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Fortuna crítica revisitada

O professor, ensaísta e escritor Paulo Franchetti, do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp (IEL), acaba de fazer a revisão da fortuna crítica de Dom Casmurro. A tarefa resultou na introdução de uma nova edição da obra, com estabelecimento de texto e notas em parceria com Leila Guenther, a ser lançada em setembro pela Ateliê Editorial. Abaixo, o intelectual aborda pontos do seu estudo e do conjunto da obra machadiana.

Três momentos críticos
Um dos pontos mais interessantes, na fortuna crítica de Dom Casmurro, é o modo de descrever as personagens principais da história contada por Bento Santiago: ele mesmo e sua mulher, Capitu.

Folha de rosto da primeira edição de Dom CasmurroNos primeiros 60 anos de leitura do romance, a análise dos caracteres foi feita a partir do ponto de vista que conduzia a narrativa, isto é, a partir do ponto de vista de Bento. Capitu, então, no julgamento de críticos importantes, era pérfida, mentirosa por necessidade orgânica, lasciva, amoral. Já Bento tinha dupla caracterização: velho, era desiludido e amargurado; rapaz, tinha sido um tímido, de alma cândida, ingênuo e piedoso. A traição da mulher com o melhor amigo era a explicação da transformação de um em outro.

Um segundo momento crítico se abre em 1960, com a publicação do livro de Helen Caldwell, O Otelo brasileiro de Machado de Assis. Opera-se, com esse trabalho, uma radical inversão da perspectiva. Bento, acusado de mover um processo contra Capitu, passa a ser ele mesmo réu de um processo movido pela crítica. E Capitu, da mesma forma que antes fora demonizada, a partir do ponto de vista de Bento, é agora erguida a modelo de esposa dedicada, cuja falha única foi não conseguir vencer o ciúme doentio do marido. De modo que à idealização de Bentinho segue-se a idealização de Capitu: primeiro, como esposa inocente e dedicada; logo a seguir, com Gledson e Roberto Schwarz, como representante ou alegoria das Luzes, incapazes de triunfar na sociedade patriarcal brasileira.

Finalmente, um terceiro momento crítico começa quando a análise psicológica dos caracteres ou a leitura alegórica das personagens principais deixa de ser o foco da atenção.

O olhar de fora
Os estrangeiros têm tido papel muito relevante na crítica machadiana.

Helen Caldwell é o caso mais espetacular, pois foi a partir da sua leitura de Dom Casmurro que se transformou amplamente a maneira de ler a obra romanesca inteira de Machado.

Mas outros também ocupam lugares igualmente importantes na tradição crítica. Um deles é Jean-Michel Massa, autor de trabalhos de base, cuja relevância seria ocioso reafirmar. Outro é John Gledson.

Somente quando se lê, em ordem cronológica e de forma sistemática, a fortuna crítica de Machado de Assis é que se percebe o lugar real do trabalho de Gledson, e como ele foi central para o estabelecimento da segunda fase da leitura de Machado no Brasil. Quando ele publicou o seu primeiro livro sobre Machado, o único trabalho inovador que tinha surgido era Ao vencedor as batatas, de Roberto Schwarz. Mas a inovação desse livro, que focava apenas a primeira fase de Machado, residia em identificar, como cerne dos primeiros romances machadianos, o paternalismo e suas racionalizações. O impacto do livro, além do controvertido ensaio inicial sobre “as idéias fora do lugar”, residia em fazer daquelas primeiras obras objetos de interesse como ensaios de apreensão crítica da especificidade brasileira. Mas basta ver como termina aquele livro de 1977 e como começa a sua continuação, publicada em 1990, Um mestre na periferia do capitalismo (mesmo ano em que publica o seu primeiro trabalho importante sobre Dom Casmurro), para reconhecer o lugar e o papel transformador do livro de Gledson, Machado de Assis: Impostura e Realismo, publicado em inglês já em 1984.

Capa de O Otelo Brasileiro, de Helen Caldwell: divisor de águasFinalmente, é preciso registrar que o passo adiante, desta vez já como indicação crítica dos limites da perspectiva aberta por Caldwell e seguida por Gledson e Schwarz, é dado por outro estrangeiro, Abel Barros Baptista. Seus dois livros sobre Machado, recentemente lançados no Brasil pela Editora da Unicamp, ainda estão à espera de uma resposta crítica à altura, seja por conta dos autores cujas teses desmonta ou contesta, seja por conta dos jovens leitores de Machado de Assis.

Charada e armadilha
Uma questão importante, para uma vertente da fortuna crítica do autor, é a da destinação do texto do romance machadiano.

É um lugar-comum hoje dizer que Machado estava à frente do seu tempo, que escrevia para um leitor futuro. Roberto Schwarz escreveu que “como Stendhal, Machado escrevia para um público ainda inexistente”.

Ora, essa postulação cria um problema. Se escrevia para um leitor futuro e era ao mesmo tempo muito lido e respeitado pelo leitor seu contemporâneo, então este o admirava e dele gostava por um motivo secundário ou falso.

Machado resulta, assim, um mestre do disfarce. Tão eficaz seria esse disfarce que teria prevalecido por décadas. A explicação para a estima e para os lugares canônicos destinados a Machado em seu tempo recorre ao disfarce e à dinâmica da aparência e da essência. Para Gledson, por exemplo, desde a década de 1880, Machado se empenha no “logro do leitor”.

Para sustentar essa perspectiva é necessário supor que se possa identificar, com alguma dose de objetividade, a intenção escondida no texto. Ou, dizendo de outro modo, demonstrar que havia uma verdadeira intenção crítica, por trás da e contra a intenção aparente. Daí a leitura a contrapelo a que se dedicam os partidários dessa forma de ver o romance machadiano, em busca de indicações autorais ocultas ou semi-ocultas do leitor menos esperto ou desconfiado, que estariam ali, à espera do olhar capaz de reconstruí-las – pistas semeadas por Machado para que os seus futuros leitores não se confundissem e pudessem enfim reconstruir a sua verdadeira intenção.

Nesse quadro, o prestígio no seu próprio tempo é uma ironia que depõe contra o leitor e reforça a genialidade e a modernidade do autor.

O texto machadiano resulta, assim, uma armadilha para os contemporâneos e uma charada oferecida à decifração dos pósteros.

A postulação de uma intenção certa anda de mãos dadas com a de uma leitura correta – a que corresponde a essa intenção. Para usar um título de romance, são a mão e a luva. E não são desprezíveis nem a sua sedução – afinal, quem não quereria estar do lado correto, e quem não ficaria aliviado ao afastar qualquer suspeita de ingenuidade? – nem a coerção autoritária de definir a única maneira conseqüente de entender o texto.

Encontro de escritores e artisas em 1901: em pé, da esq. para a dir., Rodolfo Amoedo, Artur Azevedo, Inglês de Sousa, Olavo Bilac, José Veríssimo, Sousa bandeira, Filinto de Almeida Guimarães Passos, Valentim Magalhães, Rodolfo Bernardelli, Rodrigo Octavio, Heitor Peixoto; sentados: João Ribeiro, Machado de Assis, Lúcio de Mendonça e Silva Ramos (Fotos: Academia Brasileira de Letras/Reprodução)

Poder de resistência
Um efeito da crítica baseada na identificação da intenção do autor ou na decifração da sua charada ideológica é diminuir o interesse da leitura.

De fato, se o texto se constituísse basicamente como armadilha e ela já estivesse desarmada, por que lê-lo? Apenas para constatar a perícia do disfarce, da linguagem cifrada? Ou a habilidade do decifrador?

À distância de um século, que nos restaria senão contemplar, com interesse mais próximo do museológico, essa espécie de Pedra da Roseta literária?

Os que defendem essa forma de leitura provavelmente concordam com a crítica que Machado fez ao romance O Primo Basílio, de Eça de Queirós. Naquele texto, que me parece desfocado e ainda mal lido, Machado criticava o romance por julgar que nele as personagens eram títeres a serviço da demonstração de uma tese. Mas ao insistirem na presença, no texto do romance de Machado, de índices da intenção do autor na orientação da correta interpretação das ações e palavras dos narradores-autores dos romances da última fase, não estariam também esses críticos promovendo um caminho que, nos termos do próprio Machado, redundaria num defeito artístico? Em perda da coerência ficcional?

Essa maneira de ler termina por empobrecer o texto, por secá-lo até reduzi-lo a um conjunto de diagramas críticos, por meio dos quais Machado nos destinaria a sua real visão das questões candentes do tempo e procederia à crítica da ideologia paternalista.

Ora, esse pressuposto tem como problema adicional lançar a suspeita de conivência sobre qualquer identificação do leitor com as personagens ou com a voz narrativa dos romances da chamada “segunda fase” de Machado.

Posso tomar como exemplo o romance que tenho estudado com mais vagar, o Dom Casmurro. E que é central, nos debates sobre a forma moderna de ler o Machado. Bem, basta ler a moderna fortuna crítica na vertente intencionalista para constatar que qualquer adesão emocional ao drama de Bento tem de arcar com o peso da acusação dirigida aos primeiros leitores: logro operado por meio da cumplicidade com o ponto de vista da elite retrógrada do Brasil oitocentista.

Eça de Queirós: crítica polêmicaE tão sensível é esse peso, que o próprio John Gledson terminou por sentir-se obrigado a tematizá-lo. E o fez no mesmo texto no qual defende a tese do logro do leitor e da existência de uma leitura correta, de acordo com a intenção de Machado. Eis aqui:
Embora a descrição de Roberto Schwarz do tipo de elite que ele representa seja exata, Bento é um personagem com quem muitos leitores, e não só por causa de um compromisso ideológico subconsciente com a elite brasileira (só posso citar a mim mesmo como evidência), se identificarão, em um ou em vários níveis”. (Por um novo Machado de Assis, 2006 – texto de 1999)

De fato, esse é um movimento necessário para libertar a obra da instrumentalização excessiva a que foi submetida no quadro da leitura ideológica nacionalizante. Sendo otimista, creio que o fato de ele se impor mesmo a quem julga que essa forma de leitura seja a mais correta é um testemunho do poder de resistência do literário.

Recuo tático
Também a crítica de Machado ao romance de Eça tem sido objeto de uma apreciação de viés nacionalista, que me parece simplista e nociva ao melhor entendimento do momento e da inflexão na carreira literária do escritor brasileiro.

Quando O Primo Basílio chegou ao Brasil, Machado tinha acabado de publicar em volume o seu romance Iaiá Garcia. O romance de Eça fez furor. Não só pelo caráter escandaloso, que veio da forma como tratava as relações sexuais dos protagonistas, mas também pela novidade da linguagem. Machado de Assis publicou uma crítica dura em O Cruzeiro, um dos periódicos nos quais colaborava. Na seqüência, desencadeou-se a polêmica que obrigou Machado a escrever uma segunda crítica, na qual respondia aos seus opositores. Mas esse segundo texto não encerrou a polêmica. Alimentou-a. E a campanha pró-realismo no Brasil foi longa e divertida, embora bastante agressiva em relação a Machado. Tentei dar conta dela num artigo que foi republicado em Estudos de literatura brasileira e portuguesa, no ano passado, mostrando como Machado terminou por ser retratado como romântico conservador.

Para lermos adequadamente esse texto crítico de Machado, é preciso que o coloquemos em situação. Não foi o Machado de Memórias Póstumas de Brás Cubas ou de Dom Casmurro quem a escreveu. Foi o autor de A mão e a luva e Iaiá Garcia. O segundo Machado, em minha opinião, nasce diretamente da crise literária que se seguiu ao episódio de O Primo Basílio. Depois do sucesso de Eça no Brasil, a longa elaboração romanesca que resultara em Iaiá Garcia era um caminho sem futuro nem público. Assumir os pressupostos e o estilo do Realismo (depois denominado Naturalismo) não era uma possibilidade para Machado. A sua solução foi um recuo tático: adotou a forma do romance do século XVIII, isto é, acentuou o seu deslocamento em relação à tendência dominante do presente. A escolha da forma é também a escolha da perspectiva mutante que tanto se vale do registro do moralismo francês, quanto do da sátira menipéia, quanto da ironia romântica que ele bebera desde cedo na obra de Camilo. O resultado é o sabor de farsa que domina não só os dois primeiros romances da nova fase, mas ainda os que vêm depois. E o rendimento romanesco do recuo é notável não só pela invenção lingüística que advém da liberdade do ponto de vista narrativo, mas também (e isso será depois um traço valorizado na clave de leitura mais moderna) por meio da constituição do livro, da escrita do livro e da materialidade do livro, como tema central do romance – como bem mostra Abel Barros Baptista, em Autobibliografias.

Quem é


Paulo Franchetti


Paulo Franchetti é professor titular do Departamento de Teoria Literária da Unicamp; diretor executivo e presidente do Conselho Editorial da Editora da Unicamp. Publicou, entre outros livros, os ensaios Alguns aspectos da teoria da poesia concreta (1989), Nostalgia, exílio e melancolia - leituras de Camilo Pessanha (2001) e Estudos de literatura brasileira e portuguesa (2007) e O essencial sobre Camilo Pessanha. Publicou ainda a edição crítica da Clepsydra, de Camilo Pessanha (1995); a antologia As aves que aqui gorjeiam - a poesia do Romantismo ao Simbolismo (2005); a novela O sangue dos dias transparentes (2003) e a coletânea de haicais, Oeste (2008). Preparou, junto com Leila Guenther, para a Ateliê Editorial, edições anotadas de Iracema (2007), A cidade e as serras (2007) e Dom Casmurro (a ser lançada em setembro de 2008).

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