leitura
é entre o plágio e a paródia, pois é quando lida em chave
paródica que a história ganha novo interesse. E não só
por essa referência mais explícita a uma obra bem conhecida
do público, mas até mesmo pelo acúmulo de elementos romanescos
que se sucedem na história, ia-se formando para o leitor
um sentido acessível de ironia em relação à própria literatura
romântica.
Se acompanhássemos passo
a passo, em cada narrativa do livro, os elementos que
permitem ao leitor duvidar do romanesco aparente e elaborar
esse outro nível de significação, veríamos então que muito
cedo em sua carreira ficcional Machado já colocava em
perspectiva irônica os procedimentos literários consagrados
pelos autores românticos. Isso não significa dizer que
podemos recuar a datação de um Machado realista, pois
que a mesma perspectiva irônica seria aplicada também
em relação à nova escola. Quando muito poderíamos concluir
que, ao questionar os parâmetros do romantismo, Machado
não subscrevia simplesmente as propostas estéticas do
realismo, assim como, ao recusar explicitamente a doutrina
realista, Machado não propunha simplesmente um recuo ao
romantismo da geração passada.
Mas então temos que reconhecer
que só concluímos algo sobre o que Machado não era, ou
o que ele não fazia, carecendo de qualquer definição positiva,
que nos leve a entender porque, afinal, podia fazer sentido
para a crítica, ao longo de tanto tempo, repetir a classificação
da obra machadiana justamente segundo as rubricas de romântica
e realista. É uma questão que não pode ser ignorada, sobretudo
porque, nos três romances publicados na seqüência de Histórias
da Meia-Noite (A mão e a luva, em 1874, Helena, em 1876
e Iaiá Garcia, em 1878), ninguém afirmaria a existência
da mesma ironia que se pode entender presente naqueles
contos.
Não se trata, de fato,
de querer negar a presença do romanesco como um elemento
sério, não irônico, nas obras da primeira fase, assim
como não se poderia tampouco negar o realismo presente
na construção das obras da segunda fase. Mas cabe ter
sempre em mente que a produção dessas obras não deve ser
pensada como uma evolução linear, algo tão natural como
um amadurecimento pessoal do escritor, ou como um processo
que acontecesse isoladamente do meio literário com o qual
convivia o autor. Pelo contrário, as mudanças estéticas
na obra de Machado talvez devam ser entendidas como opções
conscientes, feitas em meio a um diálogo com a produção
literária de sua época, na qual se encontrariam os elementos
a serem operacionalizados segundo os interesses perseguidos
em cada obra. E, neste sentido, não pode ser minimizada
a importância da adequação das escolhas estéticas aos
temas tratados, pois, naqueles anos da década de 1870,
Machado parece ter encontrado numa tópica romântica por
excelência – os obstáculos impostos ao amor entre pessoas
de diferentes condições sociais – uma forma apropriada
à representação realista das relações de dominação existentes
na sociedade brasileira do século XIX. Assim, Machado
testava os limites da própria idéia de uma nacionalidade
literária, pois que, abrindo mão de temas como o exílio
e a natureza, servia-se de uma fórmula que podia ser vista
como universal – o amor impossível – para fazer dos dramas
e das tensões internas à família patriarcal brasileira
a cor local que revestiria suas obras.