Três
momentos críticos
Um dos pontos mais interessantes, na fortuna crítica de
Dom Casmurro, é o modo de descrever as personagens principais
da história contada por Bento Santiago: ele mesmo e sua
mulher, Capitu.
Nos
primeiros 60 anos de leitura do romance, a análise dos
caracteres foi feita a partir do ponto de vista que conduzia
a narrativa, isto é, a partir do ponto de vista de Bento.
Capitu, então, no julgamento de críticos importantes,
era pérfida, mentirosa por necessidade orgânica, lasciva,
amoral. Já Bento tinha dupla caracterização: velho, era
desiludido e amargurado; rapaz, tinha sido um tímido,
de alma cândida, ingênuo e piedoso. A traição da mulher
com o melhor amigo era a explicação da transformação de
um em outro.
Um
segundo momento crítico se abre em 1960, com a publicação
do livro de Helen Caldwell, O Otelo brasileiro de Machado
de Assis. Opera-se, com esse trabalho, uma radical inversão
da perspectiva. Bento, acusado de mover um processo contra
Capitu, passa a ser ele mesmo réu de um processo movido
pela crítica. E Capitu, da mesma forma que antes fora
demonizada, a partir do ponto de vista de Bento, é agora
erguida a modelo de esposa dedicada, cuja falha única
foi não conseguir vencer o ciúme doentio do marido. De
modo que à idealização de Bentinho segue-se a idealização
de Capitu: primeiro, como esposa inocente e dedicada;
logo a seguir, com Gledson e Roberto Schwarz, como representante
ou alegoria das Luzes, incapazes de triunfar na sociedade
patriarcal brasileira.
Finalmente, um terceiro momento crítico começa quando
a análise psicológica dos caracteres ou a leitura alegórica
das personagens principais deixa de ser o foco da atenção.
O olhar de fora
Os estrangeiros têm tido papel muito relevante na crítica
machadiana.
Helen Caldwell é o caso mais espetacular, pois foi a partir
da sua leitura de Dom Casmurro que se transformou amplamente
a maneira de ler a obra romanesca inteira de Machado.
Mas outros também ocupam lugares igualmente importantes
na tradição crítica. Um deles é Jean-Michel Massa, autor
de trabalhos de base, cuja relevância seria ocioso reafirmar. Outro é John Gledson.
Somente quando se lê, em ordem cronológica e de forma
sistemática, a fortuna crítica de Machado de Assis é que
se percebe o lugar real do trabalho de Gledson, e como
ele foi central para o estabelecimento da segunda fase
da leitura de Machado no Brasil. Quando ele publicou o
seu primeiro livro sobre Machado, o único trabalho inovador
que tinha surgido era Ao vencedor as batatas, de Roberto
Schwarz. Mas a inovação desse livro, que focava apenas
a primeira fase de Machado, residia em identificar, como
cerne dos primeiros romances machadianos, o paternalismo
e suas racionalizações. O impacto do livro, além do controvertido
ensaio inicial sobre “as idéias fora do lugar”, residia
em fazer daquelas primeiras obras objetos de interesse
como ensaios de apreensão crítica da especificidade brasileira.
Mas basta ver como termina aquele livro de 1977 e como
começa a sua continuação, publicada em 1990, Um mestre
na periferia do capitalismo (mesmo ano em que publica
o seu primeiro trabalho importante sobre Dom Casmurro),
para reconhecer o lugar e o papel transformador do livro
de Gledson, Machado de Assis: Impostura e Realismo, publicado
em inglês já em 1984.
Finalmente,
é preciso registrar que o passo adiante, desta vez já
como indicação crítica dos limites da perspectiva aberta
por Caldwell e seguida por Gledson e Schwarz, é dado por
outro estrangeiro, Abel Barros Baptista. Seus dois livros
sobre Machado, recentemente lançados no Brasil pela Editora
da Unicamp, ainda estão à espera de uma resposta crítica
à altura, seja por conta dos autores cujas teses desmonta
ou contesta, seja por conta dos jovens leitores de Machado
de Assis.
Charada e armadilha
Uma questão importante, para uma vertente da fortuna crítica
do autor, é a da destinação do texto do romance machadiano.
É um lugar-comum hoje dizer que Machado estava à frente
do seu tempo, que escrevia para um leitor futuro. Roberto
Schwarz escreveu que “como Stendhal, Machado escrevia
para um público ainda inexistente”.
Ora, essa postulação cria
um problema. Se escrevia para um leitor futuro e era ao
mesmo tempo muito lido e respeitado pelo leitor seu contemporâneo,
então este o admirava e dele gostava por um motivo secundário
ou falso.
Machado resulta, assim, um mestre do disfarce. Tão eficaz
seria esse disfarce que teria prevalecido por décadas.
A explicação para a estima e para os lugares canônicos
destinados a Machado em seu tempo recorre ao disfarce
e à dinâmica da aparência e da essência. Para Gledson,
por exemplo, desde a década de 1880, Machado se empenha
no “logro do leitor”.
Para sustentar essa perspectiva
é necessário supor que se possa identificar, com alguma
dose de objetividade, a intenção escondida no texto. Ou,
dizendo de outro modo, demonstrar que havia uma verdadeira
intenção crítica, por trás da e contra a intenção aparente.
Daí a leitura a contrapelo a que se dedicam os partidários
dessa forma de ver o romance machadiano, em busca de indicações
autorais ocultas ou semi-ocultas do leitor menos esperto
ou desconfiado, que estariam ali, à espera do olhar capaz
de reconstruí-las – pistas semeadas por Machado para que
os seus futuros leitores não se confundissem e pudessem
enfim reconstruir a sua verdadeira intenção.
Nesse quadro, o prestígio no seu próprio tempo é uma ironia
que depõe contra o leitor e reforça a genialidade e a
modernidade do autor.
O texto machadiano resulta,
assim, uma armadilha para os contemporâneos e uma charada
oferecida à decifração dos pósteros.
A postulação de uma intenção certa anda de mãos dadas
com a de uma leitura correta – a que corresponde a essa
intenção. Para usar um título de romance, são a mão e
a luva. E não são desprezíveis nem a sua sedução – afinal,
quem não quereria estar do lado correto, e quem não ficaria
aliviado ao afastar qualquer suspeita de ingenuidade?
– nem a coerção autoritária de definir a única maneira
conseqüente de entender o texto.
Poder de resistência
Um efeito da crítica baseada na identificação da intenção
do autor ou na decifração da sua charada ideológica é
diminuir o interesse da leitura.
De fato, se o texto se constituísse basicamente como armadilha
e ela já estivesse desarmada, por que lê-lo? Apenas para
constatar a perícia do disfarce, da linguagem cifrada?
Ou a habilidade do decifrador?
À distância de um século,
que nos restaria senão contemplar, com interesse mais
próximo do museológico, essa espécie de Pedra da Roseta
literária?
Os que defendem essa forma de leitura provavelmente concordam
com a crítica que Machado fez ao romance O Primo Basílio,
de Eça de Queirós. Naquele texto, que me parece desfocado
e ainda mal lido, Machado criticava o romance por julgar
que nele as personagens eram títeres a serviço da demonstração
de uma tese. Mas ao insistirem na presença, no texto do
romance de Machado, de índices da intenção do autor na
orientação da correta interpretação das ações e palavras
dos narradores-autores dos romances da última fase, não
estariam também esses críticos promovendo um caminho que,
nos termos do próprio Machado, redundaria num defeito
artístico? Em perda da coerência ficcional?
Essa maneira de ler termina
por empobrecer o texto, por secá-lo até reduzi-lo a um
conjunto de diagramas críticos, por meio dos quais Machado
nos destinaria a sua real visão das questões candentes
do tempo e procederia à crítica da ideologia paternalista.
Ora, esse pressuposto tem como problema adicional lançar
a suspeita de conivência sobre qualquer identificação
do leitor com as personagens ou com a voz narrativa dos
romances da chamada “segunda fase” de Machado.
Posso tomar como exemplo
o romance que tenho estudado com mais vagar, o Dom Casmurro.
E que é central, nos debates sobre a forma moderna de
ler o Machado. Bem, basta ler a moderna fortuna crítica
na vertente intencionalista para constatar que qualquer
adesão emocional ao drama de Bento tem de arcar com o
peso da acusação dirigida aos primeiros leitores: logro
operado por meio da cumplicidade com o ponto de vista
da elite retrógrada do Brasil oitocentista.
E
tão sensível é esse peso, que o próprio John Gledson terminou
por sentir-se obrigado a tematizá-lo. E o fez no mesmo
texto no qual defende a tese do logro do leitor e da existência
de uma leitura correta, de acordo com a intenção de Machado.
Eis aqui:
“Embora a descrição de Roberto Schwarz do tipo de elite
que ele representa seja exata, Bento é um personagem com
quem muitos leitores, e não só por causa de um compromisso
ideológico subconsciente com a elite brasileira (só posso
citar a mim mesmo como evidência), se identificarão, em
um ou em vários níveis”. (Por um novo Machado de Assis,
2006 – texto de 1999)
De fato, esse é um movimento
necessário para libertar a obra da instrumentalização
excessiva a que foi submetida no quadro da leitura ideológica
nacionalizante. Sendo otimista, creio que o fato de ele
se impor mesmo a quem julga que essa forma de leitura
seja a mais correta é um testemunho do poder de resistência
do literário.
Recuo tático
Também a crítica de Machado ao romance de Eça tem sido
objeto de uma apreciação de viés nacionalista, que me
parece simplista e nociva ao melhor entendimento do momento
e da inflexão na carreira literária do escritor brasileiro.
Quando O Primo Basílio chegou ao Brasil, Machado tinha acabado de publicar em
volume o seu romance Iaiá Garcia. O romance de Eça fez
furor. Não só pelo caráter escandaloso, que veio da forma
como tratava as relações sexuais dos protagonistas, mas
também pela novidade da linguagem. Machado de Assis publicou
uma crítica dura em O Cruzeiro, um dos periódicos nos
quais colaborava. Na seqüência, desencadeou-se a polêmica
que obrigou Machado a escrever uma segunda crítica, na
qual respondia aos seus opositores. Mas esse segundo texto
não encerrou a polêmica. Alimentou-a. E a campanha pró-realismo
no Brasil foi longa e divertida, embora bastante agressiva
em relação a Machado. Tentei dar conta dela num artigo
que foi republicado em Estudos de literatura brasileira e portuguesa, no ano passado, mostrando como Machado terminou
por ser retratado como romântico conservador.
Para lermos adequadamente
esse texto crítico de Machado, é preciso que o coloquemos
em situação. Não foi o Machado de Memórias Póstumas de
Brás Cubas ou de Dom Casmurro quem a escreveu. Foi o autor
de A mão e a luva e Iaiá Garcia. O segundo Machado, em
minha opinião, nasce diretamente da crise literária que
se seguiu ao episódio de O Primo Basílio. Depois do sucesso
de Eça no Brasil, a longa elaboração romanesca que resultara
em Iaiá Garcia era um caminho sem futuro nem público.
Assumir os pressupostos e o estilo do Realismo (depois
denominado Naturalismo) não era uma possibilidade para
Machado. A sua solução foi um recuo tático: adotou a forma
do romance do século XVIII, isto é, acentuou o seu deslocamento
em relação à tendência dominante do presente. A escolha
da forma é também a escolha da perspectiva mutante que
tanto se vale do registro do moralismo francês, quanto
do da sátira menipéia, quanto da ironia romântica que
ele bebera desde cedo na obra de Camilo. O resultado é
o sabor de farsa que domina não só os dois primeiros romances
da nova fase, mas ainda os que vêm depois. E o rendimento
romanesco do recuo é notável não só pela invenção lingüística
que advém da liberdade do ponto de vista narrativo, mas
também (e isso será depois um traço valorizado na clave
de leitura mais moderna) por meio da constituição do livro,
da escrita do livro e da materialidade do livro, como
tema central do romance – como bem mostra Abel Barros
Baptista, em Autobibliografias.