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1880, o ano em que Machado se reinventa

Que teria acontecido a Machado de Assis no ano da graça de 1880? Entrava no undécimo ano de seu inalterável casamento e levava existência igualmente serena no serviço público, onde era estimado e gozava de alta reputação. Chegara aos 40 anos e, para os padrões intelectuais da época, granjeara já suficiente prestígio com os quatro romances que publicara até então.

A França já havia produzido Balzac e Stendhal, a Inglaterra Sterne e Fielding, a América Poe e Melville, mas o romance brasileiro mal acabara de completar 20 anos e parecia lastreado, não no vigor dos melhores realistas, mas na moral romântica do século. Estavam já plantadas as sementes do marxismo, Paris era agitada pelos impressionistas e no ano seguinte nasceria Picasso, mas essas eram vibrações que chegavam amortecidas pelo riso ou silenciavam na atmosfera abafadiça da sociedade escravocrata. As idéias que aqui circulavam eram as que resultariam, um pouco mais tarde, no positivismo militar.

Na aparência, o que tal sociedade desejava era o romance de caracteres, em que as instituições fossem enaltecidas e a moral preservada. Entre os valores a serem perpetuados incluíam-se, naturalmente, as tranqüilas convenções da forma e do estilo. Na introdução de seu primeiro romance (Ressurreição, 1872), Machado admite com placidez:

Carolina Augusta, mulher de Machado, em foto de 1869 (Foto: Fundação Casa de Rui Barbosa) “Tentei o esboço de uma situação e o contraste de dois caracteres; a crítica decidirá se a obra corresponde ao intuito”. Tratava-se de comprovar o bom uso de certas fórmulas e de submeter o resultado ao veredito dos juízes: “Convém dizer que o desenho de tais caracteres (...) foi o meu objetivo principal, servindo-me a ação apenas de tela em que lancei o contorno dos perfis”, diz no prefácio do romance seguinte (A mão e a luva, 1874).

Os caracteres, contudo, definiam-se pelo genérico e as convenções que regulavam suas relações deviam ser consideradas não apenas parte da estética, mas decorrência da própria natureza humana. Isso deixava Machado muito próximo do gosto da época e “a dois passos da mediocridade consolidada e satisfeita” (Gladstone Chaves de Melo). Nos quatro anos seguintes Machado publicaria dois outros romances na mesma linha – Helena, em 1876, e Iaiá Garcia, em 1878 –, encerrando aquela que ficou conhecida como sua fase romântica.

A transformação sofrida por Machado em 1880 resultou por certo da constatação das limitações dessa prática, e quiçá da percepção (súbita? maturada?) das alterações no ritmo do andamento histórico e dos equivalentes formais a ele inerentes. Levando-se em conta que “a lógica do tempo guarda estreita relação com a lógica do espaço” (Spengler), é possível que a concepção formal de Memórias póstumas de Brás Cubas – a obra que assinala a chegada da maturidade do autor e o separa qualitativamente de seus contemporâneos – tenha sido uma resposta premonitória à idéia moderna de velocidade, que tão profunda alteração traria à relação entre os conceitos de distância e tempo.

É certo que o quarentão, já curtido na madurez da crônica política (em curiosa contradição com certa juvenilidade de sua ficção até então), percebera que, sendo o romance uma arte temporal – o tempo determinando estrutura, linguagem e tom –, cabia reconsiderar tais valores temporais. Tratava-se de vê-los sob uma outra luz, clarificando o uso de instrumentos como andamento, continuidade e suspense, e adotando, de resto, uma atitude mais aberta em relação a problemas como seleção, seqüenciamento, causalidade e pontos de visualização. Apreender as novas concepções de tempo implicava, antes de mais nada, rever a noção de espaço. Disso resultaram as mudanças de perspectiva e a deformação do senso das proporções. O romance estava claramente diante de novas possibilidades técnicas.

Machado não esperava contar com a aprovação irrestrita para as transgressões que essas possibilidades incluíam. “A gente grave achará no livro umas aparências de puro romance”, escreve na introdução ao Brás Cubas, “ao passo que a gente frívola não achará nele o romance usual”. Não faz referência aos críticos de seu tempo, o que bem pode significar que já não escrevia para eles, mas, ao contrário, à revelia deles e de suas convenções. Na verdade, devia estar impregnado não só da liberdade formal de Sterne (influência já largamente estudada), mas também da rebelião espiritual de Fielding quando declara em Tom Jones: “Não me considero obrigado a prestar contas a quem quer que seja, pois sendo eu o fundador de uma nova província do escrever, acho-me em liberdade para fazer as leis que me satisfaçam”.

Ainda que muitas das novas leis machadianas tenham vindo de 120 anos atrás (Tristram Shandy, de Sterne, foi escrito entre 1760 e 1767), incidiam todavia no final de um século carregado de magistrais reiterações no enredo progressivo e na tradição causal. Se Goethe foi responsabilizado de, com a resistência galvânica de sua obra, ter imobilizado a língua alemã por dois séculos inteiros, que não dizer do poder de petrificação das formas quando se tem, não um, mas toda uma legião de escritores excepcionais trabalhando sob o rigor da causalidade e a simetria do tempo cronológico.

Real Gabinete Português de Leitura (foto de 1895), cuja diretoria organizou em 1880 a apresentação da comédia Tu só, tu, puro amor..., de Machado de Assis, em comemoração do tricentenário de Camões; o escritor passaria a ser sócio honorário da entidade em 1881 (Foto: Marc Ferrez/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles)Era natural que, rebelando-se contra convenções tão bem estatuídas e claras, Machado se defrontasse com problemas lingüísticos e literários novos. No centro desses problemas estão o tempo e sua corporificação no plano do texto. Recusar a primazia do tempo cronológico, que é o mesmo para todos e se mede pela continuidade, equivale a realçar o tempo psicológico, que é particular e se mede pela intensidade. Daí que, rompido o princípio de duração sucessiva e linear – e subvertida a espacialidade –, o romance deixaria de ser o conduto simétrico de imagens para se converter em construção angulosa com refrações, desvãos e jogos de sombras. Que isto veio a espelhar mais verdadeiramente os processos da experiência contemporânea pode ser comprovado no fato de que, quatro décadas mais tarde, em pleno século 20, tais técnicas tenham sido levadas a extremos por experimentalistas como Joyce, Dos Passos e Faulkner.

Num fragmento inédito de Sterne dado a público em 1870 por Paul Stapfer, lê-se o seguinte: “Os óculos podem fazer uma polegada parecer uma milha; deixo para época futuras inventarem um sistema que faça um minuto parecer um ano”. No célebre capítulo VII do Brás Cubas, intitulado “O delírio”, Machado tenta não só compactar alguns bilhões de anos em uns poucos instantes como ainda, dando-nos talvez a chave de seu método, faz o relógio andar para trás. A estética da maturidade machadiana está longe de consistir exclusivamente na inversão cronológica, que sequer podia ser considerada novidade técnica em si, mas é certo que esse recurso, muito útil na desmontagem da lógica realista, influi decisivamente na formatação do Brás Cubas e em toda a sua obra ulterior. A bem dizer, a transgressão não está exatamente em que as memórias comecem pelo fim, mas no fato de que o narrador, ao iniciá-las, se declara morto. Se se trata ou não de uma morte puramente analógica, importa pouco: o certo é que essa escolha define o tom e a dicotomia temporal da narrativa – um passado composto de fragmentos não explicitamente convergentes e um presente ficcional contínuo, organizador.

É dessa argamassa – o passado histórico e o presente do narrador – que o romance extrai alguns de seus recursos mais exuberantes e (agora sim) tecnicamente inovadores, como o uso de lacunas ativas entre as unidades dramáticas, as transições pelo sofisma, o retardamento por meio de digressões e o baralhamento cronológico mediante trocas de tempo. O tempo cronológico dura apenas enquanto for útil ao fato psicológico, que é de natureza subjetiva e varia de extensão segundo a economia do espírito, não a do relógio. Operando com os valores e as diferenças entre ambos níveis de tempo, Machado pôde regular à vontade o andamento da narrativa conforme suas necessidades de pressa ou lentidão, monotonia ou suspense.

O uso reiterativo do presente ficcional (que, morto o memorialista, é uma espécie de tempo suspenso na história) e a freqüente imobilização da ação terminam por rechear o romance de digressões que, mais que narrar ou comentar os fatos em si, desviam o foco de interesse para o modo como são narrados. Essas longueurs (reminiscências, exortações, presentificações) perfazem a maior parte da narrativa. Como Sterne, Machado faz assim meta-romance, não apenas recusando o estatuto de ficção ilusionista mas, indo além, insistindo em chamar a atenção do leitor para a materialidade do livro. À parte isto, a digressão machadiana bem pode ser situada entre a narrativa de ação causal e o romance sem enredo, ou, mais adiante, o fluxo de consciência. Mas aqui já é bastante evidente que o ritmo superou o enredo e que não estamos longe das técnicas de ação transversal (Dos Passos, Huxley) e dos artifícios de focalização múltipla (Joyce, Faulkner).

Convertida em exceção a progressão linear e em regra o processo fragmentário de montagem, a narrativa resulta permeada de lacunas que Machado preenche a seu modo, potencializando o silêncio e fazendo crer numa escritura subjacente à do texto visível. Pois a força de um autor freqüentemente se revela também (e às vezes principalmente) no que ele deixa de escrever. Se isto parece banal, é bom que se diga que, mesmo em nossos dias, nem todos os romancistas estão aptos a trabalhar com a inserção de grandes lacunas entre as unidades dramáticas, e muitos há sequer preparados para aceitá-las.

Se tais lacunas facilitam a flexibilidade do texto, deveriam dificultar, em princípio, as transições entre os incidentes. Machado, contudo, ou se vale habilmente do artifício do sofisma ou não raro faz delas – as transições – o seu próprio assunto antes de passar adiante. “E vejam agora com que destreza, com que arte faço eu a maior transição deste livro”, assim começa o capítulo IX, instrutivamente intitulado... “Transição”. E depois de uma breve recensão dos elementos do capítulo VIII, e a pretexto de recuar da sua morte a seu nascimento, faz o percurso retroativo delírio-Virgília-juventude-meninice-nascimento”, e conclui:

Viram? Nenhuma juntura aparente, nada que divirta a atenção do leitor: nada. De modo que o livro fica assim com todas as vantagens do método, sem a rigidez do método. Na verdade, era tempo. Que isto de método, sendo, como é, uma coisa indispensável, todavia é melhor tê-lo sem gravata nem suspensórios, mas um pouco à fresca e à solta.

Se era tempo de mudar o método, de suas uma: ou os leitores pediam um novo romance ou o romance pedia um novo leitor. É minha opinião que Machado, como Stendhal, e não obstante a devoção que lhe tributavam seus contemporâneos, escrevia com os pés fincados no presente e os olhos postos no futuro. “O maior defeito deste livro és tu, leitor”, diz ele no capítulo LXXI. E acrescenta:

Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem.

Que espécie de convicção movia Machado numa quadra em que Zola estabelecia o triunfo do romance de inventário e Tolstoi o fastígio dos grandes painéis históricos? Pois numa época de certezas formais e de estilos “regulares e fluentes”, ele ousava aplicar ao romance as leis irregulares da poética, que, como se sabe, viriam a reger as vertentes mais fecundas do romance do século seguinte. Não é à toa que, lá pelo capítulo LXXII, depois de referir-se à “crítica do futuro”, ele avança exatos 70 anos (isto é, até 1950) e entrevê “um sujeito magro, amarelo, grisalho” (um bibliômano) inclinado sobre o seu livro. A descrição desse espécime não é muito lisonjeira (afinal é alguém preocupado apenas com o valor comercial da brochura), mas, excluindo este particular, quem duvida que não foi a um de nós que ele descreveu?

Quem é


Eustáquio Gomes,


Eustáquio Gomes jornalista, escreveu, entre outros livros, os romances A febre amorosa, Jonas Blau e O mapa da Austrália. O presente texto, que sofreu apenas ligeiras alterações, é de 1988.

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